Escritor francês Jean-Marie Gustave Le Clézio venceu o Nobel.
Anúncio foi feito nesta quinta-feira pela academia suec
Reprodução
Capa do livro ''O africano'', de Jean-Marie Gustave Le Clézio (Foto: Reprodução)
Confira, abaixo, trecho do livro "O africano", do escritor francês Jean-Marie Gustave Le Clézio, vencedor do prêmio Nobel. A obra foi lançada no Brasil pela editora Cosac Naify.
"É à África que quero incessantemente voltar, à minha memória de criança. À fonte de meus sentimentos e de minhas determinações. O mundo muda, é certo, e aquele que lá está, em pé no meio do alto capinzal da planície, no sopro quente do vento que traz os cheiros da savana, o rumor penetrante da floresta, sentindo nos lábios a umidade das nuvens e do céu, aquele lá está tão longe de mim que não há história ou viagem que me permita alcançá-lo.
Às vezes, no entanto, vou andando ao acaso pelas ruas de uma cidade e, bruscamente, ao passar por uma porta, na parte baixa de um imóvel em construção, aspiro aquele cheiro frio de cimento recém-moldado e eis que estou na choupana de passagem de Abakaliki, eis que entro no cubo sombrio de meu quarto e vejo atrás da porta o grande calango azul que nossa gata estrangulou e me trouxe como um sinal de boas-vindas. Ou então, quando menos espero, sou invadido pelo perfume de terra molhada do nosso quintal em Ogoja, quando a chuva de monção rola pelo telhado da casa para ir zebrar riachinhos cor de sangue no solo todo fendido. Chego até a escutar, por cima da vibração dos carros engarrafados numa avenida, a música contundente e doce do rio Aiya.
Ouço as vozes das crianças que gritam, que me chamam, que estão diante da cerca-viva, na entrada do quintal, e trouxeram suas pedrinhas e suas vértebras de carneiro para brincar, para levar-me com elas à caça às cobras. Depois do almoço, finda a aula de aritmética com minha mãe, vou me instalar na varanda cimentada, diante do forno do céu branco, para fazer deuses de barro e pô-los para secar ao sol. Lembro-me de cada um deles, de seus nomes, de seus braços erguidos, de suas máscaras. Alasi, o deus do trovão, Ngu, Eke-Ifite, a deusa-mãe, Agwu, o malicioso. Mas eles são mais numerosos ainda, todo dia eu invento um nome novo, eles são meus chis, meus espíritos que me protegem e vão interceder por mim junto a Deus.
Vou olhar a febre subindo no céu crepuscular, os relâmpagos em silenciosa corrida por entre o cinza das escamas das nuvens aureoladas de fogo. Quando a noite estiver negra, escutarei pouco a pouco os passos do trovão, a onda que faz minha rede balançar e apaga a chama do meu lampião. Escutarei a voz de minha mãe, que conta os segundos que nos separam do impacto do raio e calcula a distância à razão de trezentos e trinta e três metros por segundo. Enfim o vento da chuva, muito frio, que avança com toda a força pelo alto das árvores; ouço cada galho que geme e quebra, o ar do quarto fica cheio da poeira que a água levanta ao bater na terra.
Tudo isso tão distante, tão próximo. Uma simples divisória, fina como um espelho, separa o mundo de ontem do meu mundo de hoje. Não falo de nostalgia. Tal impressão de desamparo nunca me causou nenhum prazer. Falo de substância, de sensações, da parte mais lógica de minha vida.
Alguma coisa me foi dada, alguma coisa me foi tomada de novo. O que está definitivamente ausente de minha infância: ter tido um pai, ter crescido junto dele na doçura da intimidade familiar. Sei que isso me fez falta, sem pesar, sem ilusão extraordinária. Quando um homem, dia após dia, olha a luz modificar-se no rosto da mulher que ele ama, quando espia cada brilho furtivo no olhar de seu filho. Tudo isso que um retrato, uma foto, sejam eles quais forem, nunca poderão captar.
