A Comissão da Verdade, ou da meia verdade como já está sendo chamada, representou uma saída à brasileira para criar uma cortina de fumaça voltada a não enfrentar a decisão da Corte Interamericano de Direitos Humanos. A respeito, escrevi o artigo abaixo e que está publicado na revista Carta Capital.
Os fantasmas continuam atentos
Uma ativista espanhola da área de direitos humanos disse, certa vez e numa manifestação na madrilenha Porta do Sol, que fantasmas sempre aparecem quando os órgão do poder e agentes da autoridade pública buscam soluções incompletas ou paliativos para colocar uma pá de cal sobre os mortos e os desaparecidos das ditaduras.
Todos lembram, em maio passado, do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental de registro 153. Uma arguição ajuizada pelo Conselho Federal da OAB e com petição inicial subscrita pelo jurista e professor emérito Fábio Konder Comparato. Por sete votos contra dois, a maioria dos ministros seguiu o voto de Eros Grau, este com o entendimento de a Lei de Anistia não afrontar a Constituição da República.
O então ministro Grau decidiu ter a anistia alcançado os crimes de lesa-humanidade num momento em que a sociedade desejava esquecer o passado e reconquistar a democracia. Grau ressaltou tratar-se de anistia bilateral e que a Emenda 26, de convocação da Assembléia Nacional, balizou os constituintes ao admitir a anistia ampla, geral e irrestrita. Para rematar, Grau concluiu que a Emenda 26 “constitucionalizou a anistia”.
Pena ter faltado a Grau, de triste passagem pelo STF, uma leitura mais atenta da Constituição da República, já que a história deturpou e mostrou desconhecer. Os constituintes, sem engessamento, deixaram escrito não poder a anistia premiar os autores de crimes de lesa-humanidade.
Pouco tempo depois dessa maçada suprema, mais especificamente em dezembro de 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos tornou pública a sua decisão no caso Gomes Lund e sobre violações aos direitos humanos durante a chamada Guerrilha do Araguaia. Essa Corte, é bom recordar, não admite a autoanistia, caso típico da lei brasileira de 1979, concebida em plena ditadura militar e com um Legislativo biônico. No caso Gomes Lund, a Corte condenou o Estado brasileiro pela impunidade conferida a violadores de direitos imanentes ao ser humano.
Para a ativista espanhola mencionada, os fantasmas sempre aparecem de surpresa e para desmontar injustiças em cima de corpos insepultos. O então ministro Jobim, da pasta da Defesa e talvez em razão do peso de uniformes militares que passou a trajar, esqueceu os regramentos legais e os livros. Jobim soltou a sua ordem dia e no sentido de a decisão do STF, sobre a legitimidade da Lei de Anistia, ser soberana e prevalecer sobre a da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Por evidente, Jobim não espantou os fantasmas que lembrram que a Constituição do Brasil aceita a jurisdição da Corte interamericana de direitos Humanos: “O Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional dos direitos humanos” (art.7º. dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias).
Jobim errou o tiro. O único caminho para o Brasil não cumprir a decisão da Corte Interamericana seria deixar, por formal denúncia, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, embora a tenho subscrito e com aprovação pelo Congresso. A Convenção tem clareza solar ao estabelecer que “Os Estados-partes na Convenção comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem partes”.
Com a desvinculação por meio de denúncia, frise-se, o Brasil poderia ficar fora do alcance da jurisdição da Corte Interamericana e, assim, fazer valer, com relação às graves violações a direitos humanos havidas no período da ditadura militar (144 assassinatos sob tortura e 125 desaparecidos de repartições do Estado), a decisão do STF que foi capitaneada pelo ministro Eros Grau.
Na semana passada, uma cortina de fumaça procurou esconder a condenação do Brasil pela Corte Interamericana. Isto ocorreu por meio de uma concorrida cerimônia de promulgação da lei instituidora da Comissão da Verdade, tudo com choros de familiares de antigos presos políticos e leve ranger de dentes dos chefes militares presentes e assessorados pelo ex-deputado José Genuíno, um ex-guerrilheiro do Araguaia, em novos e poucos solidários panos. Essa Comissão, a ser integrada por sete membros escolhidos pela presidenta Dilma a vencer R$11.100,00 mensais, terá dois anos para investigar e identificar violadores de direitos humanos, num arco temporal de 1946 a 1988.
Na verdade, a cerimônia mostrou um Brasil pusilânime, que teme desagradar os militares e é incapaz de impor um projeto a revogar a lei de anistia ou reconhecer, para propositura de ações criminais, a força da jurisdição internacional em casos de graves violações a direitos naturais da pessoa humana. Uma jurisdição, com relação às graves violações, hierarquicamente superior ao do STF.
No mesmo dia da solenidade, ecoou a advertência de Navi Pillay, alta comissária de defesa dos direitos humanos das Nações Unidas. Navy recomendou a revogação da lei de autoanistia por inaceitável nesta quadra evolutiva. Pelo jeito, um fantasma soprou ao ouvido da alta comissária.
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