Tema: Eça de Queirós e a estética do fimConferencista: Professor Carlos Reis18/07/2000
Presidente TARCÍSIO PADILHASenhores acadêmicos, minhas senhoras e meus senhores. Vamos dar início ao Ciclo sobre o Centenário de Eça de Queirós, e quanto ao significado do ciclo e à apresentação do conferencista, ambos os aspectos serão ventilados pelo secretário-geral, acadêmico Carlos Nejar, que é o coordenador deste evento.
Acadêmico CARLOS NEJARQuero dizer da nossa grande honra com a presença do escritor, professor Carlos Reis, que é catedrático da Universidade de Coimbra, onde leciona Língua Portuguesa e Teoria da Literatura, professor convidado também das Universidades de Hamburgo, Salamanca, Wisconsin e Madison, pró-reitor para promoção e difusão da língua e cultura portuguesa da Universidade Aberta, e coordenador da edição crítica das obras de Eça de Queirós e da História Crítica, da Literatura Portuguesa.Cabe ressaltar, também, a sua condição de diretor da Biblioteca Nacional de Lisboa. Entre os livros publicados, o livro Entrevista, que fez com José Saramago, antes até da premiação do escritor português. Dirige várias revistas como a Queroziana e Leituras, a Revista da Biblioteca Nacional, e é autor de diversos livros sobre Eça de Queirós.
É uma grande alegria para nós, nesta tarde, poder ouvi-lo nesta união que temos com a literatura portuguesa, a cultura portuguesa, através também da nossa língua, estando presente aqui a sua esposa, que também é professora catedrática, Isabel Reis. Ficaremos muito honrados com a alegria de podermos ouvir a conferência.
Professor CARLOS REISHá alguns momentos no tempo pessoal, em que tudo parece, de repente, harmonizar-se e ganhar sentido. Quando ainda em 1973, há não muito tempo, e contudo, há já algum tempo, escrevi o meu primeiro trabalho sobre Eça de Queirós, que seria então a minha dissertação de licenciatura, longe estava de imaginar que, anos depois, um pouco mais de vinte e cinco anos depois, eu estaria na prestigiada Academia Brasileira de Letras, a abrir um Ciclo de conferências sobre esse que tem sido, em toda a minha vida universitária, o meu escritor.
Longe estava eu de pensar - naquele ano de 1973, o ano 2000 era quase um mito impossível -, que neste ano, como presidente da Comissão Nacional das Comemorações do Centenário da morte de Eça de Queirós, teria o privilégio de falar nesta Casa de Machado de Assis. Longe estava eu de pensar que me caberia, neste ano, a responsabilidade grata de organizar, na Biblioteca Nacional de Lisboa, aquela que é certamente a maior exposição alguma vez feita sobre Eça de Queirós.
Todas essas razões convergem na grata alegria que tenho de estar hoje aqui convosco, alegria que tem também alguma coisa de responsabilidade, que é de falar para um público para quem Eça de Queirós é certamente uma presença familiar, freqüente, quase constante, e de trazer até este público exigente uma reflexão sobre o meu escritor de sempre.
Não quero encetar essa reflexão, sem expressar o meu agradecimento pela honra que me é dada de estar hoje aqui convosco, e sem o expressar de uma forma que é gratidão portuguesa, trazendo até vós uma lembrança de Portugal. Essa lembrança é, de certa forma, Eça de Queirós, e ela é o catálogo da exposição que está na Biblioteca Nacional, e que vou ter o gosto e a honra de passar às mãos do senhor presidente da Academia Brasileira de Letras, justamente como testemunho dessa minha gratidão.
Falarei com vossa benevolência sobre Eça de Queirós e a estética do fim, e falarei sobre a estética do fim em Eça de Queirós, começando por aquilo que é o princípio de tudo, começando pelos textos.
Um dia algures na ação dos Maias, Carlos da Maia tem a seguinte conversa com a senhora condessa de Gouverinho. "Carlos ficou só com a senhora condessa, que recuperara a sua cadeira cor-de-rosa. Imediatamente, ela perguntou pelo Ega. - Coitado, lá está em Celurico. - Ela protestou com um lindo riso contra aquela frase tão feia! Lá está para Celurico? - Não, não queria, coitado do Ega. - Coitado, lá está em Celurico - ação fúnebre". Celurico era horrível para um fim do romance.
É esta, já difusamente, quase uma reflexão metaliterária em contexto ficcional. É a reflexão de uma personagem que, sem disso se aperceber, tenha consciência de que a literatura, de alguma forma, projeta-se sobre a nossa vida e interage com trajetos humanos, e imita, nesses trajetos humanos, um fim, um fim de romance. Ou por outras palavras, não é possível comentar este destino episódico do João da Ega, sem trazer até este destino episódico a imagem de um romance que acaba. Fim do romance, fim do episódio amoroso que tinha sido vivido por João da Ega, fim de narrativa, fim que traz em si conotações, neste caso negativas, mais do que positivas. Fim que remete para afinidades, para derivações do próprio conceito de fim, para o desenlace, para o desfecho, mas também, em alguns momentos de obras de Eça de Queirós, para o sentido da extinção, a extinção de raça.
Nos Maias fala-se, precisamente no primeiro capítulo, na raça dos Maias, e nos Maias e também na Ilustre casa de Ramires e também na Cidade e as serras, a problematização do fim é, de certa forma, a problematização do fim da família. Jacinto, na Cidade e as serras, a certa altura, diz: "Sou o último Jacinto. Jacinto, ponto final." Longe estava ele, então, de pensar que este fim é, no fundo, um falso final, porque logo depois de dizer isto, já nas serras, "Sou o Jacinto, ponto final", logo depois: "Que casa é aquela com os dois torreões?" - pergunta Jacinto. "É Flor da Malva" - responde José Fernandes, apresentando a casa de onde sairá a Joaninha, que há de favorecer não o fim, mas a continuação da família.
Em Eça de Queirós, são inúmeros os sentidos do fim, as reflexões sobre o fim. Qual, de certa forma, o trauma do fim? Em certa medida, o tempo de iniciação literária de Eça de Queirós, em 1866, na Gazeta de Portugal, é um tempo que vive textos, que se faz de textos, em que se foge ao fim. Os textos da Gazeta de Portugal, esses textos incipientes, heterodoxos, provocatórios, são textos que, pelo seu caráter fragmentário, pela sua serialidade incipiente, de certa forma, recusam o fim, de certa forma, envolvem uma continuação constante.
Mas esse tempo de iniciação na história literária de Eça de Queirós dá lugar a um tempo de aprendizagem e de maturação. O tempo da aprendizagem e da maturação queiroziana é, como bem sabido, o tempo da escrita dita realista, que se nutre da doutrina que Eça de Queirós, ele mesmo elabora nas Conferências do Casino, e onde Eça de Queirós concebe uma literatura e uma arte com um fim, com um intuito de moral, de justiça e de verdade. Algum tempo depois, alguns anos depois, numa carta conhecida a Teófilo Braga, Eça de Queirós fala num projeto que alimentava para depois do Primo Basílio, o projeto das Cenas da vida portuguesa, e diz: "O meu fim nas Cenas da vida portuguesa é pintar a sociedade portuguesa etc. etc."
É o tempo em que Eça cultiva um gênero literário, um romance que lhe serve como instrumento finalístico, um romance que, na sua estética própria desse tempo, se regia por um princípio de organicidade. O romance desse Eça, O primo Basílio, O crime do padre Amaro, é um romance internamente coerente, é um romance que tem um fim, o limite do texto, mas é um romance que, curiosamente, cultiva também, do ponto de vista ideológico, um princípio de transcendência que está para além do texto, quer dizer, um romance que tem um fim em si, como o texto que acaba e que não pode continuar, mas um romance que cultiva outro fim, o fim extra-literário, que é o de uma sua função ideológica e social.