Não quero falar de exotismo, esse vício ao qual as crianças são de todo alheias. Não porque vejam através dos seres e das coisas, mas justamente por verem tão-somente isso: uma árvore, um buraco na terra, uma coluna de formigas-carpinteiras, um bando de moleques levados em busca de uma brincadeira, um velhote de olhos baços que estica a mão descarnada, uma rua de uma aldeia africana, quando é dia de feira, eram todas as ruas de todas as aldeias, todos os velhos, todas as crianças, todas as árvores e todas as formigas. Esse tesouro está sempre vivo em meu íntimo, não pode ser extirpado. Muito mais que de simples lembranças, ele é feito de certezas.
Se eu não tivesse tido esse conhecimento carnal da África, se não houvesse recebido essa herança de minha vida antes de meu nascimento, em que teria me tornado?
Hoje, existo, viajo, criei por minha vez uma família, enraizei-me em outros lugares. Contudo, a cada instante, como uma substância etérea que circula entre as divisórias do real, sou traspassado pelo tempo de outrora, em Ogoja. E isso, em súbitos impulsos, me submerge e atordoa. Não somente essa memória de criança, extraordinariamente precisa quanto a todas as sensações, os odores, os sabores, a impressão de relevo ou de vazio, o sentimento da duração.
É escrevendo que agora o compreendo. Essa memória não é somente a minha. É também a memória do tempo anterior ao meu nascimento, quando meu pai e minha mãe andavam juntos pelas estradas do planalto, nos reinos do oeste de Camarões. A memória das esperanças e angústias de meu pai, de sua solidão, seu abatimento em Ogoja. A memória dos momentos de felicidade, quando eles dois estavam unidos pelo amor que acreditavam ser eterno. Iam então pela liberdade dos caminhos, e os nomes dos lugares adentraram-se em mim como nomes de família, Bali, Nkom, Bamenda, Banso, Nkong-samba, Revi, Kwaja. E os nomes das terras, Mbembé, Kaka, Nsungli, Bum, Fungom. As chapadas por onde avança lentamente o rebanho de animais com chifres de lua para enganchar nas nuvens, entre Lassim e Ngonzin.
Afinal de contas, talvez meu velho sonho não me tenha enganado. Se meu pai se tornou o Africano, por força de seu destino, eu, quanto a mim, posso pensar em minha mãe africana, aquela que me beijou e nutriu no instante no qual fui concebido, no instante em que eu nasci."
Nobel premia narrativa inovadora de escritor francês Le Clézio
Anxo Lamela.
Estocolmo, 9 out (EFE).- A Academia Sueca concedeu hoje o Nobel de Literatura de 2008 ao francês Jean-Marie Gustave Le Clézio, reconhecendo sua narrativa inovadora e devolvendo o prêmio a seu país depois de 23 anos.
Isto porque o chinês Gao Xingjian, premiado em 2000, tem nacionalidade francesa, mas não escreve nesta língua e, sim, em mandarim.
Desta forma, o último representante das letras francesas premiado tinha sido Claude Simon, em 1985.
Em sua decisão, a Academia Sueca classificou Le Clézio - nascido em Nice, em 1940 - como "autor de novos rumos, da aventura poética e do êxtase sensual" e "explorador da humanidade, dentro e fora da civilização dominante".
Le Clézio foi apontado como maior escritor francês vivo em enquete feita há alguns anos pelos leitores da revista "Lire". Além disso, recebeu prêmios importantes como o Renaudot e o da Academia Francesa.
No entanto, o autor não constava na lista dos principais favoritos este ano - encabeçada pelo italiano Claudio Magris -, como já ocorreu em 2007 com a britânica Doris Lessing e há quatro anos com a austríaca Elfriede Jelinek, uma escolha ainda mais inesperada.
