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quarta-feira, 9 de abril de 2008

Eça de Queiroz e as singularidades dos nomes

Paulo de Toledo

O conto “Singularidades de uma rapariga loura” (QUEIROZ, Eça. Contos. Ediouro, RJ, s/data, p. 11.), escrito em 1873, por Eça de Queiroz, deve ter causado estranheza ao público da época em que foi publicado, devido à destruição dos moldes convencionais do Romantismo e à apresentação de tipos e situações que se chocavam contra os códigos morais vigentes da burguesia portuguesa.

Narrado em terceira pessoa, o conto apresenta-nos a história de Macário, um jovem guarda-livros que se vê “assaltado” pelo amor a uma mulher: a jovem Luísa.

OURO E LOURA

Nessa obra, novamente Eça de Queiroz, como em O Primo Basílio, manifesta sua fixação pela figura da mulher loura. Luísa tem olhos azuis, é branca e loura como um “arminho”. Toda a aparência da personagem sugere pureza e ingenuidade. Por meio da detalhada descrição que é feita do caráter (apego ao luxo e à vaidade) e ainda pela semelhança entre as palavras “loura” e “ouro”, repetidas inúmeras vezes no conto, somos levados à principal característica psicológica da personagem: a cleptomania.

O conflito entre a aparência e as pulsões internas que o indivíduo procura ocultar, é um dos eixos do conto. A aparência singela de Luísa, a clareza de sua pele e dos seus cabelos escondem um caráter “obscuro”.

Por seu turno, a honestidade do protagonista Macário é enfatizada desde o início da história, de modo a confrontar-se com a personalidade viciada de Luísa. Esse dado confirma-se na descrição das origens de Macário. Segundo o narrador, o guarda-livros era proveniente de uma família marcada por uma “velha tradição de honra e escrúpulo” [p. 15].

O espírito desarmado e puro de Macário também fica expresso no fato de ele relatar sua história à primeira pessoa (o narrador) que encontra numa estalagem de província

OS NOMES

É interessante que nos detenhamos na análise do sobrenome de Luísa e de sua mãe: Vilaça. O adjetivo “aça” designa animal ou pessoa albina. Sendo ambas as Vilaças descritas como sendo mulheres muito brancas, o jogo entre “Vilaça” e “aça” sugere a brancura da pele das personagens. Podemos conjecturar também que “Vilaça” remeta anagramaticamente à palavra “vil”. Sendo assim, concluímos que o sobrenome Vilaça sugere a junção de “vil+aça”, podendo significar uma mulher branca e vil, evidenciando as principais características dessas personagens femininas.

Do mesmo modo, é bastante sugestivo o fato de que o encontro entre Lúcia e Macário se realize na Rua dos Calafetes. “Calafete” designa aquele que calafeta, sendo calafetar o ato de untar com piche ou breu as juntas de um barco. Isto é, foi na Rua dos Calafetes onde o amor de Macário por Luísa foi untado de “piche” (elemento que indicaria a impureza da alma de Luísa).

No final do conto, depois que a rapariga loura rouba um anel de brilhantes na loja do ourives e é desmascarada, Macário, já na rua, ao lado da sua noiva, “instintivamente leu o cartaz que anunciava ‘Palafox em Saragoça’” [p. 44]. Após ler o cartaz, Macário, claramente irritado, ordena a Luísa que vá embora.

Se detivermo-nos na palavra “Palafox” perceberemos que se dá a união entre “Palas” (o nome da deusa grega Palas Atena) e “fox” (raposa, em inglês). Saragoça, por sua vez, pode nos levar a “saragoço”, que quer dizer cão perdigueiro de cor branca com pequenas pintas escuras. Podemos concluir, portanto, que o cartaz é um resumo metafórico das características físicas e morais de Luísa. Sendo ela descrita pelo autor como uma bela mulher, Luísa se aproximaria metaforicamente da deusa grega Palas Atena (que, juntamente às deusas Hera e Afrodite era considerada uma das três mais belas deusas do Olimpo). Além disso, o nome da peça em cartaz contém as palavras raposa (“fox”) que indica pessoa de personalidade astuta e traiçoeira. Vemos aí, aglutinadas, as duas faces de Luísa: sua beleza e seu caráter traiçoeiro.