Curiosamente, quando escreveu e reescreveu e voltou a escrever O crime do padre Amaro, Eça de Queirós cultivou, com especial cuidado, o fim do romance, o episódio final, epílogo de uma história que devia apontar para além desse fim, para um outro fim, que é justamente nessa estética da função, nessa altura, e parecia a Eça que a literatura tinha uma função, uma função social, ideológica, até política. Depois disso, e superada essa concessão porventura excessivamente finalística da literatura, o que valeu a Eça de Queirós, como bem sabem, a crítica severa de Machado de Assis, depois disso, o Eça dos anos 80 do século XIX é o Eça que cultiva aquilo que, noutro local, chamei "outros mundos possíveis". Há mais mundos, em suma, descobre o Eça e descobre-o, em parte, porque leu a crítica de Machado de Assis.
Há mais mundos literários do ponto de vista temático, do ponto de vista propriamente ficcional, do ponto de vista formal, e nesses novos mundos, o fim deve rearticular-se, o fim deve rearticular-se em termos ideológicos, porque, para esse Eça e para essa literatura, já não é tão claro que a literatura deva ter um fim extra-literário no contexto social em que existe, e o fim deve rearticular-se também, porque nas obras que então publica, sobretudo quando elas são obras de caráter fragmentário, o fim obriga a uma nova problematização desse conceito.
Aquilo que temos chamado nos últimos anos "o último Eça" é um escritor que, de certa forma, prepara de outro modo o fim das suas obras, e que desse modo, prepara o seu próprio fim. Falar, portanto, a propósito deste último Eça, numa espécie de sindrome do fim, sendo que este último Eça, como é sabido, é que prepara, que escreve, mas que não chega a ver publicadas, a Correspondência de Fradique Mendes, A ilustre casa de Ramires e A cidade e as serras. É o Ega que cultiva agora outros discursos: o discurso da geografia, o discurso do conto de temática mitológica, até o discurso da auto-biografia mitigada. E é o Eça que, na Cidade e as serras, aborda outros fins, bem mais complexos e transcendentes do que o fim do romance, o fim do século, o fim da civilização ou de uma certa civilização, também o fim de uma certa história, que é a História de Portugal.
Já nos Maias - curiosamente e como se sabe, nos Maias encerra-se muito do que vem antes e do que vem depois deles -, já nos Maias, de certa forma, se antecipa esta nova problematização do fim, do fim do romance em si mesmo, e do fim da literatura para além do romance que tem esse fim. Lembro rapidamente um episódio, em que tal problematização aparece em filigrana. É o episódio em que começa a conquistar-se uma literatura com fins para além dela.
Relembro: "Nessa noite, Alencar teve o regozijo de encontrar aliados, a discussão é uma discussão em torno do naturalismo, evidentemente. Kraf não admitia também o naturalismo, a realidade feia das coisas e da sociedade nua estatelada num livro. A arte era uma idealização, bem, então que mostrasse os tipos superiores de uma humanidade aperfeiçoada, as formas mais belas do viver e do sentir".
"Ega, horrorizado, apertava as mãos na cabeça, quando, do outro lado, Carlos declarou que o que mais o incomodava no realismo eram os seus grandes ares científicos, a sua pretensiosa estética deduzida de uma filosofia alheia e a invocação de Claude Bernard, do experimentalismo, do positivismo, de Stuart Mill e de Darwin, a propósito de uma lavadeira que dorme com um carpinteiro. Tudo isto, no fundo, procurando já refutar uma literatura que fazia do sucesso, neste caso, do sucesso ideológico e científico, o seu modo de existir. Tudo isso procurando refutar uma literatura que se fazia ponto de passagem para outros fins, neste caso, fins de natureza, digamos, científica.
Nos Maias, encontra-se não só aqui, mas em momentos localizados do romance, a elaboração de uma estética do fim. Tratam-se de momentos do texto em que, aparentemente de forma inocente, mas realmente,do meu ponto de vista, de forma ponderada e calculada, o fim surge associado a sentidos fundamentais, que o Eça desse tempo, e porventura a sua geração, iam vivendo. Há um momento em que Carlos da Maia, em Sintra, não encontra Maria Eduarda. É um momento de ausência e de falta, mas é um momento como que compensado pela contemplação, nem mais nem menos do que um fim, um belo fim de tarde. Toda sorte de idéias de amor, do som absoluto, de sacrifícios, invadiam-no deliciosamente, enquanto seus olhos se esqueciam, se perdiam, enlevados na religiosa solenidade daquele belo fim de tarde.
Só que a esse belo fim de tarde e à própria idéia de fim, vêm associadas, discretamente, idéias que são idéias já algo sombrias. Tudo que lhe aparece parado, num recolhimento melancólico e grave, olhando a partida do sol, que mergulhava lentamente no mar, onde o fim se faz realmente um fim dramático, melancólico, sombrio, é quando ele ocorre dentro de um outro fim, quer dizer, no final do romance, observa-se outra vez um fim de tarde.
Nesse melancólico passeio final em que aos olhos de Carlos e de João da Ega, aparece a paisagem que se vê do Ramalhete, ao fundo, encastilhada como uma tela marinha nas cantarias dos dois altos prédios, a curta paisagem do Ramalhete e um pedaço do Tejo e Monte tomavam, naquele fim de tarde, um tom mais pensativo e triste. Tudo vai resolver-se, portanto, neste fim do romance, em tristeza e o passo completa-se assim: "Um raio de sol morria lentamente sumido, esvaído na primeira cinza do crepúsculo, como um resto de esperança numa face que se anuvia". São já, naturalmente, os tons de ruína, conforme depois se diz, que vão cobrindo a casa do Ramalhete, e se calhar, a própria geração e os sonhos de Carlos da Maia.
Os Maias, portanto, sobretudo no seu final, são o romance em que as metáforas do fim se elaboram incessantemente, e se elaboram incessantemente, curiosamente, numa espécie de tensão dialética, em que o fim aparece, por um lado, como inevitabilidade, mas, por outro lado, como alguma coisa que é preciso subverter e refutar, contrariar. Aí a inevitabilidade do fim está na vivência, por Carlos da Maia e pela família dos Maias, de um episódio amoroso trágico, de fim brusco, um episódio de incesto. Está também na forma como esse episódio de incesto, e o seu fim trágico, traz consigo o fim da família ou o suposto fim da família. A própria longevidade de Afonso da Maia, que aparecia no final do trânsito da família como uma espécie de garante da sua existência, essa longevidade acaba por ceder, e quando ela cede é o fim da família que se aproxima.
Tudo parece resolver-se muito perto já do final, quando Afonso da Maia recebe, dramaticamente, a notícia do incesto, e diante de João da Ega, Afonso da Maia tem um gesto, que diz mais do que todas as palavras. Ega ainda balbuciou, quando Afonso da Maia diz: "Eu conheço essa mulher, é a sua amante, conheço essa mulher, Maria Eduarda". - Ega ainda balbuciou: "Não, não, senhor Afonso da Maia". Mas o velho pôs o dedo nos lábios, indicou que Carlos dentro podia ouvir, e afastou-se, todo dobrado sobre a bengala, vencido enfim por aquele implacável destino que, depois de o ter ferido na idade da força com a desgraça do filho, o esmagava ao fim da velhice com a desgraça do neto.
A tematização do fim como inevitabilidade, como alguma coisa que traz o fim da família, é - e volto aqui ao sentido dessa tensão dialética que há pouco referi - contudo, objeto de tentativas de negação, de subversão, um pouco como se o fim não fosse tão irreversível, como parece à primeira vista. Curiosamente, antes do fim do romance, há um pequeno episódio embutido na reflexão de Carlos com João da Ega, um pequeno episódio metaliterário, outro desses em que dentro da literatura se reflete sobre a literatura, aparentemente inócuo ou meramente cômico, mas que, realmente já traz consigo o propósito de encarar o fim como alguma coisa que é preciso subverter e contrariar.
