Luiz Flávio Gomes - 13/10/2009
O Conselho Federal de Medicina, por meio da Resolução 1.931, de 17 de setembro de 2009 (texto publicado no DOU de 24.09.09), aprovou o seu novo Código de Ética Médica. Apesar da atualidade da discussão em torno da eutanásia, ortotanásia e morte assistida (suicídio assistido), sobre esses controvertidos temas o novo Código de Ética nada disse. No seu Capítulo I, que cuida dos Princípios Fundamentais, proclamou o seguinte:
“XXII – Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará sob sua atenção todos os cuidados apropriados”.
No Capítulo V, que trata da relação com pacientes e familiares, ficou estabelecido o seguinte: É vedado ao médico (art. 41) “abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal”.
No parágrafo único se lê: “Nos casos de doença incurável e terminal, deve o medido oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal”.
O novo Código de Ética Médica, em síntese, nada disse sobre a eutanásia ou ortotanásia ou morte assistida. Mandou evitar a distanásia e ainda recomendou a sedação paliativa.
Para se compreender tudo quanto acabamos de escrever, vamos aos conceitos:
(a) eutanásia (morte boa): é a prática pela qual se abrevia a vida de um enfermo incurável (terminal ou não), a seu pedido e em razão do seu insuportável sofrimento, de maneira controlada e assistida. O ato que causa a morte é praticado por um terceiro;
(b) ortotanásia (ou eutanasia passiva): é a prática pela qual se abrevia a vida de um enfermo incurável (terminal ou não), a seu pedido e em razão do seu insuportável sofrimento, mediante o desligamento de aparelhos ou a cessação de procedimentos terapêuticos ou da medicação ou da alimentação. O ato do desligamento ou da cessação é também praticado por um terceiro;
(c) morte assistida (ou suicídio assistido): é a prática (ou seja, o auxílio) pela qual se abrevia a vida de um enfermo incurável (terminal ou não), a seu pedido e em razão do seu insuportável sofrimento. O ato da morte é gerado pela própria vítima, que é auxiliada por um terceiro;
(d) sedação paliativa: não abrevia a morte da vítima, apenas lhe dá certo conforto, evitando (ao máximo) a dor e o sofrimento;
(e) distanásia: é a continuação (ou prolongamento), por meios artificiais, de um tratamento ou de uma medicação que visa a manter vivo um enfermo incurável (terminal ou não);
(f) mistanásia (ou eutanásia social): é a morte do miserável por falta de assistência (a vítima ou nem sequer ingressa no sistema de saúde ou ingressa e não recebe a assistência devida);
(g) eutanásia eugênica: é a morte da vítima por razões eugênicas, de raça (isso ocorreu durante o nazismo, com o holocausto).
No ano de 2006, por força da Resolução 1.805/06, o Conselho Federal de Medicina, no dia 09 de novembro, chegou a aprovar a suspensão dos tratamentos e procedimentos que prolongam a vida dos doentes terminais, sem chance de cura. O texto aprovado foi interpretado como permissivo da ortotanásia (que gera a abreviação da vida, mediante a suspensão ou cessação dos procedimentos desnecessários ou inúteis). O Ministério Público ingressou com ação civil pública e conseguiu, na Justiça Federal de Primeira Instância, a suspensão em sede de liminar da validade da referida resolução.
Comentando essa decisão, Alexandre Magno F. M. Aguiar (no site Jus Vigilantibus), com todo acerto, escreveu:
A fundamentação da decisão foi o fato de que, na visão do magistrado, a ortotanásia “parece ser um homicídio”. Trata-se de um conceito bem frágil para uma decisão liminar, que exige o juízo de verossimilhança (Código de Processo Civil, art. 273). E há argumentos bastante sólidos em sentido contrário2.
Nesse ponto, é inevitável lembrarmos de José Saramago, que, em seu livro “As Intermitências da Morte”3, narra uma situação em que a morte simplesmente “deixou de ocorrer” em determinado país. Todas as pessoas mantinham-se vivas, mesmo os pacientes terminais. Formou-se, rapidamente, uma multidão de moribundos, pessoas que, mesmo contra sua própria vontade, ficavam indefinidamente em um limbo entre a vida e a morte.
A autonomia do indivíduo é desprezada em nome de uma ilusória proteção. De acordo com esse pensamento de matriz esquerdista, nunca seríamos capazes de decidir nada, pois estaríamos sempre a mercê de algum fator externo, principalmente de caráter social ou econômico. Nem o consentimento livre e informado do paciente seria suficiente.
Os regimes totalitários esmeraram-se em cuidar de cada aspecto da vida das pessoas. Tudo deveria ser determinado pelo Estado, inclusive o que sentir e o que pensar4. Comumente, o Estado vê-se tentado a considerar as pessoas como menores que requerem proteção, e passa a legislar sobre aspectos mínimos da vida de cada um. Proibir a ortotanásia é uma dessas tentações. Temos que viver a qualquer custo porque o Estado, por razões “quase esotéricas”, diz que isso é melhor para nós. Essa ideologia transparece de forma assustadora na petição inicial da ação civil pública, in verbis:
“Devem ser analisados todos os casos, mas caso a caso, de forma que, mesmo de lege ferenda, determinar se uma conduta médica ou dos representantes legais do paciente terminal, consciente ou não, capaz ou não, DEVE OBRIGATORIAMENTE passar pelo crivo dos entes legitimados constitucionalmente para dar a última palavra sobre o fim de uma vida: O Ministério Público e o Judiciário.” (grifou-se)
Assim, não importando se o paciente está consciente ou não, é considerado capaz ou incapaz. De qualquer maneira, ele não tem condições de decidir sobre como e quando será o fim de sua vida. Quem tem esse poder é o Estado, na figura do magistrado e do membro do Ministério Público. Seríamos todos absolutamente incapazes, à espera do “Grande Irmão” que viesse dizer o que é melhor para nós?
Desde que os filósofos partidários da secularização (separação entre o Estado e a Igreja, entre o Direito e a religião), destacando-se, dentre eles, Descartes, que sentenciou “Penso, logo existo” (penso por mim e existo para mim, não para Deus), não há mais espaço (para os que não creem em nenhum Deus) para a compreensão da vida senão a partir da visão antropocêntrica do mundo. O homem é o centro do universo. A visão teocêntrica (tudo centrado em Deus) não pode ter a pretensão de dominar todos os seres humanos (porque a todos é permitido ter a crença que melhor lhe convier ). As ideologias totalitaristas tampouco podem pretender acabar com a autonomia humana. Num mundo laico e tolerante já não existe espaço para crenças e convicções fundamentalistas ou totalitaristas. O Direito justo (constitucional e humanista) não pode governar todas as pessoas (os que creem e os que não creem) sob a égide de uma única norma sectarista. O melhor é preponderar a tolerância (e deixar que as pessoas, desde que de modo razoável, ou seja: não arbitrário, cuidem do seu destino, inclusive o final). Nem o Estado nem a religião podem revogar a visão antropocêntrica do mundo que deve tolerar as distintas crenças e convicções, enquanto não prejudiquem terceiros.
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