Por sua vez, o substantivo “saragoço” permite-nos relacionar a cor branca que caracteriza esse cão à palidez de Luísa. Além disso, as pintas do saragoço podem sugerir as máculas no espírito da personagem: sua cleptomania.

PRODUTO DO MEIO

Esse “defeito” de Luísa pode ter como causa a necessidade da personagem de corresponder às expectativas da sociedade burguesa que a rodeia. É importante observar que os objetos furtados por Luísa (os “lenços da Índia”, o anel de brilhantes e o leque, o qual somos levados a crer que também fora roubado) são elementos típicos de ostentação de riqueza utilizados pela alta classe burguesa da época.

Eça de Queiroz, adepto do Naturalismo, elabora, assim, uma crítica à sociedade a qual pertencia, cujo comportamento estaria baseado na valorização das aparências, uniformizando as individualidades, ou seja, destruindo as suas “singularidades”.

PAULO DE TOLEDO (Santos/SP, 1970) é poeta. Tem poemas, contos, traduções e ensaios publicados em vários sites literários e na revista de poesia Babel.

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26/10/2008 free counters

REVISTA TPM , Selton Mello

“o recomendo começar criança. O que meus pais fizeram comigo foi lindo, mas tem muita criança que pira”

Tpm. Você veio de Minas para São Paulo quando era bem pequeno, não é?
Selton Mello.
É. Os meus pais são de Passos e, no meu nascimento, eles voltaram para sua cidade natal. Aquela coisa de ficar perto da família e tal. Eu nasci lá, passei um mês e voltei para SP, onde vivi minha infância. Mas sempre passei grandes temporadas em Minas, que foram fundamentais na minha formação. Eu tive uma relação muito forte com a natureza, com os bichos, com a terra. Imagino, se um dia eu tiver um filho – o que acho uma viagem muito bacana –, vou fazer de tudo para estar bastante no mato. Acho que é legal para a criança, sabe?

Tpm. Você iniciou sua carreira cantando em shows de calouros?
Selton Mello.
É, meu início é hilário. Sempre toquei violão e guitarra, já tive banda e tudo. Um dia disse para minha mãe que queria cantar no programa do Raul Gil. Tinha uns 7, 8 anos. Cantei no Bozo também. É engraçado.

Tpm. Você cantava Roberto Carlos?
Selton Mello.
Cantava. Gostava muito de Roberto Carlos e minha mãe fez um terninho para eu cantar. Nessa onda, pintou um olheiro de agência que me chamou para fazer comerciais e, nessa de comercial, comecei a fazer novela. Fiz Dona Santa, que foi a primeira, e Braço de Ferro, a segunda. As duas na Bandeirantes.

Tpm. Você colocaria um filho para trabalhar tão cedo, como foi com você?
Selton Mello.
Não e não recomendo começar criança. O que meus pais fizeram comigo foi lindo, mas eu vi muitos atores da minha época de criança dançarem por causa dos pais. Lembro de muito pai enchendo o saco de diretor, mas meus pais, supermineirinhos, sempre me deram ferramentas para fazer o que eu queria fazer. Nunca me impuseram nada. Quando eu terminei Corpo a Corpo e não apareceu nenhuma outra novela, tinha sempre a dúvida: “Será que a gente vai falar lá com o diretor que te trouxe?”. A gente sempre acabava optando por não ir. Então isso foi muito bacana. Eles sempre conversaram muito comigo, para eu não pirar. Mas tem muita criança que pira.

Tpm. Você continua tão metódico como o menino de 11 anos que decorava o texto de todo o elenco da novela?
Selton Mello
. Isso eu não perco. E acho que ficou mais forte depois de ter recebido um prêmio fora do meu país, lá em Cuba, que foi o mais importante da minha carreira [Selton recebeu o prêmio de melhor ator no 23º Festival Internacional Del Nuevo Cine Latinoamericano, no ano passado]. A emoção e o orgulho que senti defendendo o Brasil foi muito grande. Me senti meio “os caras do vôlei”. Isso me estimula a ficar cada vez melhor.