É João da Ega que vai ler a Carlos da Maia um passo das Memórias de um ato, essa obra sem fim que ele não acabou, mal começou e imediatamente arrancou. "Afastou papéis e livros e desenrolou o manuscrito, espalmou-o, deu um puxão ao colarinho, e Carlos, que se postara à borda do divã, com a face espantada e as mãos nos joelhos, deixou-se quase sem transição, transportado dos rugidos do ventre do Viegas - era o doente que eu tinha que estar lá a atender - para um rumor de populaça, num bairro de judeus, na velha cidade de Heidelberg. Mas espera lá como eu, deixa-me respirar, isso não é o começo do livro - isso não é o caos, porque, supostamente, as memórias de um átomo deveriam começar por gêneses - isso não é o começo do livro, isso não é o caos".
"Ega, então acostou-se, desabotoou a sobrecasaca e respirou também. Não, não, não é o primeiro episódio, não é o caos, é já no século XV - e agora, atenção, mas num livro destes pode-se começar pelo fim, convém-me fazer este episódio, chama-se A hebréia. Acoene, pensou o Carlos, ou seja, a própria literatura pode subverter o fim e começar pelo fim".
Mas é no episódio final, depois de, aparentemente, o fim ser problematizado como alguma coisa de irreversível, no episódio final, que resulta do incesto, da separação e da morte, é nesse episódio final, que parece representar a extinção irreversível da família e de uma elite, é nesse episódio final, que o fim acaba por ser negado.
O momento é esse momento quase tragicômico, em que Carlos da Maia, na última página dos Maias, enuncia as suas últimas convicções, para, logo em seguida, as ver desmentidas. "E ambos retardaram o passo, descendo para a rampa de Santos, como se aquele, em verdade, fosse o caminho da vida, onde eles, certos de só encontrarem ao fim desilusão e poeira, não devessem jamais avançar, senão com lentidão e desdém. Já avistavam o aterro, a sua longa fila de luzes. De repente, Carlos teve um gesto de contrariedade, de ferro, e eu, que vinha desde Paris com este apetite, esqueci-me de mandar fazer hoje para o jantar um grande prato de paio com ervilhas."
O fim incerto do romance é o deste episódio final, em que não se sabe se Carlos e João da Ega conseguem apanhar o carro, que foge ao longe, e em que, ao mesmo tempo, negam uma existência feita de desistência.
Os Maias são, então, potencialmente, um relato sem fim, um esforço sem chegada conhecida, uma recusa implícita do romance com um fim, ou em outros termos, um romance, como a literatura de Eça a partir de agora, inevitavelmente aberto. É isso que se passa sob o signo da ambigüidade, nas últimas obras de Eça de Queirós. Também curiosamente, e há nisto provavelmente alguma coisa de um destino que o próprio Eça não pôde controlar, porque ele mesmo não viu nem tratou o fim das suas obras. Já há pouco disse, repito agora, tanto A cidade e as serras, como A ilustre casa de Ramires, como A correspondência de Fradique Mendes, são obras que Eça não terminou, são obras que Eça não viu publicadas em vida. De todas, é a Correspondência de Fradique Mendes aquela em que a recusa do fim é porventura mais significativa, desde logo pela sua estrutura, relato que introduz um conjunto de cartas, relato que introduz um epistolário. Esse epistolário é, de certa forma, um conjunto de episódios sem fim; tanto assim é, que várias das cartas de Fradique não foram publicadas nessa primeira edição. Um pouco como se o destino incerto dessa obra final de Eça de Queirós viesse dizer que, afinal, a literatura nunca tem fim, e que é possível sempre acrescentar alguma coisa mais; é essa lógica aberta que é a lógica da epislolaridade.
Quem aqui poderá dizer que, alguma vez, publicou um epistolário completo sem a incerteza de que, algum dia, alguma carta mais computará aquelas que foram publicadas?
De certa forma, a Correspondência de Fradique Mendes vem, de novo, refletir sobre uma literatura que, para Fradique, é uma literatura por natureza anti-finalística. Lembremos: Fradique Mendes coloca-se, em relação ao Eça dos anos 70, numa posição que é a do esteta anti-realista, a do poeta afinal sem poesia publica, que não admite uma literatura como instrumento finalístico. Mas, ao mesmo tempo que assim pensa, Fradique Mendes enuncia a própria impossibilidade, para ele, da escrita da literatura.
Quando, um dia, o amigo e biógrafo, editor de cartas, lhe propõe a publicação de um livro sobre África, Fradique tinha feito uma viagem à África - e o que seria o fim normal dessa viagem seria a publicação de um livro sobre África - quando o amigo lhe propõe isso, Fradique recusa e diz: "Não tenho sobre África, nem sobre coisa alguma deste mundo, conclusões que, por alterarem o curso do pensar contemporâneo, valessem a pena registrar". E acrescenta: "Apenas tenho sobre África uma série de impressões".
O livro fica pois por publicar. Fica por publicar, também, porque Fradique Mendes não é detentor disso que ambiciona: "uma prosa como ainda não há" - diz Fradique, "uma prosa - acrescenta - em que fosse possível enunciar verdades absolutamente definitivas, em forma absolutamente bela, isto é, uma prosa que fosse capaz de conjugar a comunhão indissociável, a beleza absoluta, ao caráter definitivo, e portanto final, das verdades a representar." Em vez disso, Fradique Mendes opta pelo silêncio, e esse silêncio é para Fradique Mendes uma forma bem singular, bem paradoxal, de cultivar também uma estética do fim.
Eça de Queirós, pelo contrário, e aqui divergindo de Fradique Mendes, o que afirma é o impossível fim da literatura ou a necessidade da sua existência constante. Eça de Queirós, por sua própria estética, e sobretudo, pela sua ética de escritor, o que veio cultivar, de certa forma contra Fradique Mendes, foi uma literatura em constante revisão, que é como quem diz uma literatura à procura do fim perdido.
Muito obrigado.
Presidente TARCÍSIO PADILHAA conferência que acabamos de aplaudir se insere como um dos momentos privilegiados desta Casa, uma vez que Eça de Queirós e Machado de Assis são os pontos culminantes da literatura dos nossos dois países, irmanados pela mesma língua, e cuja trajetória foi comum ao longo de vários séculos, mas se estende, posteriormente, ao que poderia significar a nossa independência, através deste denominador comum do nosso afeto e dos nossos valores.
A conferência é extremamente densa e certamente ensejará pedidos de esclarecimentos, indagações e aspectos que o conferencista, certamente, ainda adiante, poderá ampliar e aprofundar.
Já de pronto, à guisa de pequeno comentário de um não-literato, de um cultor da Filosofia, poderia aqui sublinhar o fato de que estão, por assim dizer, mesclados ao longo da exposição dois conceitos medulares: o conceito de finalidade e o conceito de finitude. Na medida em que o agente aja em vista de um fim, o agente busca um objetivo, o escritor se lança ao trabalho da criação, e ele, ao se adentrar na sua trama, a urdir e tecer o seu roteiro, ele visualiza aquele momento em que a cortina baixa e o espetáculo se encerra.
Esse aspecto da demarcação do fim não encobre, no entanto, a possibilidade da sua transcendência, de um ultrapassar-se daquele fim que se impôs num determinado momento, mas que em seu próprio bojo, contém uma mensagem que é prospectiva, e essa mensagem prospectiva se evidencia pari passu, à medida que o escritor não põe um ponto final na sua obra. Ele a prossegue, uma vez que aquele fim é um fim provisório, já que o homem é o ser da intencionalidade. Essa intencionalidade está presente no seu espírito, por assim dizer, a impeli-lo para prosseguir, para caminhar, porque o homem é um caminhante, e não poderia deixar de sê-lo o esteta da palavra, como é o narrador.