Com Jelinek e Le Clézio há ainda uma outra coincidência: ambos foram reconhecidos com o Nobel no mesmo ano em que receberam o prêmio Stig Dagerman.
O escritor francês receberá esta premiação no próximo dia 25 em Älvkarleby, ao norte de Estocolmo, confirmou hoje a "Rádio da Suécia".
Le Clézio, que se declarou "comovido e agradecido", anunciou que estará em Estocolmo em 10 de dezembro para receber o Nobel.
Sua escolha alimenta ainda a polêmica anterior provocada por declarações do secretário permanente da Academia Sueca, Horace Engdahl, nas quais chamava a literatura dos Estados Unidos de "provinciana" e denunciava seu papel "marginal" nas letras universais.
Engdahl é especialista em literatura francesa e tradutor para o sueco de escritores como Maurice Blanchot e Jacques Derrida.
Le Clézio é autor de cerca de 50 obras, principalmente romances, mas também ensaios e livros infantis, nos quais expôs seu gosto pelas viagens, sua sensibilidade ecológica e seu amor pela cultura ameríndia e pelo México.
Filho de mãe francesa e pai britânico estabelecidos na ilha Mauricio, seus primeiros anos foram marcados por viagens familiares.
Com 7 anos, Le Clézio, bilíngüe em francês e inglês, escreveu seus dois primeiros livros, relatando sua viagem à Nigéria.
Seu primeiro romance, "Le procès-verbal" (1963), causou sensação: partindo das últimas conseqüências do existencialismo e do nouveau roman - movimento literário francês - Le Clézio conseguiu "resgatar as palavras do estado degenerado da linguagem cotidiana e a elas devolveu a força para invocar uma realidade existencial".
O livro, que recebeu o prêmio Renaudot, marcou a linha seguida por obras como "La fièvre" (1965) e "Le déluge" (1966). Mais tarde, a preocupação ecológica ficou evidente em "Terra amata" (1967) e "La guerre" (1970), entre outras.
Sua consagração definitiva veio com "O Deserto" (1980), coleção de imagens sobre uma cultura perdida norte-africana em contraste com a visão da Europa através dos olhos de imigrantes forçados, que valeu a ele o prêmio da Academia Francesa.
A proximidade com o norte da África vem de sua esposa Jemia, de origem marroquina, com quem se casou em 1975.
Suas longas estadias no México e na América Central no começo dos anos 70 marcaram a evolução de sua obra e o levaram a buscar uma nova espiritualidade em contato com os índios, expressada em "Voyage de l'autre côté".
A tradução para o francês de obras como "As profecias de Chilam Balam" e "O sonho mexicano ou o pensamento interrompido" revelam sua fascinação pelo passado do México, objeto de sua tese de doutorado na Universidade de Perpignan (1983).
Seu trabalho acadêmico o levou a lecionar em universidades do México, Bristol, Londres, Perpignan, Bangcoc, Boston, Austin e Alburquerque (Estados Unidos), uma das cidades onde mora, junto com Nice e as ilhas Maurício, há cerca de dez anos.
O sonho do paraíso perdido, neste caso as ilhas do oceano Índico, aparece em outro de seus livros mais famosos, "À procura do ouro" (1985), e se acentua em suas obras seguintes.
Temas como a memória, o exílio, a reorientação da juventude e o conflito cultural correspondem a uma tendência rumo à exploração do mundo da infância e a história de sua própria família, presentes em "Onitsha" (1991), "A quarentena" (1995), "Révolutions" (2003) e "O africano" (2004).
Outros títulos publicados no Brasil são "Diego e Frida" (1994) e "Peixe dourado" (2001). "Ritournelle da faim", livro mais recente, é o último nome a acrescentar em uma extensa produção.
Apesar de não ser considerado o favorito ao Nobel, sua editora sueca, Elisabeth Grate, revelou que tinha comprado champanhe nesta quarta-feira porque achou que poderia ter um motivo de comemoração no dia seguinte. EFE
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