Auxílio-doença
A Alta Programada só serve para o INSS reduzir custos
por Luiz Salvador
Segundo dados recentes divulgados pela Secretaria de Previdência Social, o déficit da Previdência Social no primeiro semestre de 2006 alcançou R$ 19,023 bilhões, um crescimento de 13,6% em relação aos R$ 16,739 bilhões apurados no mesmo período do ano passado. No mês de junho, as contas do INSS — Instituto Nacional do Seguro Social ficaram negativas em R$ 3,156 bilhões, com queda de 4,6% em relação a maio, quando o déficit atingiu R$ 3,309 bilhões, segundo a Secretaria de Previdência Social.
Procurando diminuir esse propalado déficit, o INSS passou a adotar o procedimento interno de conceder as conhecidas “Altas Programadas”, reguladas por ato administrativo interno conhecido como “COPES” e agora com nova denominação intitulada: DCB — Data de Cessação do Benefício.
Em nosso entender, as causas reais desse desajuste entre receitas e despesas, têm origem outras vertentes que não são levadas em conta, o da prática costumeira:
a) das conhecidas fraudes, que não tem merecido a devida atenção, apuração e punição exemplar, exigindo-se a reposição do caixa surrupiado;
b) das subnotificações acidentárias, levando o INSS a conceder benefícios auxílio-doença, sem fonte de custeio, aumentando assustadoramente as despesas, como vem sendo anunciadas, o que está a exigir a implantação imediata do nexo epidemiológico para a concessão sem a emissão da CAT, do benefício auxílio-doença acidentário (B91), ao invés do B-32 (auxílio-doença comum), como temos sustentado em nossos artigos: Consultor Jurídico; Jusvi.com; Estudando Direito e adital.com.br
O governo ao invés de combater as fraudes, aumentando a necessária fiscalização, punição exemplar aos descumpridores da lei, busca, na verdade, apenas medidas paliativas de aumento da receita e diminuição dos custos, anunciados pelo propalado déficit.
O discurso oficial justificador da necessidade do INSS manter a política interna de concessão da Alta Programada justifica-se à razão de que esse sistema favorece o segurado, com a eliminação de filas, muitos exames e diversas perícias... Não obstante ao argumento oficial, constata-se que na verdade, a preocupação real é apenas com a diminuição dos custos da autarquia, mas jogando os ônus pela adoção dessa medida nos ombros dos segurados e em especial do trabalhador adoecido, infortunado e lesionado, correndo o risco de ao retornar ao trabalho ainda com seqüelas, agravar-se seu estado de saúde e da lesão incapacitante, como tem ocorrido em milhares de caso que tem sido denunciados.
A manutenção dessa política interna do INSS em conceder a Alta Programada além de ilegal, por violação à Lei 8.213/91, afronta ainda as garantias constitucionais de prevalência à vida, à saúde e a incolumidade física e mental de todos e em especial da classe trabalhadora:
a) Constituição Federal:
Art. 196: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Art. 197: “São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado”.
A Lei 8.213/91, bem como a Lei 8.212/91 regulamenta a garantia constitucional consubstanciada pelos ditames previstos nos artigos 196 e seguintes, visando dar efetividade ao primado constitucional da prevalência do social, do primado do trabalho, das garantias à vida, à saúde, a uma vida digna com qualidade, servindo o capital de parceiro do Estado para que este cumpra com seu principal objetivo, o da promoção do bem comum a todos, sem exclusão.
Examinando-se a Lei 8.213/91, verifica-se que a prática costumeira do INSS em conceder Alta Programada, mesmo antes de ser assegurado ao trabalhador vitimado realização de perícia para apuração concreta se a incapacitação deixou de existir e ou não, viola as garantias constitucionais apontadas, como também ainda a Lei 8.213/91, em diversos de seus dispositivos, dentre os quais, o da proibição de suspensão do benefício, enquanto persistir a incapacitação que torna inapto o segurado para receber alta e retorno ao trabalho, disciplinado pelo artigo 62: “O segurado em gozo de auxílio-doença, insusceptível de recuperação para sua atividade habitual, deverá submeter-se a processo de reabilitação profissional para o exercício de outra atividade. Não cessará o benefício até que seja dado como habilitado para o desempenho de nova atividade que lhe garanta a subsistência ou, quando considerado não-recuperável, for aposentado por invalidez”
Já no artigo 1º, a Lei 8.213/91, que vem sendo desrespeitada, determina que é dever da Previdência Social, mediante contribuição, assegurar aos seus beneficiários meios indispensáveis de manutenção, por motivo de incapacidade, desemprego involuntário, idade avançada, tempo de serviço, encargos familiares e prisão ou morte daqueles de quem dependiam economicamente.