Daí por que o conferencista sublinhou, num determinado momento, que há como que uma recusa do fim. É esta não aceitação do limite que a obra de arte lhe impôs, neste perpassar pelos eventos, que lhe constitui a trama romanceada. Poderíamos imaginar, por absurdo, que já foi tentado por uma ilustre escritora, aquela idéia de reverter as expectativas e começar, por exemplo, uma história para crianças, dizendo: "E foram felizes para sempre" - e terminar por dizer: "Era uma vez". Esta idéia da reversão é exatamente para mostrar que, só dentro de um imaginário puxado até o seu extremo limite, seria possível evitar o fim que demarca a narrativa.
Seriam essas umas poucas considerações a acudir a alguém que vislumbra na literatura todo esse possibilismo de pintar a condição humana, sem que isso esconda, pelo contrário, isso ponha em evidência todo o mistério que cerca a realidade da pessoa. Mas são pequenas considerações. Meu prezado colega gostaria certamente de pedir a palavra?
PLATÉIA - Acadêmico Geraldo França de LimaMeu presidente, desejaria, data vênia, pedir licença para uma observação ao ilustre professor Carlos Reis. Quando Sua Excelência diz: "incesto dos Maias", acho que é preciso fazer uma profunda observação sobre o fato, porque o incesto é uma coisa consentida, é uma coisa definitivamente realizada, com uma parceria ciente e consciente. No caso dos Maias, não houve isso. O Carlos da Maia só veio a saber que era irmão de Maria Eduarda, tempos depois, quando, desgraçadamente, o senhor Guimarães, indo a Portugal por motivo de herança procura o Ega no Loreto, e en passant, conta a ele. - "Que irmã?" - "A irmã dele, a única que ele tem".
Ora, como poderia ter havido incesto, se o Carlos não sabia que era irmão de Maria Eduarda? Se Maria Eduarda não sabia que era irmã de Carlos da Maia? Só pode ter havido incesto depois, já no fim que a desgraça é revelada, porque o próprio Afonso da Maia sabia da existência de Maria Eduarda, tanto que diz ao Ega: "Eu sabia dessa mulher, vive na rua São Francisco de Paula, passou todo o verão com ele, é a amante dele". Isso é textual.
Ora, repare bem Vossa Excelência, senhor professor, que o Carlos só praticou incesto depois da revelação daquela maldita carta. Este é o meu ponto de vista.
Professor CARLOS REISA questão que é levantada é uma questão extremamente pertinente e que, no fundo, vem recolocar análises que foram feitas várias vezes em torno desse problema, e lembro aqui, sobretudo, uma análise que nunca me foi muito simpática, nem muito convincente, que é a análise que Antônio Sérgio fez sobre o problema ideológico, ao moral, na ficção de Eça de Queirós, onde ele justamente pondera e ajuíza o incesto de um ponto de vista moral que, como ficou observado, é, em boa parte, irrelevante. E isso justamente porque, no fundo da relação entre Carlos e Maria Eduarda, o que se verifica é que, na sua quase totalidade, o incesto é inconsciente, num certo momento, e tanto quanto se percebe pelo romance, por uma única vez. Existe uma relação incestuosa entre Carlos e Maria Eduarda, porque Carlos já sabia que era irmão, mas não Maria Eduarda.
PLATÉIA - Acadêmico Geraldo França de LimaMas depois. Isso é depois da carta.
Professor CARLOS REISÉ depois da revelação, exatamente. Mas, nesse momento, ele sabia que era irmão dela, e ela não sabia. Aquilo que choca Antônio Sérgio é o fato de, depois de ele saber, ainda existir essa relação carnal entre Carlos e Maria Eduarda. Julgo que essa interpretação, de imediato severa, porventura um pouco moralista de Antônio Sérgio, não atenta suficientemente na importância que têm, para a interdição do incesto na nossa matriz civilizacional, os códigos de natureza moral e religiosa, isto é, alguma coisa que, no fundo, o indivíduo adquire com a sua formação, com a educação que lhe é dada, com as interdições de natureza moral, e que alguém que cometia incesto, involuntariamente, não pode incorporar, de um momento para o outro.
Em todo caso, julgo que a questão do incesto, conforme já foi muitas vezes observado, é, portanto, sobretudo do ponto de vista simbólico, mais do que do ponto de vista moral propriamente dito, porque, no fundo, a questão do incesto que, eventualmente, se traduz nos Maias é essa espécie de congênita impossibilidade da sucessão, ou essa espécie de absurdo de uma ligação sem validação social. Assim, por esse lado, o absurdo de uma relação amorosa como era a de Carlos da Maia que, quando atinge a sua plenitude, ganha também, ou adquire também, a interdição para a sua continuidade, e com isso, determina, de certa forma, o fim da família.
PLATÉIA - Acadêmico Geraldo França de LimaMais uma observação. No momento em que o Castro Gomes vem de Paris e recebe a carta do Dâmaso, e que vai conversar com o Carlos da Maia, ele diz ao Carlos da Maia que a Maria Eduarda era uma prostituta, era uma prostituta. Então, o Carlos Eduardo vai disposto a brigar com ela, mas não briga, e a perdoa.
Não haveria possibilidade de, um dia, o Carlos saber que aquela criatura fosse parenta dele, porque uma irmã morreu em Viena, a outra morreu não sei onde. Ora, o que ficou? A própria família tinha procurado a filha em toda a parte, não a encontrou. E o Carlos da Maia diz ao Ega: "Uma mulher que se poderia, por alguns francos, ter-se inteiramente nua sobre o divã".
O Carlos da Maia, portanto, era, no caso, uma figura inconsciente. A minha tese é que o incesto houve depois da revelação da carta.
Presidente TARCÍSIO PADILHACom a palavra, o acadêmico Carlos Nejar para uma observação.
Acadêmico CARLOS NEJARSerei breve. Quero dizer que aqui, nesta tarde, há um encontro casual, embora penso que não haja casualidade no espírito, tudo tem o seu sentido: os dois presidentes de Biblioteca, aqui no Brasil, o nosso Eduardo Portella, e Carlos Reis, da Biblioteca Nacional de Lisboa. Essas duas presenças hoje aqui nos honram, sobretudo, essa conferência que nos tocou pelo brilho, e também pela visão desse romancista tão ligado ao Brasil, e que representa, para vocês também, o que é Machado de Assis para nós, embora ambos estejam unidos no mesmo espírito, que é a língua portuguesa.
Quando o conferencista, brilhantemente, falava a respeito da estética do fim, me lembrava de versos de Eliot, que dizem: "O princípio é o fim e o fim é o começo", porque, na invenção da memória e na memória da invenção, o fim e o começo se entreligam, pois aquele que inventa cria uma sua própria lógica, que é uma lógica mágica, que é a lógica da invenção, e é o encontro feliz da memória e da invenção, porque, no fundo, tudo é memória, como dizia Borges.
E eu, quando ouvia também esta conferência a respeito da estética do fim em Eça, me lembrava de Borges, porque, em Borges, a morte antecede a vida. Em muitos dos seus contos, todas as coisas são como que embaralhadas, porque vige o princípio de que o fim é sempre um começo para a criação. Como nesse trabalho das Mil e uma noites que, na narrativa, nunca terminava, sempre recomeçava, e que leva também ao nosso Grande sertão: veredas de Guimarães Rosa, e sobretudo, também, ao Macunaíma de Mário de Andrade.
Queria dizer da minha admiração pelo trabalho do conferencista, honrando a nossa Academia Brasileira de Letras que, nesta tarde, tem a presença de tantos acadêmicos e um público que ama a obra de Eça de Queirós.
