RIO - Única sobrevivente da Casa da Morte, centro de tortura do regime militar em Petrópolis. Responsável depois pela localização da casa e do médico-torturador Amílcar Lobo. Autora do único registro sobre o paradeiro de Carlos Alberto Soares de Freitas, o Beto, que comandou Dilma Rousseff nos tempos da VAR-Palmares. Última presa política a ser libertada no Brasil. Aos 69 anos, Inês Etienne Romeu tem muita história para contar. Mas ainda não pode. Vítima há oito anos de um misterioso acidente doméstico, que a deixou com graves limitações neurológicas, ela luta para recuperar a fala. Cinco meses depois de uma cirurgia com Paulo Niemeyer, a voz saiu firme:
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- Vou tomar banho e esperar a doutora Virgínia.
Era a primeira frase completa depois de tanto tempo. Foi dita na manhã de quarta-feira, em Niterói, no apartamento onde Inês trava a mais recente batalha de sua vida. Doutora Virgínia é a fisioterapeuta, mas a recuperação também mobiliza médicos, psicólogos e fonoaudiólogos. Desde que abandonou a carreira de bancária em Belo Horizonte, nos anos 1960, para mergulhar na luta armada, a vida da ex-guerrilheira tem sido uma sucessão de acontecimentos agudos, muitos deles dramáticos e outros esplêndidos.
Pelas mãos de Inês, até pé-sujo entrou para a História. Com Beto e outros cotistas, ela abriu no fundo de uma galeria o Botcheco, barzinho que rapidamente se transformaria no centro da ebulição política e artística da capital mineira. Ao som de Dizzie Gillespie e Miles Davis, extraído de uma vitrolinha, por lá passaram os integrantes do Clube da Esquina e os futuros militantes dos grupos que logo desafiariam o regime, como a Polop, os Colina e a VAR-Palmares.
Daqueles tempos à anistia, em 1979, Inês contabilizaria um sequestro (do embaixador da Suíça, Giovanni Bucher), quase cem dias de suplícios nas masmorras do delegado Sérgio Fleury, em São Paulo, e na Casa da Morte, mantida secretamente pelo Centro de Informações do Exército (CIE), e três tentativas de suicídio.
É preciso ter estômago para ler sobre o martírio de Inês. De 8 de maio a 11 de agosto, ela foi torturada, seviciada, estuprada e obrigada a denunciar a irmã como subversiva: “Eu estava arrasada, doente, reduzida a um verme e obedecia como um autômato”, contaria em depoimento à OAB.
Como os demais presos da casa, Inês não deveria sair viva de Petrópolis. Porém, depois de um campanha internacional de denúncia de sua prisão clandestina, ela acabou solta. Foi jogada na casa de uma irmã, em Belo Horizonte, pesando apenas 32 quilos. Mas o terror não desistira dela. Condição imposta pelo algozes para poupar a família Romeu, ela teria de aparecer em local público, dois dias depois, para ser morta como se tivesse reagido à prisão.
A vida de Inês foi salva graças à ousadia da família e dos advogados, que conseguiram oficializar sua prisão. Transferida para o Rio, ela cumpriria mais de oito anos de cadeia, saindo com a anistia. Para azar dos torturadores, ela gravara na memória, durante o cativeiro em Petrópolis, os codinomes de seus torturadores e do médico que a atendera, além dos nomes dos presos políticos que por lá passaram e foram executados friamente, entre os quais Beto.
A denúncia foi feita somente depois que Inês deixou a prisão, pois os parentes temiam que ela sofresse uma vingança. Com o apoio de entidades como a OAB e a ABI e das famílias de desaparecidos, Inês não apenas denunciou a existência da Casa da Morte como foi ao consultório do médico e ex-militar Amílcar Lobo, para apontar o dedo na sua cara. O gesto levaria Amilcar, o “doutor Carneiro” dos porões da repressão, a ter o registro cassado pelo Conselho Regional de Medicina do Rio.
Mistério marca o acidente em casa
Esta memória apurada, capaz de recuperar detalhes da arquitetura da casa de Petrópolis sem a ajuda de uma anotação, sofreria um baque no dia 10 de setembro de 2003. Na ocasião, Inês morava na Rua Maria Antônia, em São Paulo. Mais cedo, avisara ao porteiro que receberia um marceneiro. Esse profissional, autorizado a subir, foi descrito mais tarde como um homem de 45 anos, magro e portando uma valise. Ele ficaria no apartamento apenas 45 minutos.
No dia seguinte, a faxineira Zilda Pereira dos Santos chegou cedo, para o serviço de rotina na casa de Inês. Tocou insistentemente a campainha e, como tinha uma cópia da chave, resolveu abrir a porta. Ao entrar, encontrou Inês caída e agonizante, entre a sala e o corredor manchados de sangue. A patroa tinha um grande ferimento na cabeça.
Com traumatismo crânio-encefálico, com afundamento de crânio, Inês passaria a ser uma pessoa com limitações, entre as quais dificuldade de “se expressar e se situar no ambiente, além de caminhar com dificuldade”, como avaliaram os médicos.
Passados quase oito anos, ninguém sabe o que aconteceu com Inês. O boletim policial da época, produzido pelo 77º Distrito Policial, registrou que a ex-guerrilheira teria sofrido um acidente doméstico. Mas o relatório dos médicos que a atenderam na Santa Casa de Misericórdia informa que a paciente apresentava “sinais de traumatismo craniano por golpes múltiplos diversos”.
- A família e os amigos exigem saber o que aconteceu. Está claro que invadiram o apartamento e massacraram a minha cliente - cobra o advogado de Inês, Vargas Villa.
O marceneiro nunca foi identificado. A polícia, por sua vez, reclamou que a irmã que passou a tutelar Inês (Elizabeth, já falecida) não quis colaborar com as investigações.
Outra luta da família é a transferência para o Rio do processo de interdição de Inês, que corre pela Justiça de Minas Gerais. A Justiça mineira tem negado o pedido sistematicamente. Esta semana, a ex-militante da VAR-Palmares foi submetida a uma perícia psicológica.
- Como o processo está em Minas, tudo fica mais difícil - lamenta outra irmã de Inês, Anitta, tutora provisória.
Anitta conta que só agora, meses depois da cirurgia de reconstituição da caixa craniana de Inês, a Justiça liberou o uso da pensão da ex-guerrilheira para o pagamento dos custos médicos. O aluguel e o mobiliário do apartamento ocupado por Inês em Niterói foram garantidos com a ajuda de parentes e amigos.
Porém, mesmo as limitações neurológicas não tiraram o brilho da trajetória de Inês. Em 2009, ela fez Dilma Rousseff chorar ao ser homenageada em Brasília, quando recebeu o prêmio de direitos humanos na categoria “Direito à Memória e à Verdade”. O então presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse na época:
- Minha querida Inês, só queria lhe dizer uma coisa: valeu a pena cada gesto que vocês fizeram, cada choque que vocês tomaram, cada apertão que vocês tiveram.