Tratando-se de serviços públicos necessários, urgentes, inadiáveis, o princípio adotado não é o do lucro, mas o da Solidariedade e Universalidade, como se extrai do exame do artigo 2º: “A concessão dos benefícios pelo INSS obedecem aos seguintes princípios e objetivos:
I - universalidade de participação nos planos previdenciários;
II - uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais;
III - seletividade e distributividade na prestação dos benefícios;
IV - cálculo dos benefícios considerando-se os salários-de-contribuição corrigidos monetariamente;
V - irredutibilidade do valor dos benefícios de forma a preservar-lhes o poder aquisitivo;
VI - valor da renda mensal dos benefícios substitutos do salário-de-contribuição ou do rendimento do trabalho do segurado não inferior ao do salário mínimo;
(...)
VIII - caráter democrático e descentralizado da gestão administrativa, com a participação do governo e da comunidade, em especial de trabalhadores em atividade, empregadores e aposentados.
Parágrafo único. A participação referida no inciso VIII deste artigo será efetivada a nível federal, estadual e municipal.
O artigo 18 estabelece o rol de benefícios de lei aos segurados: “O Regime Geral de Previdência Social compreende as seguintes prestações, devidas inclusive em razão de eventos decorrentes de acidente do trabalho, expressas em benefícios e serviços:
I - quanto ao segurado:
a) aposentadoria por invalidez;
b) aposentadoria por idade;
c) aposentadoria por tempo de serviço;
d)aposentadoria especial;
e)auxílio-doença;
f) salário-família;
g) salário-maternidade;
h) auxílio-acidente;
i) (Revogada pela Lei 8.870, de 15.4.94)
II - quanto ao dependente:
a) pensão por morte;
b) auxílio-reclusão;
III - quanto ao segurado e dependente:
a) (Revogada pela Lei 9.032, de 28.4.95)
b)serviço social;
c)reabilitação profissional.
Ainda, o artigo 19, define o que venha a ser reconhecido como acidente: “É o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da empresa ou pelo exercício do trabalho dos segurados referidos no inciso VII do artigo 11 desta Lei, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho”.
Suspensão do Contrato
O trabalhador tem o direito a ter assegurado trabalhar num meio ambiente ergonomicamente equilibrado, sem risco, visando assegurar sua incolumidade física e mental, para que continue podendo extrair da venda de sua força de trabalho, o suporte econômico necessário à sua mantença, bem como a de seus familiares. Em caso de adoecimento e ou acidente e em gozo de auxílio-doença será considerado pela empresa como licenciado, a teor do disposto no artigo 63 da Lei 8.213/91. Examinando esse dispositivo, recentemente o Tribunal Superior do Trabalho, decidiu:
“Estando suspenso o contrato de trabalho, em virtude de o empregado haver sido acometido de doença profissional, com percepção de auxílio-doença, opera-se igualmente a suspensão do fluxo do prazo prescricional.” (RR-424/2001-069-09-00.5) (Fonte: TST)
Busca da Tutela Judicial
A Lei 7.347/85, que disciplina a Ação Civil Pública de responsabilidade por danos, em seu artigo 5º, dá legitimidade processual para agir ao Ministério Público, à União, aos Estados, aos Municípios, podendo também ser propostas essas mesmas ações de ACP por autarquia, empresa pública, fundação, sociedade de economia mista ou por associação.