Presidente TARCÍSIO PADILHAAlguma outra indagação que queiram endereçar ao conferencista? Desejo, antes de mais nada, agradecer ao doutor Carlos Reis a sua bela exposição nesta Academia, e dizer-lhe que Portugal e o Brasil, hoje preocupados com a lusofonia e os desafios que cercam o futuro da nossa língua comum, vivem neste momento o enlace cultural necessário para mais e mais se ampliar e irradiar a cultura dos nossos povos, ainda mais, pensando-se no grande décor da nossa latinidade.
Por outro lado, não posso deixar de agradecer, e o faço com prazer, a presença da acadêmica Nélida Piñon, ex-presidente da Casa, dos acadêmicos Murilo Melo Filho, Antonio Olinto, Geraldo França de Lima, Lêdo Ivo, Josué Montello, nosso decano, Afonso Arinos de Melo Franco, Ivan Junqueira, Dr. Evandro Lins e Silva, Dr. Eduardo Portella, e nós dois aqui, completando este grupo de acadêmicos, que puderam acorrer hoje à conferência.Digo "puderam acorrer", porque estamos vivendo momentos de luto na nossa Casa, e abrimos assim um parêntese, uma epoké ao nosso sentimento de luto, porque é um momento cultural e a cultura não tem férias, não há feriado para a cultura, ela prossegue. E aquele que nos deixou, certamente, deixaria também esta mensagem: prossigam a caminhada, que já vai longe - e ele nos antecedeu no tempo, porque nasceu antes da criação da própria Academia.
Além dessas palavras, quero anunciar a próxima conferência, no dia 25 de julho, do acadêmico Carlos Heitor Cony; o título é Eça, invenção e observação.
Agradecendo a presença de todos, e especialmente grato ao conferencista, está encerrada a sessão.
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Presidente TARCÍSIO PADILHASenhores acadêmicos, minhas senhoras e meus senhores. Vamos dar início ao Ciclo sobre o Centenário de Eça de Queirós, e quanto ao significado do ciclo e à apresentação do conferencista, ambos os aspectos serão ventilados pelo secretário-geral, acadêmico Carlos Nejar, que é o coordenador deste evento.
Acadêmico CARLOS NEJARQuero dizer da nossa grande honra com a presença do escritor, professor Carlos Reis, que é catedrático da Universidade de Coimbra, onde leciona Língua Portuguesa e Teoria da Literatura, professor convidado também das Universidades de Hamburgo, Salamanca, Wisconsin e Madison, pró-reitor para promoção e difusão da língua e cultura portuguesa da Universidade Aberta, e coordenador da edição crítica das obras de Eça de Queirós e da História Crítica, da Literatura Portuguesa.Cabe ressaltar, também, a sua condição de diretor da Biblioteca Nacional de Lisboa. Entre os livros publicados, o livro Entrevista, que fez com José Saramago, antes até da premiação do escritor português. Dirige várias revistas como a Queroziana e Leituras, a Revista da Biblioteca Nacional, e é autor de diversos livros sobre Eça de Queirós.
É uma grande alegria para nós, nesta tarde, poder ouvi-lo nesta união que temos com a literatura portuguesa, a cultura portuguesa, através também da nossa língua, estando presente aqui a sua esposa, que também é professora catedrática, Isabel Reis. Ficaremos muito honrados com a alegria de podermos ouvir a conferência.
Professor CARLOS REISHá alguns momentos no tempo pessoal, em que tudo parece, de repente, harmonizar-se e ganhar sentido. Quando ainda em 1973, há não muito tempo, e contudo, há já algum tempo, escrevi o meu primeiro trabalho sobre Eça de Queirós, que seria então a minha dissertação de licenciatura, longe estava de imaginar que, anos depois, um pouco mais de vinte e cinco anos depois, eu estaria na prestigiada Academia Brasileira de Letras, a abrir um Ciclo de conferências sobre esse que tem sido, em toda a minha vida universitária, o meu escritor.
Longe estava eu de pensar - naquele ano de 1973, o ano 2000 era quase um mito impossível -, que neste ano, como presidente da Comissão Nacional das Comemorações do Centenário da morte de Eça de Queirós, teria o privilégio de falar nesta Casa de Machado de Assis. Longe estava eu de pensar que me caberia, neste ano, a responsabilidade grata de organizar, na Biblioteca Nacional de Lisboa, aquela que é certamente a maior exposição alguma vez feita sobre Eça de Queirós.
Todas essas razões convergem na grata alegria que tenho de estar hoje aqui convosco, alegria que tem também alguma coisa de responsabilidade, que é de falar para um público para quem Eça de Queirós é certamente uma presença familiar, freqüente, quase constante, e de trazer até este público exigente uma reflexão sobre o meu escritor de sempre.
Não quero encetar essa reflexão, sem expressar o meu agradecimento pela honra que me é dada de estar hoje aqui convosco, e sem o expressar de uma forma que é gratidão portuguesa, trazendo até vós uma lembrança de Portugal. Essa lembrança é, de certa forma, Eça de Queirós, e ela é o catálogo da exposição que está na Biblioteca Nacional, e que vou ter o gosto e a honra de passar às mãos do senhor presidente da Academia Brasileira de Letras, justamente como testemunho dessa minha gratidão.
Falarei com vossa benevolência sobre Eça de Queirós e a estética do fim, e falarei sobre a estética do fim em Eça de Queirós, começando por aquilo que é o princípio de tudo, começando pelos textos.
Um dia algures na ação dos Maias, Carlos da Maia tem a seguinte conversa com a senhora condessa de Gouverinho. "Carlos ficou só com a senhora condessa, que recuperara a sua cadeira cor-de-rosa. Imediatamente, ela perguntou pelo Ega. - Coitado, lá está em Celurico. - Ela protestou com um lindo riso contra aquela frase tão feia! Lá está para Celurico? - Não, não queria, coitado do Ega. - Coitado, lá está em Celurico - ação fúnebre". Celurico era horrível para um fim do romance.
É esta, já difusamente, quase uma reflexão metaliterária em contexto ficcional. É a reflexão de uma personagem que, sem disso se aperceber, tenha consciência de que a literatura, de alguma forma, projeta-se sobre a nossa vida e interage com trajetos humanos, e imita, nesses trajetos humanos, um fim, um fim de romance. Ou por outras palavras, não é possível comentar este destino episódico do João da Ega, sem trazer até este destino episódico a imagem de um romance que acaba. Fim do romance, fim do episódio amoroso que tinha sido vivido por João da Ega, fim de narrativa, fim que traz em si conotações, neste caso negativas, mais do que positivas. Fim que remete para afinidades, para derivações do próprio conceito de fim, para o desenlace, para o desfecho, mas também, em alguns momentos de obras de Eça de Queirós, para o sentido da extinção, a extinção de raça.
Nos Maias fala-se, precisamente no primeiro capítulo, na raça dos Maias, e nos Maias e também na Ilustre casa de Ramires e também na Cidade e as serras, a problematização do fim é, de certa forma, a problematização do fim da família. Jacinto, na Cidade e as serras, a certa altura, diz: "Sou o último Jacinto. Jacinto, ponto final." Longe estava ele, então, de pensar que este fim é, no fundo, um falso final, porque logo depois de dizer isto, já nas serras, "Sou o Jacinto, ponto final", logo depois: "Que casa é aquela com os dois torreões?" - pergunta Jacinto. "É Flor da Malva" - responde José Fernandes, apresentando a casa de onde sairá a Joaninha, que há de favorecer não o fim, mas a continuação da família.
Em Eça de Queirós, são inúmeros os sentidos do fim, as reflexões sobre o fim. Qual, de certa forma, o trauma do fim? Em certa medida, o tempo de iniciação literária de Eça de Queirós, em 1866, na Gazeta de Portugal, é um tempo que vive textos, que se faz de textos, em que se foge ao fim. Os textos da Gazeta de Portugal, esses textos incipientes, heterodoxos, provocatórios, são textos que, pelo seu caráter fragmentário, pela sua serialidade incipiente, de certa forma, recusam o fim, de certa forma, envolvem uma continuação constante.
