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quarta-feira, 9 de abril de 2008

CIRANDA DE PEDRA


Ascensão e queda da classe média

Ciranda de Pedra fala da desestruturação da família, mas autor da telenovela diz que prefere seguir Chekhov a fazer sociologia

Antonio Gonçalves Filho

O dramaturgo Alcides Nogueira revela sem temor que recuou deliberadamente ao adaptar o livro de Lygia Fagundes Telles, Ciranda de Pedra, para o horário das seis da tarde. Assim, na novela que a Globo começa a exibir dia 5 de maio, a tenista Letícia, campeã das quadras no livro Ciranda de Pedra, será derrotada em sua atração por mulheres, uma vez que a classificação por faixa etária - eufemismo para censura - não permite que crianças vejam pessoas do mesmo sexo se amando na televisão. E o que vai ser de Conrado, o amor de infância de Virgínia, a heroína do romance, um homem amargurado e isolado por sua impotência sexual? E de Frau Herta, a empregada recolhida a um cômodo imundo, doente e abandonada na periferia do mundo? E da família burguesa do patriarca Natércio, que decai a ponto de se tornar irreconhecível? Tudo isso cabe no horário das seis?

A saída encontrada por Alcides Nogueira para driblar a camisa-de-força da classificação etária foi compensar o tônus peculiar de Ciranda de Pedra - a força social do romance - com o desenvolvimento do perfil psicológico dos personagens. Assim, a lésbica Letícia deixa de ser a desbravadora do virgem território da sexualidade alternativa, nos anos 1950, para ser simplesmente uma mulher que rejeita o modelo patriarcal, assumindo sua autonomia como esportista profissional. Conrado, o correspondente brasileiro do 'belo Antonio' de Brancati, homem consumido pela desolação, não será um impotente sexual, mas 'afetivo', tendo dificuldades para assumir o cargo de diretor da siderúrgica que recebe como nefasta herança.

'Lygia tem aquela coisa das pequenas tragédias de Katherine Mansfield', define Nogueira, justificando sua opção por um caminho mais intimista para narrar essa história de desestruturação familiar, na qual a matriarca Laura (Ana Paula Arósio) seria o que hoje se conhece como vítima de transtorno bipolar. Laura, porém, não é a protagonista, mas sim sua filha Virgínia (Tammy DiCalafiori), uma solitária rejeitada pela família, espécie de gata borralheira que herda as sobras das reformas dos quartos das irmãs quando a mãe decide se separar do rico marido advogado, Natércio (Daniel Dantas), para assumir sua relação extraconjugal com o pobre médico Daniel (Marcello Antony).

É na casa de Natércio - 'um Dom Casmurro dilacerado', na visão do autor da novela - que existe a 'ciranda de pedra' do título. São anões ao redor de uma fonte no jardim do patriarca, que mantém a distância a filha ilegítima. Deslocada, Virgínia vai para um colégio interno e, em seu retorno, testemunha a morte da mãe e o suicídio do médico para, finalmente, voltar ao jardim que tanto amou e concluir que jamais fez parte daquela ciranda de cimento.

Na telenovela das seis, Virgínia vai adotar uma atitude reagente, garante Nogueira. 'Natércio aceita o papel de pai para não passar por marido traído e comprometer sua posição social, enquanto Virgínia se fortalece quando volta do colégio, desistindo de pertencer a essa ciranda social fechada.' O autor assume como modelo o folhetim balzaquiano e diz que viu o suficiente dos filmes de Douglas Sirk para não sentir vergonha do melodrama. 'Talvez seja mesmo a forma que a sociedade contemporânea tenha de entender o sentido da tragédia', observa o dramaturgo, citando a adaptação que Fassbinder fez nos anos 1980 do épico Berlin Alexanderplatz, de Alfred Dõblin, minissérie produzida para a televisão alemã com 15 horas de duração, depois exibida nos cinemas. Fassbinder é um modelo assumido, por sua coragem de enfrentar o monumento literário de Dõblin, sofisticado autor expressionista alemão marcado pela leitura de Kierkegaard e ele mesmo roteirista em Hollywood nos anos 1930.

A principal adaptação que Alcides Nogueira fez foi transferir para 1958 o ponto de partida da novela, um ano simbólico por incorporar momentos históricos de ruptura como a bossa nova, a ascensão da classe média, a conquista da copa mundial de futebol e o começo da construção da nova capital. Para o dramaturgo, um proustiano de carteirinha, essa evocação do tempo perdido vai além da nostalgia. É uma oportunidade de repensar onde o Brasil tropeçou no terreno da ética.

Apesar disso, Alcides não pretende fazer da novela um tratado sociológico sobre a ascensão da classe média que, nos anos 1950, cedeu ao vale-tudo para entrar no circuito do consumo. A tradicional família Prado, avesso da pobre família de Daniel, adota, segundo o dramaturgo, um modelo chekhoviano de ser. Ou seja: no meio de um turbilhão social, tenta sobreviver como se nada pudesse afetá-la. Não é familiar?

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