O HOMEM DA AGENDA
Giles, num escritório do PT em Brasília, durante a campanha de Dilma à Presidência. Os dois são amigos há duas décadas, desde os tempos em que militavam no PDT
Brizolinha era o apelido do geólogo gaúcho Giles Carriconde Azevedo nos tempos em que o PDT sonhava que o bom e velho Leonel pudesse chegar ao Palácio do Planalto. Ele morreu há sete anos, sem chances reais de chegar lá. Mas Brizolinha chegou. Sem o apelido e sem o D na legenda, ele é o chefe do gabinete pessoal da presidente da República, Dilma Vana Rousseff. Vem a ser, como se sabe, o primeiro escalão de retaguarda do mais alto cargo. Cuida, segundo a lei, da agenda, da secretaria particular, do cerimonial, da ajudância de ordens e da organização do acervo documental privado do presidente. Não é pouca maré – ainda mais com uma presidente que quer tudo a tempo e a hora –, mas o quase ministro Azevedo vem remando, a quatro braços.
Azevedo está para Dilma como o hoje secretário-geral da Presidência, Gilberto Carvalho, estava para Lula. “O chefe do gabinete pessoal é o cara que mais leva bronca do presidente”, disse o ministro Carvalho. “A vida dele não é fácil, como não era a minha.” A diferença é que Carvalho e Lula já tomaram cachaça juntos, o que lhe dava momentos de maior liberdade e informalidade. Até mandar o presidente Lula para aquele lugar ele mandou, uma ou duas vezes, que ninguém é de ferro. “O Lula explodia mais do que a presidente Dilma, mas logo dava risada”, disse. A relação entre Azevedo e a presidente, embora antiga, é muito mais formal. Muito contido, e de poucas palavras, Azevedo não gosta de dar entrevistas. No organograma do gabinete pessoal, o geólogo administra uma equipe de 108 cargos de confiança. A um salário médio de R$ 7 mil, os 108 custam R$ 756 mil por mês ou R$ 9 milhões por ano. Vezes quatro, são R$ 36 milhões.
Seu chefe de gabinete é o também ex-pedetista Álvaro Henrique Baggio, egresso da Casa Civil, como boa parte da equipe. Os dois são da cota Dilma. Da cota Lula, continua Marco Aurélio Garcia. No governo anterior seu título era assessor especial da Presidência para assuntos internacionais. Neste, ele tem dito que a presidente lhe disse que continua com a mesma responsabilidade. Mas não se sente mais tão à vontade. Entre a dúzia de assessores especiais, estão o diplomata Guilherme de Aguiar Patriota, irmão do ministro das Relações Exteriores, Antônio Patriota, e Daisy Aparecida Barretta, ex-chefe de gabinete da Casa Civil desde os tempos do ministro José Dirceu. No gabinete regional da Presidência, em São Paulo, continua a chefe de gabinete Rosem
Cabe a Azevedo, entre muitas tarefas, levar à presidente, uma vez por semana, uma proposta de agenda. É ele quem decide sobre os muitos pedidos de audiência – dos ministros, dos lobistas de grandes empresas cujos presidentes querem cumprimentar a dona da casa. Embora a decisão vá ser dela, é um poder considerável. “O gabinete pessoal é um filtro muito importante porque acaba emitindo juízo de valor para o presidente, que ouve, mas pode discordar e muitas vezes discorda”, disse Gilberto Carvalho. “A agenda é uma fonte permanente de confusão.” Gilbertinho, como o ex-presidente Lula o chama, ainda sente saudade do cargo anterior, no qual era muito maior a proximidade com o centro do poder. “Até evito de ir lá, para ir me acostumando, mas a relação com o Giles é cordata e francamente cooperativa”, disse. “A presidente não tinha uma pessoa melhor para esse cargo. Ele é um escudeiro fiel, de confiança absoluta.”
“O Giles é habilidoso, paciente e serve de tranquilizante para a presidente Dilma”, disse, com conhecimento de causa, o professor de história Cláudio Martins. Não como docente, mas como prefeito petista de Jaguarão, no sul do Rio Grande. É a região de Azevedo, que nasceu em Tapes, cresceu em Arroio Grande e casou-se primeiramente com uma médica, cuja mãe, Cecília Piuma Pólvora, hoje sua ex-sogra, foi vice-prefeita de Jaguarão. Não é de hoje que ele prestigia os conterrâneos. Já o fazia nos ministérios de Minas e Energia e da Casa Civil, quando a então ministra Rousseff dava uma folga.