O artigo 16 da mesma lei regula a extensão da aplicação da decisão que for prolatada e dentro dos limites territoriais de cada órgão prolator, sendo que a sentença fará coisa julgada erga ommenes (valendo contra todos). Veja o entendimento do Tribunal Regional Federal da 3ª Região - sobre essa questão:
“Os sindicatos têm legitimidade ativa para a ACP, não precisando, o direito a ser tutelado, ser exclusivo da categoria por ele representada por se tratar de hipótese de substituição processual (CF, art. 8º, III, Lei 8.078/90, art.82, IV; Lei 7.347/85, art.5º)”. Ap.Civ.339668, DJU 31.10.00, Rel. Des. Souza Ribeiro).
Analisando as garantias constitucionais e legais acima descritas, recentemente em Minas Gerais o juiz da 10ª Vara da Família de Belo Horizonte suspendeu a aplicação do DCB — Data de Cessação do Benefício para toda Minas Gerais ao entendimento seguinte:
“Cabe ao INSS o ônus de comprovar a recuperação da capacidade para o trabalho do beneficiário. Em outras palavras, a cessação da incapacidade não pode ser presumida pelo mero decurso de um prazo predeterminado” Processo 2006.38.00.019240-3
Quadro Nacional das Ações Civis Públicas
Diversas outras medidas liminares determinando a suspensão da Alta Programada e/ou do DCB — Data de Cessação do Benefício, também já foram prolatadas:
1ª Vara São José dos Campos — Processo 2006.61.03.00.2070-3
Autores: Sindicatos Químicos e Condutores e Ministério Público Federal
Liminar concedida para suspender a alta programada em todo território nacional. Decisão suspensa por força da determinação da presidente do TRF 3ª Região (Processo SL 2006.03.00.052706-3)
2ª Vara de Bauru-SP — Processo 2006.61.08.003405-9
Autores: Assoc. Lesados (ALERB), Sindicatos Químicos, Gráficos, Alimentação, Construção Civil, Comércio e Hotéis.
Liminar concedia para suspender a alta programada no raio de atuação dos autores. Aguarda decisão de efeito suspensivo em agravo de instrumento já interposto, porém ainda sequer recebido/autuado. Processo 200661080006921 – Vara Federal de Bauru-SP. Isso posto, defiro, em parte, a liminar, e determino à autoridade impetrada que somente decida pela manutenção ou cessação do benefício do impetrante após a realização de perícia médica, ficando proibida a cessação com base em perícia realizada em data diversa da em que analisada a manutenção do benefício.
Ao deferir a suspensão, o juiz acolheu o argumento do procurador da República Felipe Peixoto, “afigura-se manifestamente ilegal o ato da autarquia previdenciária por cujo intermédio resta cancelado o pagamento do benefício, sem que o segurado seja submetido a perícia médica que demonstre a sua completa recuperação”.
O juiz federal Roberto Lemos dos Santos Filho, de Bauru (SP), ao deferir a liminar, garantindo o direito à manutenção de auxílio-doença até o efetivo restabelecimento da capacidade de trabalho da segurada, examinando a questão debatida, concluiu com propriedade:
“O auxílio-doença é devido ao segurado desde a perda de sua força de trabalho até o momento em que ele permanecer incapacitado para exercer sua função. A alta médica programada afronta o disposto no artigo 60 da Lei 8.213/1991. O artigo estabelece que o auxílio-doença ao segurado passa a contar da data do início da incapacidade enquanto ele permanecer incapaz. A segurada recebeu o auxílio-doença após realização de perícia, a partir de laudo que atestou sua incapacidade para trabalhar. Porém, no mesmo laudo foi pré-estabelecida data para o fim do benefício. Me parece curiosa a situação colocada nestes, vale dizer, como é possível alguém constatar que uma pessoa está incapacitada para o trabalho, e no mesmo ato antever data específica na qual o doente estará habilitado a trabalhar? Tenho que essa forma de agir não pode prevalecer sob pena de afronta aos arts. 1º, inciso III, 6º, 194 e 201, inciso I, todos da Constituição Federal”.