Mas esse tempo de iniciação na história literária de Eça de Queirós dá lugar a um tempo de aprendizagem e de maturação. O tempo da aprendizagem e da maturação queiroziana é, como bem sabido, o tempo da escrita dita realista, que se nutre da doutrina que Eça de Queirós, ele mesmo elabora nas Conferências do Casino, e onde Eça de Queirós concebe uma literatura e uma arte com um fim, com um intuito de moral, de justiça e de verdade. Algum tempo depois, alguns anos depois, numa carta conhecida a Teófilo Braga, Eça de Queirós fala num projeto que alimentava para depois do Primo Basílio, o projeto das Cenas da vida portuguesa, e diz: "O meu fim nas Cenas da vida portuguesa é pintar a sociedade portuguesa etc. etc."
É o tempo em que Eça cultiva um gênero literário, um romance que lhe serve como instrumento finalístico, um romance que, na sua estética própria desse tempo, se regia por um princípio de organicidade. O romance desse Eça, O primo Basílio, O crime do padre Amaro, é um romance internamente coerente, é um romance que tem um fim, o limite do texto, mas é um romance que, curiosamente, cultiva também, do ponto de vista ideológico, um princípio de transcendência que está para além do texto, quer dizer, um romance que tem um fim em si, como o texto que acaba e que não pode continuar, mas um romance que cultiva outro fim, o fim extra-literário, que é o de uma sua função ideológica e social.
Curiosamente, quando escreveu e reescreveu e voltou a escrever O crime do padre Amaro, Eça de Queirós cultivou, com especial cuidado, o fim do romance, o episódio final, epílogo de uma história que devia apontar para além desse fim, para um outro fim, que é justamente nessa estética da função, nessa altura, e parecia a Eça que a literatura tinha uma função, uma função social, ideológica, até política. Depois disso, e superada essa concessão porventura excessivamente finalística da literatura, o que valeu a Eça de Queirós, como bem sabem, a crítica severa de Machado de Assis, depois disso, o Eça dos anos 80 do século XIX é o Eça que cultiva aquilo que, noutro local, chamei "outros mundos possíveis". Há mais mundos, em suma, descobre o Eça e descobre-o, em parte, porque leu a crítica de Machado de Assis.
Há mais mundos literários do ponto de vista temático, do ponto de vista propriamente ficcional, do ponto de vista formal, e nesses novos mundos, o fim deve rearticular-se, o fim deve rearticular-se em termos ideológicos, porque, para esse Eça e para essa literatura, já não é tão claro que a literatura deva ter um fim extra-literário no contexto social em que existe, e o fim deve rearticular-se também, porque nas obras que então publica, sobretudo quando elas são obras de caráter fragmentário, o fim obriga a uma nova problematização desse conceito.
Aquilo que temos chamado nos últimos anos "o último Eça" é um escritor que, de certa forma, prepara de outro modo o fim das suas obras, e que desse modo, prepara o seu próprio fim. Falar, portanto, a propósito deste último Eça, numa espécie de sindrome do fim, sendo que este último Eça, como é sabido, é que prepara, que escreve, mas que não chega a ver publicadas, a Correspondência de Fradique Mendes, A ilustre casa de Ramires e A cidade e as serras. É o Ega que cultiva agora outros discursos: o discurso da geografia, o discurso do conto de temática mitológica, até o discurso da auto-biografia mitigada. E é o Eça que, na Cidade e as serras, aborda outros fins, bem mais complexos e transcendentes do que o fim do romance, o fim do século, o fim da civilização ou de uma certa civilização, também o fim de uma certa história, que é a História de Portugal.
Já nos Maias - curiosamente e como se sabe, nos Maias encerra-se muito do que vem antes e do que vem depois deles -, já nos Maias, de certa forma, se antecipa esta nova problematização do fim, do fim do romance em si mesmo, e do fim da literatura para além do romance que tem esse fim. Lembro rapidamente um episódio, em que tal problematização aparece em filigrana. É o episódio em que começa a conquistar-se uma literatura com fins para além dela.
Relembro: "Nessa noite, Alencar teve o regozijo de encontrar aliados, a discussão é uma discussão em torno do naturalismo, evidentemente. Kraf não admitia também o naturalismo, a realidade feia das coisas e da sociedade nua estatelada num livro. A arte era uma idealização, bem, então que mostrasse os tipos superiores de uma humanidade aperfeiçoada, as formas mais belas do viver e do sentir".
"Ega, horrorizado, apertava as mãos na cabeça, quando, do outro lado, Carlos declarou que o que mais o incomodava no realismo eram os seus grandes ares científicos, a sua pretensiosa estética deduzida de uma filosofia alheia e a invocação de Claude Bernard, do experimentalismo, do positivismo, de Stuart Mill e de Darwin, a propósito de uma lavadeira que dorme com um carpinteiro. Tudo isto, no fundo, procurando já refutar uma literatura que fazia do sucesso, neste caso, do sucesso ideológico e científico, o seu modo de existir. Tudo isso procurando refutar uma literatura que se fazia ponto de passagem para outros fins, neste caso, fins de natureza, digamos, científica.
Nos Maias, encontra-se não só aqui, mas em momentos localizados do romance, a elaboração de uma estética do fim. Tratam-se de momentos do texto em que, aparentemente de forma inocente, mas realmente,do meu ponto de vista, de forma ponderada e calculada, o fim surge associado a sentidos fundamentais, que o Eça desse tempo, e porventura a sua geração, iam vivendo. Há um momento em que Carlos da Maia, em Sintra, não encontra Maria Eduarda. É um momento de ausência e de falta, mas é um momento como que compensado pela contemplação, nem mais nem menos do que um fim, um belo fim de tarde. Toda sorte de idéias de amor, do som absoluto, de sacrifícios, invadiam-no deliciosamente, enquanto seus olhos se esqueciam, se perdiam, enlevados na religiosa solenidade daquele belo fim de tarde.
Só que a esse belo fim de tarde e à própria idéia de fim, vêm associadas, discretamente, idéias que são idéias já algo sombrias. Tudo que lhe aparece parado, num recolhimento melancólico e grave, olhando a partida do sol, que mergulhava lentamente no mar, onde o fim se faz realmente um fim dramático, melancólico, sombrio, é quando ele ocorre dentro de um outro fim, quer dizer, no final do romance, observa-se outra vez um fim de tarde.
Nesse melancólico passeio final em que aos olhos de Carlos e de João da Ega, aparece a paisagem que se vê do Ramalhete, ao fundo, encastilhada como uma tela marinha nas cantarias dos dois altos prédios, a curta paisagem do Ramalhete e um pedaço do Tejo e Monte tomavam, naquele fim de tarde, um tom mais pensativo e triste. Tudo vai resolver-se, portanto, neste fim do romance, em tristeza e o passo completa-se assim: "Um raio de sol morria lentamente sumido, esvaído na primeira cinza do crepúsculo, como um resto de esperança numa face que se anuvia". São já, naturalmente, os tons de ruína, conforme depois se diz, que vão cobrindo a casa do Ramalhete, e se calhar, a própria geração e os sonhos de Carlos da Maia.
Os Maias, portanto, sobretudo no seu final, são o romance em que as metáforas do fim se elaboram incessantemente, e se elaboram incessantemente, curiosamente, numa espécie de tensão dialética, em que o fim aparece, por um lado, como inevitabilidade, mas, por outro lado, como alguma coisa que é preciso subverter e refutar, contrariar. Aí a inevitabilidade do fim está na vivência, por Carlos da Maia e pela família dos Maias, de um episódio amoroso trágico, de fim brusco, um episódio de incesto. Está também na forma como esse episódio de incesto, e o seu fim trágico, traz consigo o fim da família ou o suposto fim da família. A própria longevidade de Afonso da Maia, que aparecia no final do trânsito da família como uma espécie de garante da sua existência, essa longevidade acaba por ceder, e quando ela cede é o fim da família que se aproxima.