Azevedo recebeu Cláudio Martins, em audiência previamente marcada, no primeiro dia de março. Disse a ele, nostalgicamente, que Jaguarão foi o palco de seus melhores carnavais. O prefeito levou candentes questões municipais – a recuperação de pontes, por exemplo. Queria saber se esse e outros projetos seriam afetados pelo anunciado contingenciamento das verbas. O chefe do gabinete particular disse que provavelmente não, que é a mesma coisa que provavelmente sim, mas prometeu levar a questão a quem de direito. Martins saiu satisfeito – e a audiência rendeu, a ambos, manchetes e fotos em jornais, sites e blogs da região. “O Giles tem um perfil político dialógico”, disse o prefeito. “Para nós, é uma espécie de embaixador. Ter um chefe de gabinete ligado a nossa região é um grande privilégio.”
Giles Azevedo vai fazer 50 anos neste 12 de abril. Está no segundo casamento, com uma psicóloga, e tem dois guris pequenos, João e Antônio. “Ele teve filho depois de velho, é pai-avô”, disse, brincando, seu amigo Júlio Chaise, assessor do deputado federal Vieira da Cunha. São ambos do PDT – e é aí que começa a história política do assessor da presidente. Formado em geologia, pela Universidade de Brasília, em 1983, após uma curta passagem por mineradoras privadas, Azevedo voltou a Porto Alegre como geólogo concursado do Departamento Nacional de Produção Mineral, o DNPM. O apelido que lá ganhou – “nosso Brizolinha”, disse Ivam Luis Zanette, presidente da Associação Profissional Sul-Brasileira de Geólogos – mostra que combinou a militância política e o exercício profissional.
No DNPM, trabalhava na área de pesquisa mineral, responsável por relatórios que analisavam a concessão de lavras. Viajava com frequência, inclusive para a Antártica. Mestre em geoquímica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, foi professor de prospecção e geologia econômica.
Na política, foi um entusiasmado militante do PDT. Presidiu a Juventude Socialista do partido nos tempos em que isso ainda representava algum perigo. “Nós éramos todos crias do Carlos Araújo”, disse o pedetista Carlos De Ré, ex-preso político que hoje dirige o teatro da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. Araújo vinha a ser, então, deputado estadual do PDT e marido da hoje presidente Dilma Rousseff, ambos ex-presos políticos engajadíssimos no partido de Leonel Brizola.
O primeiro Poder Executivo da economista Dilma Rousseff foi também o de Azevedo: na prefeitura de Alceu Colares, ela foi secretária da Fazenda; ele, chefe de gabinete. Entrou para o folclore de Azevedo um momento de muita atribulação na antessala de Colares: atrapalhado com tanto telefone tocando ao mesmo tempo, e tanta gente esperando ser atendida, ele levou à orelha uma folha de papel-ofício que a secretária lhe entregara para assinar. “Alô”, disse ao papel, para a gargalhada dos presentes. De Ré foi uma das testemunhas da cena. Ele tem uma explicação para a afinidade entre a presidente e Azevedo: “A Dilma tem um altíssimo padrão de exigência técnica, e o Giles sempre correspondeu. Ele é workaholic, como ela. Se precisar acordar às 2 da madrugada, ele vai”. De Ré já viu Azevedo discordar de Dilma: “Presenciei situações em que ele discutiu com ela. É no mesmo patamar. Se está tomado de convicção, ele discute. A Dilma não trabalharia com alguém que fosse subalterno. São 20 anos de relação de amizade. Das pessoas que estão com ela em Brasília, do mesmo nível intelectual, o Giles é o que mais se aproxima.”
Azevedo foi chefe de gabinete do pedetista Vieira da Cunha em dois mandatos de deputado estadual e coordenador de uma animada campanha de Vieirinha à prefeitura de Porto Alegre. Perderam, mas ele acrescentou ao currículo uma pergunta que não quer calar: por que tu te chamas Giles, e não Gile, se tu és só um? “Foi uma brincadeira de um cabo eleitoral que eu tenho no interior”, disse Cunha, dando risada. No singular ou no plural, Azevedo é fanático pelo Grêmio. Quando o time vai mal, é daqueles que baixam o sarrafo verbal.
O ANTECESSOR
Gilberto Carvalho cuidava da agenda de Lula. Sobre Azevedo, diz: “A vida dele não é fácil, como não era a minha”
A segunda vez no Poder Executivo aconteceu no governo do petista Olívio Dutra (1999-2002), que o PDT tinha apoiado. Dilma Rousseff, secretária de Minas e Energia, levou Azevedo para a presidência da Sulgás. “Sempre vi o Giles como uma pessoa dedicada, sem fanfarronice, discreta e muito responsável”, disse o ex-governador gaúcho. “A Sulgás ia ser privatizada, mas ele a administrou bem. Deu a dimensão adequada, sem virar um cabide de emprego e sem virar um elefante branco”, disse. “O Giles não arrota coisa que não tenha comido.” Quando acabou a lua de mel entre o PT e o PDT gaúchos, Brizola exigiu que seus pares deixassem os cargos no governo de Dutra. Dilma Rousseff e Brizolinha ficaram entre as dezenas de pedetistas que mantiveram os cargos e se mudaram para o PT. “Confesso que fiquei magoado”, disse Vieira da Cunha tantos anos passados. À época, Brizola os tachou de traidores. Colares também.
