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Colocar a culpa numa entidade difusa torna-a distante e, portanto, faz você não se sentir mais parte dela
Era 1986 (portanto, faz, precisamente, o tal de “um quarto de século”), não tínhamos nem começado a sonhar em ter um programa na TV, não tínhamos sequer nos fundido (eu disse “fundido”), éramos dois grupos (ou bandos) distintos: uma parte fazia o jornaleco Planeta Diário e os outros (eu entre eles) a revisteca Almanaque Casseta Popular.
Para reforçar o caixa, ambas as publicações entraram (na verdade, fomos pioneiros) no ramo da venda de camisetas (no nosso idioma atual, chama-se T-shirt) engraçadinhas. Lançamos dezenas de modelos, mas uma foi a campeoníssima disparada, vendendo mais de 20 000 unidades (por reembolso postal, ou seja, embalando uma a uma). Era branca e trazia estampada uma bolona azul com estrelinhas, igual aquela da bandeira brasuca, só que, em vez de “Ordem e progresso”, vinha com a inscrição “Ê povinho bunda!”.
Eram os tempos do “governo” Sarney (toc, toc, toc) e para nós, naquela época e naquela idade, talvez a principal inspiração tenha sido o incômodo com nossa conformidade em sermos tão pouco. Você ser governado (logo após anos de ditadura) por um sujeito de bigode pintado, com pinta e alma de algo que veio do nosso eterno passado, e não do nosso sonhado e sempre irrealizado futuro, era, para dizer o mínimo, broxante. A morte do Tancredo (conhecido também como o “presidente-peru”, aquele que morre na véspera), a hiperin-inflação, o jaquetão, tudo isso e mais um tanto, cristalizavam a sensação da nossa inviabilidade, estávamos eternamente condenados a ser precários, provisórios, apenas um rascunho. Uma espécie de obra que jamais é entregue, um projeto que fica sempre no meio do caminho.
E quem era o culpado? Só podia ser o tal do “povinho bunda”. Afinal, colocar a culpa numa entidade difusa torna-a distante e, portanto, faz você não se sentir mais parte dela. Você passa a ser o camarada que critica a multidão, que reverbera o atraso da plebe ignara. Aí você se distingue, se diferencia, passa a ser especial. E tudo isso sem nem precisar suar a camiseta.
Além disso, aquela “mensagem” estampada numa simples peça de vestuário flertava com a iconoclastia ao “acusar” o povo (que sempre era vítima), quando o culpado de sempre é o “governo”. Para nós, brasileiros, nossa “classe” política é abjeta, medíocre, patética, bizarra, canalha e muito mais. Mas o que quase ninguém repara é que ela é também 100% brasileira e escolhida por… brasileiros! Se nosso problema fossem só nossos políticos, estava tudo resolvido: era só passar o rodo na cambada e substituir todos por, quem sabe, parlamentares escandinavos. Quem quer apostar que em seis meses os suecos iriam se envolver em um monte de maracutaias e, inclusive, vários iriam estar de bigodão pintado de preto?
Faça você mesmo o seguinte teste: escolha um local de lazer público, pode ser um mirante, uma praia carioca, um parque, um estádio de futebol, uma beira de rio… Tente escolher um lugar (não vai ser difícil) onde o nível de sujeira seja digno de nota. Aí, você puxa assunto com os demais frequentadores até chegar na questão que interessa: “Por que você acha que este lugar está tão sujo?”
Você vai ver que, praticamente, a totalidade das respostas se encontrará entre duas “correntes de pensamento”: 1) “O povo não tem educação”. 2) “O governo não faz nada”. Ou seja, aqueles que frequentam e que sujam não fazem parte de nenhuma dessas “categorias”, não são o povo “inguinorante” nem são governo e, portanto, são inocentes. Provando que é aqui que o inferno são, invariavelmente, os outros e o buraco é sempre mais embaixo.
Na nossa latitude, o famoso “problema da educação” atinge também uma grande parte dos “educados”. De quantas janelas de carrões bacanas você já flagrou alguém jogando lixo? Quantos jovens bem-criados, saudáveis e que, provavelmente, “estudaram” você já viu de pinto de fora, em plena rua, socializando seu xixizão? Quantos bons cidadãos não dirigem totalmente embriagados ou acham que sinal vermelho é coisa para otário? Sem falar do doutor que passa a consulta toda falando mal do país, mas não dá recibo, ou do pai “participativo” que suborna o guarda para salvar o pimpolho que fez merda.
Quantos “torcedores canarinhos” desejam, de coração, uma polícia realmente totalmente 100% incorruptível? Por falar em corrupção: quem no Brasil inteiro é a favor dela? Se temos uma totalidade absoluta da população que se declara contra os corruptos, deveríamos ser uma das sociedades mais legalistas do mundo. Somos?
Violência, corrupção, a precariedade de ser brasileiro são problemas imensos e antiquíssimos, mas, com algumas exceções, tipo filhote de baleia e de elefante, nada nasce grande. Se os desafios são gigantes, foi porque tratamos que ficassem desse tamanho. Foi deixando pra lá, botando a culpa em qualquer direção, desde que fosse longe, que criamos multidões penduradas em penhascos que, se escaparam da tragédia de ontem, não vão sobreviver à de amanhã. Foi “agindo” assim também que achamos que podemos dirigir bêbados, em velocidade homicida, exercitando, plenamente, nossa incivilidade. Quando, um dia, der errado (e vai dar), não tem problema, terá sido “acidente”, “uma lamentável tragédia” e por aí vai. Vai?
É por essas, por outras e por todas que, de vez em sempre, estamos nos repetindo, caindo nas mesmas ciladas, numa interminável reprise de filmes que já cansamos de ver. Cansamos?
Não é o que parece. O tempo passa, o tempo voa e, se não vamos mais de jaquetão (embora o dono dele continue, inacreditavelmente, na área, não é mesmo?), vamos de mensalão; se não temos PC Farias, temos Erenice; e, de Tiririca em Tiririca, o que a gente faz mesmo é quase nada fazer, caminhando “com passos de formiga e sem vontade”, o que também é conhecido como “brasilidade”.
Como diria o grande Nelson Rodrigues, “subdesenvolvimento não se improvisa. É trabalho de séculos”. Taí, talvez isso dê uma boa camiseta.
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