Vara Federal de Brusque — Processo 2006.72.15.004360-8
Autor: Ministério Público Federal
“Liminar concedida para suspender a alta programada em todo o estado de SC. Concedido 60 dias ao INSS para efetivar a medida à partir de 05.07.06. Aguarda decisão de efeito suspensivo em agravo de instrumento já interposto, porém ainda sequer recebido/autuado. Demissão Afastada. Defiro a tutela antecipada e concedo a liminar pleiteada e determino que a autarquia requerida restabeleça em favor do requerente o pagamento do benefício previdenciário auxílio-doença 125.890.673-0, no prazo de 10 dias para cumprimento da ordem judicial, sob pena de multa diária de R$ 350”
Hierarquização das leis
Mesmo assim, o governo acaba de editar o Decreto 5.844, procurando legalizar o procedimento do INSS e manter a sistemática de conceder Alta Programada, trazendo benefícios ao INSS com a redução de suas despesas, mas trazendo prejuízos diversos e ônus aos trabalhadores segurados. Ao contrário do que se esperava, o INSS não tem conseguido, em muitos locais, agendar as perícias de Pedido de Prorrogação ou de Pedido de Reconsideração em prazos aceitáveis.
Em muitas agências do INSS, as perícias têm sido agendadas para dois ou três meses, durante os quais o paciente segurado nada recebe, pois nem a empresa se responsabiliza, tampouco o MPS, mesmo que a demora do agendamento da perícia seja de responsabilidade do INSS.
O governo federal, diante do que vem decidindo o Poder Judiciário de declarar nula e ineficaz a prática reiterada de Alta Programada, acaba de editar o Decreto 5.844, procurando emprestar ares de legalidade ao regulamento interno do INSS, visando manter o procedimento de concessão de alta programada, agora sobre outra denominação: DCB — Data de Cessação do Benefício.
Descurou-se o executivo da questão constitucional que trata da Reserva Legal na hierarquização das leis. Decretos e regulamentos são atos administrativos destinados a prover situações gerais ou individuais, abstratamente previstas, de modo expresso, explícito ou implícito, pela legislação, não podendo alterar as garantias da lei, já que como ato administrativo, o decreto está sempre em situação inferior à da lei, e, por isso mesmo, não a pode contrariar.
Examinando essa questão da hierarquização das leis, MIGUEL REALE ensina: “... não são leis os regulamentos ou decretos, porque estes não podem ultrapassar os limites postos pela norma legal que especificam ou a cuja execução se destinam. Tudo o que nas normas regulamentares ou executivas esteja em conflito com o disposto na lei não tem validade, e é susceptível de impugnação por quem se sinta lesado. A ilegalidade de um regulamento importa, em última análise, num problema de inconstitucionalidade, pois é a Constituição que distribui as esferas e a extensão do poder de legislar, conferindo a cada categoria de ato normativo a força obrigatória que lhe é própria.” (in “Lições Preliminares de Direito”, 7ª Ed., Saraiva, São Paulo, 1980, p. 163).
Trata-se, portanto, de reserva legal absoluta, conforme aponta José Afonso da Silva: “É absoluta a reserva constitucional de lei quando a disciplina da matéria é reservada pela Constituição à lei, com exclusão, portanto, de qualquer outra fonte infralegal, o que ocorre quando ela emprega fórmulas como: “a lei regulará”, “a lei disporá”, “a lei complementar organizará”, “a lei criará”, “a lei definirá”, etc.”. (in “Curso de Direito Constitucional Positivo”, 13ª Ed., Malheiros Editores, São Paulo, 1997).
Não bastasse isso, é fato notório, púbico e consabido de todos que o INSS, apesar dos propalados propósitos de melhoria, na prática não consegue realizar novas perícias em todas as regiões, visando assegurar ao segurado que tenha recebido Alta Programada, a confirmação e ou não de que as causas da incapacitação constatada tenham cessado, justificando o retorno ao trabalho, sem risco ao trabalhador de agravamento da doença e ou lesão sofrida.
Assim, a edição do Decreto 5.844 em nada modifica a situação atual de ilegalidade já reconhecida pelo Poder Judiciário, evidenciando-se a nítida intenção do governo em negar vigência à Lei 8.213/91 que não permite Alta Programada enquanto persistir a incapacitação que motivou a concessão do benefício assegurado pela autarquia, além de tratar-se de grave ofensa e violação aos princípios constitucionais prevalentes de fiel observância da Reserva Legal na hierarquização das leis em nosso país.
Revista Consultor Jurídico, 31 de julho de 2006
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