Azevedo chegou ao Executivo federal quando Dilma o levou para o Ministério de Minas e Energia. Foi secretário de Minas e Metalurgia, por dois anos. Levou para o ministério amigos de turma da UnB. Foi o caso do também geólogo Roberto Ventura, hoje de volta ao magistério. Quando estudantes, embrenharam-se pelo interior fazendo mapeamento geológico de regiões pouco conhecidas. Azevedo gosta de jipes e trilhas desde aquele tempo. Ventura o acompanha. Uma vez levou a mulher e o então único filho, com 3 anos. Ventura levou a mulher. Foram explorar o Jalapão no jipe de Azevedo, um Suzuki Vitara 97. No primeiro dia de viagem, atrapalhando-se com a trilha, Azevedo atolou o carro tracionado numa poça de lama. “O susto foi grande, mas terminou tudo bem”, afirma Ventura. Ele é um dos amigos que Azevedo convida, vez ou outra, para provar os risotos que faz, com a ajuda de cursos de culinária que já frequentou. “Ele nos usa como cobaias”, disse, em tom de brincadeira, o professor da UnB.
O conhecimento técnico de Azevedo pesou consideravelmente no desempenho de Dilma Rousseff à frente de Minas e Energia. Com discrição, deu contribuições relevantes na discussão dos marcos regulatórios do setor. A modernização de órgãos como o Departamento Nacional de Produção Mineral e a Companhia de Pesquisa dos Recursos Minerais também passou por ele. Acompanhou Dilma na Casa Civil, como secretário executivo. Viveu, ali, o barulhento imbróglio do uso dos cartões corporativos no governo Fernando Henrique Cardoso, alvo de CPI e de inquéritos que não deram em nada. A única vítima foi o secretário de controle interno da Casa Civil, José Aparecido Nunes Filho, afastado do posto e objeto de investigação que foi arquivada na semana passada. Nunes voltou para a casa de origem, o Tribunal de Contas da União. Quando estava na Casa Civil, convivia com Azevedo. Assistiu a algumas cenas entre ele e a ministra. “O Dr. Giles é absolutamente leal”, disse, por e-mail, sem explicitar se é um elogio ou uma crítica.
Como qualquer mortal que receba ordens de Dilma Rousseff, Azevedo está sujeito a chuvas, trovoadas e às vezes raios. Também reclama, mas tem uma diferença com os demais queixosos: não sai terceirizando a chateação e não somatiza as ocorrências. Já teve vontade de jogar a toalha? Já, como Gilberto Carvalho também teve. Mas não jogaram. Se Azevedo desabafou para alguém, foi para um ou dois mais chegados. E passou logo. Azevedo conhece como poucos o tamanho de suas próprias asas. Não ambiciona o que não pode ter. É o caso, por exemplo, do Ministério de Minas e Energia, em cuja titularidade ele seria possível. Mas está aí o ministro Edson Lobão, quase neófito, com o aplauso do geólogo. É claro que vários amigos continuam lá, e ele é uma importante referência para as entidades e os empresários do setor.
Quando a ministra da Casa Civil saiu para a campanha, Azevedo continuou com a substituta Erenice Guerra, sua afilhada de casamento. Como o chefe do gabinete pessoal não dá entrevistas, não se sabe o que achou de a amiga ter sido afastada por suspeita de tráfico de influência e favorecimento de empresas privadas ligadas a familiares. Depois vieram a campanha eleitoral, a vitória de Dilma e o gabinete pessoal.
Enio Bacci é deputado federal do PDT gaúcho. Conhece Azevedo dos tempos brizolistas. Havia muito não se falavam. Na véspera da votação do salário mínimo, na última semana de fevereiro, o chefe do gabinete pessoal lhe telefonou. Bacci contou como foi: “Ele me fez, em nome da presidente Dilma, um pedido especial: ela gostaria de contar com o meu voto. Foi muito cauteloso. Lembrou de quanto a presidente tinha admiração por mim. Foi muito ético. Eu disse a ele que não votaria com o governo, mas que iria consultar a bancada. Ele ligou novamente, e eu mantive o não. Foi um apelo emocional. Mostra que ele tem uma função ativa no governo, que não consegue fazer política de uma forma passiva”.