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26/10/2008 free counters

O coronel e o lobisomem

Pode ser que você nunca tenha ouvido falar no nome dele. Mas referências não faltam a Maurício Farias. O cara é filho do cineasta Roberto Farias (diretor de “Assalto ao trem pagador”) e irmão de Lui Farias. Maurício é casado com a atriz Andréa Beltrão e assina a direção do seriado “A Grande família”, além de minisséries, como “Hilda Furacão”. Achou pouco? O diretor é um sujeito tranqüilo, confiante quanto à sua estréia em longas metragem em “O coronel e o lobisomem” e, principalmente, quanto à parceria e amizade com Guel Arraes. E aliás, que amizade. O diretor e produtor pernambucano poderia ter dirigido esse fechamento da “trilogia da comédia popular”, mas passou a regência para o parceiro que, segundo ele, teria “um olhar novo e trataria o material com mais originalidade e criatividade”. Duvida? Então, confira abaixo o que o próprio Maurício tem a dizer a seu favor.


O diretor durante a coletiva de lançamento do filme em BH

Pílula Pop: Você já tem bastante experiência com direção na TV, como “A grande família” e “Hilda Furacão”. Quais as diferenças e as dificuldades que você encontrou ao dirigir um longa?

Maurício Farias: A minha maior dificuldade foi fazer da equipe uma nova família. Porque o elenco já trabalhava comigo na TV, mas a equipe não. Acredito no trabalho em grupo, daí minha afinidade com o Guel [Arraes]. Quando a gente se encontrou na televisão, e nós dois já trabalhamos juntos há seis anos, foi um cruzamento de tendências, até mesmo na prática. Então, a minha maior dificuldade foi criar essa família, fazer com que ela caminhasse com intimidade e animação - o que é preciso se ter, com certeza, num filme.

Pílula Pop: Como foi a primeira experiência no comando de um longa metragem e como foram as filmagens em Minas Gerais?

Maurício Farias: Eu me senti muito bem, porque estava bem acompanhado. Quando se tem esse apoio total e irrestrito, como eu tive em “O coronel e o lobisomem” é muito bom, porque direção é um trabalho muito solitário. Todas as decisões pesam sobre as suas costas: contas, erros, acertos. É muito importante ter parceiros, como o Guel e a Paula, com quem você pode dialogar à altura sobre todos os aspectos da produção. As decisões eram tomadas de igual para igual, ao mesmo tempo em que a minha opinião era respeitada - a escolha do elenco, por exemplo, foi minha. Foi uma felicidade para mim. Quando o Guel me chamou para fazer o filme e me mostrou o roteiro, eu tinha bem claro que o caminho que eu devia seguir era algo na linha do realismo mágico. Comprei na hora a idéia de filmar em Minas, já que eu conhecia aqui. Já havia gravado na Praça da Liberdade em “Hilda Furacão”. E em Tiradentes também.

Pílula Pop: E como você encara as comparações com o “Estilo Guel” de direção?

Maurício Farias: É uma afinidade que eu tenho com o Guel. Já trabalho com ele na TV há anos. É um mestre na comédia, na narrativa. O texto e a adaptação eram do Guel e isso já traz em si um caminho. Os atores e os parceiros também contam para essa visão, porque já têm essa mesma grife “Guel Arraes” associada. É o estilo de um grupo, mas não é a mesma direção. Eu acredito no que está feito e eu não fiz nada copiando, fiz o que eu achava melhor para cada cena.


O elenco: Selton Mello, Lúcio Mauro Filho e a esposa de Maurício, Andréa Beltrão

Pílula Pop: Assistindo ao filme, percebe-se que o elenco está muito a vontade na atuação e nos diálogos. O filme teve muito de improvisação ou vocês se fixaram mais no que estava no roteiro?

Maurício Farias: O tipo de trabalho que eu faço praticamente não dá espaço para o improviso. Apesar desses atores serem capazes de qualquer coisa, mesmo (risos). Mas a gente ensaiou muito, ficamos um mês trabalhando bastante cada cena antes de filmar. A gente se entende bem, trabalha há muito tempo junto. É isso, somado aos ensaios, à seriedade e à forma como esse grupo trabalha, que resultou nesse conforto.
***Nesse momento, alguém chega dizendo que o tempo está acabando e atropela minha entrevista. Paciência. E um pouco de insistência***

Pílula Pop: Esse ano tem sido de vacas magras para o cinema nacional. Somado a isso, ainda existe o sucesso do “Auto da compadecida” e de “Lisbela e o prisioneiro” que, de certa forma, precedem “O coronel e o lobisomem”. Como está a expectativa para o lançamento do longa?