Tudo parece resolver-se muito perto já do final, quando Afonso da Maia recebe, dramaticamente, a notícia do incesto, e diante de João da Ega, Afonso da Maia tem um gesto, que diz mais do que todas as palavras. Ega ainda balbuciou, quando Afonso da Maia diz: "Eu conheço essa mulher, é a sua amante, conheço essa mulher, Maria Eduarda". - Ega ainda balbuciou: "Não, não, senhor Afonso da Maia". Mas o velho pôs o dedo nos lábios, indicou que Carlos dentro podia ouvir, e afastou-se, todo dobrado sobre a bengala, vencido enfim por aquele implacável destino que, depois de o ter ferido na idade da força com a desgraça do filho, o esmagava ao fim da velhice com a desgraça do neto.
A tematização do fim como inevitabilidade, como alguma coisa que traz o fim da família, é - e volto aqui ao sentido dessa tensão dialética que há pouco referi - contudo, objeto de tentativas de negação, de subversão, um pouco como se o fim não fosse tão irreversível, como parece à primeira vista. Curiosamente, antes do fim do romance, há um pequeno episódio embutido na reflexão de Carlos com João da Ega, um pequeno episódio metaliterário, outro desses em que dentro da literatura se reflete sobre a literatura, aparentemente inócuo ou meramente cômico, mas que, realmente já traz consigo o propósito de encarar o fim como alguma coisa que é preciso subverter e contrariar.
É João da Ega que vai ler a Carlos da Maia um passo das Memórias de um ato, essa obra sem fim que ele não acabou, mal começou e imediatamente arrancou. "Afastou papéis e livros e desenrolou o manuscrito, espalmou-o, deu um puxão ao colarinho, e Carlos, que se postara à borda do divã, com a face espantada e as mãos nos joelhos, deixou-se quase sem transição, transportado dos rugidos do ventre do Viegas - era o doente que eu tinha que estar lá a atender - para um rumor de populaça, num bairro de judeus, na velha cidade de Heidelberg. Mas espera lá como eu, deixa-me respirar, isso não é o começo do livro - isso não é o caos, porque, supostamente, as memórias de um átomo deveriam começar por gêneses - isso não é o começo do livro, isso não é o caos".
"Ega, então acostou-se, desabotoou a sobrecasaca e respirou também. Não, não, não é o primeiro episódio, não é o caos, é já no século XV - e agora, atenção, mas num livro destes pode-se começar pelo fim, convém-me fazer este episódio, chama-se A hebréia. Acoene, pensou o Carlos, ou seja, a própria literatura pode subverter o fim e começar pelo fim".
Mas é no episódio final, depois de, aparentemente, o fim ser problematizado como alguma coisa de irreversível, no episódio final, que resulta do incesto, da separação e da morte, é nesse episódio final, que parece representar a extinção irreversível da família e de uma elite, é nesse episódio final, que o fim acaba por ser negado.
O momento é esse momento quase tragicômico, em que Carlos da Maia, na última página dos Maias, enuncia as suas últimas convicções, para, logo em seguida, as ver desmentidas. "E ambos retardaram o passo, descendo para a rampa de Santos, como se aquele, em verdade, fosse o caminho da vida, onde eles, certos de só encontrarem ao fim desilusão e poeira, não devessem jamais avançar, senão com lentidão e desdém. Já avistavam o aterro, a sua longa fila de luzes. De repente, Carlos teve um gesto de contrariedade, de ferro, e eu, que vinha desde Paris com este apetite, esqueci-me de mandar fazer hoje para o jantar um grande prato de paio com ervilhas."
O fim incerto do romance é o deste episódio final, em que não se sabe se Carlos e João da Ega conseguem apanhar o carro, que foge ao longe, e em que, ao mesmo tempo, negam uma existência feita de desistência.
Os Maias são, então, potencialmente, um relato sem fim, um esforço sem chegada conhecida, uma recusa implícita do romance com um fim, ou em outros termos, um romance, como a literatura de Eça a partir de agora, inevitavelmente aberto. É isso que se passa sob o signo da ambigüidade, nas últimas obras de Eça de Queirós. Também curiosamente, e há nisto provavelmente alguma coisa de um destino que o próprio Eça não pôde controlar, porque ele mesmo não viu nem tratou o fim das suas obras. Já há pouco disse, repito agora, tanto A cidade e as serras, como A ilustre casa de Ramires, como A correspondência de Fradique Mendes, são obras que Eça não terminou, são obras que Eça não viu publicadas em vida. De todas, é a Correspondência de Fradique Mendes aquela em que a recusa do fim é porventura mais significativa, desde logo pela sua estrutura, relato que introduz um conjunto de cartas, relato que introduz um epistolário. Esse epistolário é, de certa forma, um conjunto de episódios sem fim; tanto assim é, que várias das cartas de Fradique não foram publicadas nessa primeira edição. Um pouco como se o destino incerto dessa obra final de Eça de Queirós viesse dizer que, afinal, a literatura nunca tem fim, e que é possível sempre acrescentar alguma coisa mais; é essa lógica aberta que é a lógica da epislolaridade.
Quem aqui poderá dizer que, alguma vez, publicou um epistolário completo sem a incerteza de que, algum dia, alguma carta mais computará aquelas que foram publicadas?
De certa forma, a Correspondência de Fradique Mendes vem, de novo, refletir sobre uma literatura que, para Fradique, é uma literatura por natureza anti-finalística. Lembremos: Fradique Mendes coloca-se, em relação ao Eça dos anos 70, numa posição que é a do esteta anti-realista, a do poeta afinal sem poesia publica, que não admite uma literatura como instrumento finalístico. Mas, ao mesmo tempo que assim pensa, Fradique Mendes enuncia a própria impossibilidade, para ele, da escrita da literatura.
Quando, um dia, o amigo e biógrafo, editor de cartas, lhe propõe a publicação de um livro sobre África, Fradique tinha feito uma viagem à África - e o que seria o fim normal dessa viagem seria a publicação de um livro sobre África - quando o amigo lhe propõe isso, Fradique recusa e diz: "Não tenho sobre África, nem sobre coisa alguma deste mundo, conclusões que, por alterarem o curso do pensar contemporâneo, valessem a pena registrar". E acrescenta: "Apenas tenho sobre África uma série de impressões".
O livro fica pois por publicar. Fica por publicar, também, porque Fradique Mendes não é detentor disso que ambiciona: "uma prosa como ainda não há" - diz Fradique, "uma prosa - acrescenta - em que fosse possível enunciar verdades absolutamente definitivas, em forma absolutamente bela, isto é, uma prosa que fosse capaz de conjugar a comunhão indissociável, a beleza absoluta, ao caráter definitivo, e portanto final, das verdades a representar." Em vez disso, Fradique Mendes opta pelo silêncio, e esse silêncio é para Fradique Mendes uma forma bem singular, bem paradoxal, de cultivar também uma estética do fim.
Eça de Queirós, pelo contrário, e aqui divergindo de Fradique Mendes, o que afirma é o impossível fim da literatura ou a necessidade da sua existência constante. Eça de Queirós, por sua própria estética, e sobretudo, pela sua ética de escritor, o que veio cultivar, de certa forma contra Fradique Mendes, foi uma literatura em constante revisão, que é como quem diz uma literatura à procura do fim perdido.
Muito obrigado.
Presidente TARCÍSIO PADILHAA conferência que acabamos de aplaudir se insere como um dos momentos privilegiados desta Casa, uma vez que Eça de Queirós e Machado de Assis são os pontos culminantes da literatura dos nossos dois países, irmanados pela mesma língua, e cuja trajetória foi comum ao longo de vários séculos, mas se estende, posteriormente, ao que poderia significar a nossa independência, através deste denominador comum do nosso afeto e dos nossos valores.