Maurício Farias: A expectativa é enorme. Eu espero que o maior número de pessoas goste e que faça o maior sucesso possível. A gente sabe que não adianta, mas sofre, sofre, sofre. Agora, porém, o próprio filme responde por ele mesmo. E são as pessoas que vão ver - e vão gostar ou não. Espero que elas gostem porque ele foi feito de uma maneira muito bacana e muito caprichada.


A bela Ana Paula Arósio, os produtores Paula Lavigne e Guel Arraes e o diretor

Pílula Pop: Com tanto trabalho de pós-produção, tem alguma cena ou alguma coisa que você gostaria de refazer ou melhorar no filme, depois de pronto?

Maurício Farias: Eu, como diretor, considero-me um obsessivo. Essa coisa não tem fim. Todo trabalho que você faz, vai sempre querer refazer alguma coisa. Mas estou muito satisfeito, acho que o filme está excelente. Gosto do meu trabalho no filme, dos atores, da produção, da direção de arte e fotografia, do figurino – está tudo bem legal. Se tivesse mais condições, mais tempo, é claro que a gente sempre faria melhor, né? Mas eu tive bastante conforto para filmar, fiz praticamente tudo da forma que tinha imaginado.

Pílula Pop: E qual a sua cena preferida no filme?

Maurício Farias: Gosto da passagem de tempo, logo que a Esmeraldina vai embora. As cenas dele comendo na cozinha, a barba dele cresce. Ele dormindo escondido com o olho para fora, depois virando coronel. Gosto da cena no trem em Tiradentes também, acho uma seqüência linda. E o Selton aparecendo por trás é bacana. Mas o filme tem de tudo: diversos exercícios de direção. Desde ritmo a algumas virtuoses de câmera. E gosto muito do julgamento, acho que se fosse para citar, as cenas do tribunal, realmente, são as mais interessantes.

por Daniel Oliveira

O coronel e o lobisomem

(Brasil, 2005)

Dir.: Maurício Farias
Elenco: Diogo Vilela, Selton Mello, Ana Paula Arósio, Pedro Paulo Rangel, Tonico Pereira, Othon Bastos, Andréa Beltrão, Lúcio Mauro Filho, Francisco Milani, Marco Ricca

Princípio Ativo:
Grife Guel Arraes

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Tem elenco do Guel Arraes. Tem roteiro do Guel Arraes. Tem produção do Guel Arraes. Tem a cara do Guel Arraes. Preste bem atenção, não estou dizendo que seja um filme do Guel Arraes. Até que não é. “O coronel e o lobisomem” pode completar a tal “trilogia da comédia popular” – que já é, pelo menos, uma quadrilogia, com o anúncio de “O bem amado” em longa metragem. Mas tem traços próprios, para o bem e para o mal, que salvam o diretor Maurício Farias da acusação de “Guel Arraes with lasers” (ou with lobisomem digital).

Adaptado do livro de José Cândido de Carvalho, o longa conta a saga do Coronel Ponciano (Diogo Vilela), um Dom Quixote do romance regionalista nacional. Ele é criado junto com o filho do capataz, Pernambuco Nogueira (Selton Mello) e os dois se apaixonam por Esmeraldina (a bela Ana Paula Arósio), prima do coronel. Quando um lobisomem aparece na região da fazenda, os moradores suspeitam de Pernambuco e Ponciano questiona a lealdade do amigo.

Estreante em longas, Maurício Farias tem longa experiência na televisão e sua direção de atores é segura e competente. A adaptação respeita o texto rebuscado de José Cândido, cheio de períodos longos e neologismos, à la Graciliano Ramos. Isso faz com que o filme seja guiado pelos diálogos e interpretação. O elenco é o grande destaque do filme, dominando um texto desafiador, especialmente Pedro Paulo Rangel, que rouba a cena como o enxerido Seu Juquinha, empregado da fazenda.

O quesito técnico não decepciona, com fotografia e direção de arte extremamente bem cuidadas, auxiliadas por efeitos visuais de qualidade incomum no cinema brazuca. A Digital 21, empresa responsável pelos efeitos e co-produtora do longa, ainda teve o desafio de criar a fera do título, em uma seqüência que poderia ter ficado ridícula, mas que surpreende e não compromete a proposta do filme. Na trilha, Caetano Veloso repete a função de “Lisbela e o prisioneiro” e “Dois filhos de Francisco”, mas dessa vez com a parceria de Milton Nascimento, que combina o estilo e os acordes das canções com a beleza das locações mineiras.

Com tudo isso, “Coronel” é excelente, você me diria. Não é para tanto. Maurício Farias é bom com os atores, tem bons momentos como as seqüências do julgamento, mas peca um pouco no ritmo. E a solução final não faz jus ao resto do roteiro. Assim como as músicas recentes de Caê e Milton, você reconhece a qualidade e o primor técnico, mas sabe que não chegam aos pés do arrebatamento das canções da fase áurea dos emepebistas. Nada que os olhos de Ana Paula Arósio não consigam superar.

Arósio: bonita, até de olhos fechados

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26/10/2008 free counters

Amor, loucura e morte social num clássico cinqüentenário





Lygia Fagundes Telles, a autora do livro Ciranda de Pedra, prefere não dar palpites quando o assunto é a adaptação de suas obras . Não deu na primeira versão, de 1981, assinada por Teixeira Filho, e não será agora que a dama da literatura brasileira vai intervir. A própria escritora já teve uma desagradável experiência ao adaptar a obra de outro autor - no caso, nada menos que o Dom Casmurro - e ver no cinema algo bem diferente do que havia escrito no roteiro, feito em parceria com o marido Paulo Emílio Salles Gomes.

Portanto, considera normais algumas modificações em seu romance, como a supressão do lesbianismo da tenista Letícia ou a camuflagem da impotência de Conrado. ''Acho até bom, porque há tanto sexo nas novelas hoje em dia que Ciranda de Pedra vai inovar com essa sexualidade velada'', brinca, lembrando a resistência com que a sociedade da época recebeu o romance, finalmente lido por recomendação dos maiores críticos literários da época (e republicado este mês pela Rocco). ''Em 1954 não se podia falar de homossexualidade, impotência e suicídio, e creio que até hoje temas como o último continuam tabus'', diz, referindo-se ao caso do filósofo vienense André Gorz, que cometeu duplo suicídio com sua mulher, em setembro do ano passado.

Em Ciranda de Pedra, quem se mata é o médico Daniel, por não suportar a morte da companheira Laura. ''É estranha essa ligação com o suicídio de Gorz anos depois, mas entendo que grandes amores como o dele por Dorrine ou o de Daniel por Laura levem à morte, pois são experiências intensas'', diz, lembrando que, no caso de Laura, a deterioração de seu estado mental corresponde a uma morte social , antes da morte física. Vale lembrar: o desajuste que leva à loucura e ao confinamento tampouco era um tema incomum em 1952, quando Lygia começou a escrever Ciranda de Pedra. Foucault só trataria disso duas décadas mais tarde.

Lygia, claro, tem consciência de seu pioneirismo, mas diz que não foi uma provocação deliberada. O livro nasceu de um passeio romântico por Higienópolis. Ela entrou num casarão demolido e, ao ver uma fonte com anões de pedra formando uma ciranda, lembrou-se de um poema de Rilke. Como só a poesia ''é capaz de dizer o que as próprias coisas jamais pensaram ser na sua intimidade'', ela decidiu: iria escrever a história dessa família desaparecida junto às paredes do velho casarão. E é ela que agora chega à novela das seis. A.G.F.

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26/10/2008 free counters

CIRANDA DE PEDRA


Ascensão e queda da classe média

Ciranda de Pedra fala da desestruturação da família, mas autor da telenovela diz que prefere seguir Chekhov a fazer sociologia

Antonio Gonçalves Filho

O dramaturgo Alcides Nogueira revela sem temor que recuou deliberadamente ao adaptar o livro de Lygia Fagundes Telles, Ciranda de Pedra, para o horário das seis da tarde. Assim, na novela que a Globo começa a exibir dia 5 de maio, a tenista Letícia, campeã das quadras no livro Ciranda de Pedra, será derrotada em sua atração por mulheres, uma vez que a classificação por faixa etária - eufemismo para censura - não permite que crianças vejam pessoas do mesmo sexo se amando na televisão. E o que vai ser de Conrado, o amor de infância de Virgínia, a heroína do romance, um homem amargurado e isolado por sua impotência sexual? E de Frau Herta, a empregada recolhida a um cômodo imundo, doente e abandonada na periferia do mundo? E da família burguesa do patriarca Natércio, que decai a ponto de se tornar irreconhecível? Tudo isso cabe no horário das seis?

A saída encontrada por Alcides Nogueira para driblar a camisa-de-força da classificação etária foi compensar o tônus peculiar de Ciranda de Pedra - a força social do romance - com o desenvolvimento do perfil psicológico dos personagens. Assim, a lésbica Letícia deixa de ser a desbravadora do virgem território da sexualidade alternativa, nos anos 1950, para ser simplesmente uma mulher que rejeita o modelo patriarcal, assumindo sua autonomia como esportista profissional. Conrado, o correspondente brasileiro do 'belo Antonio' de Brancati, homem consumido pela desolação, não será um impotente sexual, mas 'afetivo', tendo dificuldades para assumir o cargo de diretor da siderúrgica que recebe como nefasta herança.

'Lygia tem aquela coisa das pequenas tragédias de Katherine Mansfield', define Nogueira, justificando sua opção por um caminho mais intimista para narrar essa história de desestruturação familiar, na qual a matriarca Laura (Ana Paula Arósio) seria o que hoje se conhece como vítima de transtorno bipolar. Laura, porém, não é a protagonista, mas sim sua filha Virgínia (Tammy DiCalafiori), uma solitária rejeitada pela família, espécie de gata borralheira que herda as sobras das reformas dos quartos das irmãs quando a mãe decide se separar do rico marido advogado, Natércio (Daniel Dantas), para assumir sua relação extraconjugal com o pobre médico Daniel (Marcello Antony).

É na casa de Natércio - 'um Dom Casmurro dilacerado', na visão do autor da novela - que existe a 'ciranda de pedra' do título. São anões ao redor de uma fonte no jardim do patriarca, que mantém a distância a filha ilegítima. Deslocada, Virgínia vai para um colégio interno e, em seu retorno, testemunha a morte da mãe e o suicídio do médico para, finalmente, voltar ao jardim que tanto amou e concluir que jamais fez parte daquela ciranda de cimento.

Na telenovela das seis, Virgínia vai adotar uma atitude reagente, garante Nogueira. 'Natércio aceita o papel de pai para não passar por marido traído e comprometer sua posição social, enquanto Virgínia se fortalece quando volta do colégio, desistindo de pertencer a essa ciranda social fechada.' O autor assume como modelo o folhetim balzaquiano e diz que viu o suficiente dos filmes de Douglas Sirk para não sentir vergonha do melodrama. 'Talvez seja mesmo a forma que a sociedade contemporânea tenha de entender o sentido da tragédia', observa o dramaturgo, citando a adaptação que Fassbinder fez nos anos 1980 do épico Berlin Alexanderplatz, de Alfred Dõblin, minissérie produzida para a televisão alemã com 15 horas de duração, depois exibida nos cinemas. Fassbinder é um modelo assumido, por sua coragem de enfrentar o monumento literário de Dõblin, sofisticado autor expressionista alemão marcado pela leitura de Kierkegaard e ele mesmo roteirista em Hollywood nos anos 1930.

A principal adaptação que Alcides Nogueira fez foi transferir para 1958 o ponto de partida da novela, um ano simbólico por incorporar momentos históricos de ruptura como a bossa nova, a ascensão da classe média, a conquista da copa mundial de futebol e o começo da construção da nova capital. Para o dramaturgo, um proustiano de carteirinha, essa evocação do tempo perdido vai além da nostalgia. É uma oportunidade de repensar onde o Brasil tropeçou no terreno da ética.

Apesar disso, Alcides não pretende fazer da novela um tratado sociológico sobre a ascensão da classe média que, nos anos 1950, cedeu ao vale-tudo para entrar no circuito do consumo. A tradicional família Prado, avesso da pobre família de Daniel, adota, segundo o dramaturgo, um modelo chekhoviano de ser. Ou seja: no meio de um turbilhão social, tenta sobreviver como se nada pudesse afetá-la. Não é familiar?

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