A conferência é extremamente densa e certamente ensejará pedidos de esclarecimentos, indagações e aspectos que o conferencista, certamente, ainda adiante, poderá ampliar e aprofundar.
Já de pronto, à guisa de pequeno comentário de um não-literato, de um cultor da Filosofia, poderia aqui sublinhar o fato de que estão, por assim dizer, mesclados ao longo da exposição dois conceitos medulares: o conceito de finalidade e o conceito de finitude. Na medida em que o agente aja em vista de um fim, o agente busca um objetivo, o escritor se lança ao trabalho da criação, e ele, ao se adentrar na sua trama, a urdir e tecer o seu roteiro, ele visualiza aquele momento em que a cortina baixa e o espetáculo se encerra.
Esse aspecto da demarcação do fim não encobre, no entanto, a possibilidade da sua transcendência, de um ultrapassar-se daquele fim que se impôs num determinado momento, mas que em seu próprio bojo, contém uma mensagem que é prospectiva, e essa mensagem prospectiva se evidencia pari passu, à medida que o escritor não põe um ponto final na sua obra. Ele a prossegue, uma vez que aquele fim é um fim provisório, já que o homem é o ser da intencionalidade. Essa intencionalidade está presente no seu espírito, por assim dizer, a impeli-lo para prosseguir, para caminhar, porque o homem é um caminhante, e não poderia deixar de sê-lo o esteta da palavra, como é o narrador.
Daí por que o conferencista sublinhou, num determinado momento, que há como que uma recusa do fim. É esta não aceitação do limite que a obra de arte lhe impôs, neste perpassar pelos eventos, que lhe constitui a trama romanceada. Poderíamos imaginar, por absurdo, que já foi tentado por uma ilustre escritora, aquela idéia de reverter as expectativas e começar, por exemplo, uma história para crianças, dizendo: "E foram felizes para sempre" - e terminar por dizer: "Era uma vez". Esta idéia da reversão é exatamente para mostrar que, só dentro de um imaginário puxado até o seu extremo limite, seria possível evitar o fim que demarca a narrativa.
Seriam essas umas poucas considerações a acudir a alguém que vislumbra na literatura todo esse possibilismo de pintar a condição humana, sem que isso esconda, pelo contrário, isso ponha em evidência todo o mistério que cerca a realidade da pessoa. Mas são pequenas considerações. Meu prezado colega gostaria certamente de pedir a palavra?
PLATÉIA - Acadêmico Geraldo França de LimaMeu presidente, desejaria, data vênia, pedir licença para uma observação ao ilustre professor Carlos Reis. Quando Sua Excelência diz: "incesto dos Maias", acho que é preciso fazer uma profunda observação sobre o fato, porque o incesto é uma coisa consentida, é uma coisa definitivamente realizada, com uma parceria ciente e consciente. No caso dos Maias, não houve isso. O Carlos da Maia só veio a saber que era irmão de Maria Eduarda, tempos depois, quando, desgraçadamente, o senhor Guimarães, indo a Portugal por motivo de herança procura o Ega no Loreto, e en passant, conta a ele. - "Que irmã?" - "A irmã dele, a única que ele tem".
Ora, como poderia ter havido incesto, se o Carlos não sabia que era irmão de Maria Eduarda? Se Maria Eduarda não sabia que era irmã de Carlos da Maia? Só pode ter havido incesto depois, já no fim que a desgraça é revelada, porque o próprio Afonso da Maia sabia da existência de Maria Eduarda, tanto que diz ao Ega: "Eu sabia dessa mulher, vive na rua São Francisco de Paula, passou todo o verão com ele, é a amante dele". Isso é textual.
Ora, repare bem Vossa Excelência, senhor professor, que o Carlos só praticou incesto depois da revelação daquela maldita carta. Este é o meu ponto de vista.
Professor CARLOS REISA questão que é levantada é uma questão extremamente pertinente e que, no fundo, vem recolocar análises que foram feitas várias vezes em torno desse problema, e lembro aqui, sobretudo, uma análise que nunca me foi muito simpática, nem muito convincente, que é a análise que Antônio Sérgio fez sobre o problema ideológico, ao moral, na ficção de Eça de Queirós, onde ele justamente pondera e ajuíza o incesto de um ponto de vista moral que, como ficou observado, é, em boa parte, irrelevante. E isso justamente porque, no fundo da relação entre Carlos e Maria Eduarda, o que se verifica é que, na sua quase totalidade, o incesto é inconsciente, num certo momento, e tanto quanto se percebe pelo romance, por uma única vez. Existe uma relação incestuosa entre Carlos e Maria Eduarda, porque Carlos já sabia que era irmão, mas não Maria Eduarda.
PLATÉIA - Acadêmico Geraldo França de LimaMas depois. Isso é depois da carta.
Professor CARLOS REISÉ depois da revelação, exatamente. Mas, nesse momento, ele sabia que era irmão dela, e ela não sabia. Aquilo que choca Antônio Sérgio é o fato de, depois de ele saber, ainda existir essa relação carnal entre Carlos e Maria Eduarda. Julgo que essa interpretação, de imediato severa, porventura um pouco moralista de Antônio Sérgio, não atenta suficientemente na importância que têm, para a interdição do incesto na nossa matriz civilizacional, os códigos de natureza moral e religiosa, isto é, alguma coisa que, no fundo, o indivíduo adquire com a sua formação, com a educação que lhe é dada, com as interdições de natureza moral, e que alguém que cometia incesto, involuntariamente, não pode incorporar, de um momento para o outro.
Em todo caso, julgo que a questão do incesto, conforme já foi muitas vezes observado, é, portanto, sobretudo do ponto de vista simbólico, mais do que do ponto de vista moral propriamente dito, porque, no fundo, a questão do incesto que, eventualmente, se traduz nos Maias é essa espécie de congênita impossibilidade da sucessão, ou essa espécie de absurdo de uma ligação sem validação social. Assim, por esse lado, o absurdo de uma relação amorosa como era a de Carlos da Maia que, quando atinge a sua plenitude, ganha também, ou adquire também, a interdição para a sua continuidade, e com isso, determina, de certa forma, o fim da família.
PLATÉIA - Acadêmico Geraldo França de LimaMais uma observação. No momento em que o Castro Gomes vem de Paris e recebe a carta do Dâmaso, e que vai conversar com o Carlos da Maia, ele diz ao Carlos da Maia que a Maria Eduarda era uma prostituta, era uma prostituta. Então, o Carlos Eduardo vai disposto a brigar com ela, mas não briga, e a perdoa.
Não haveria possibilidade de, um dia, o Carlos saber que aquela criatura fosse parenta dele, porque uma irmã morreu em Viena, a outra morreu não sei onde. Ora, o que ficou? A própria família tinha procurado a filha em toda a parte, não a encontrou. E o Carlos da Maia diz ao Ega: "Uma mulher que se poderia, por alguns francos, ter-se inteiramente nua sobre o divã".
O Carlos da Maia, portanto, era, no caso, uma figura inconsciente. A minha tese é que o incesto houve depois da revelação da carta.
Presidente TARCÍSIO PADILHACom a palavra, o acadêmico Carlos Nejar para uma observação.
Acadêmico CARLOS NEJARSerei breve. Quero dizer que aqui, nesta tarde, há um encontro casual, embora penso que não haja casualidade no espírito, tudo tem o seu sentido: os dois presidentes de Biblioteca, aqui no Brasil, o nosso Eduardo Portella, e Carlos Reis, da Biblioteca Nacional de Lisboa. Essas duas presenças hoje aqui nos honram, sobretudo, essa conferência que nos tocou pelo brilho, e também pela visão desse romancista tão ligado ao Brasil, e que representa, para vocês também, o que é Machado de Assis para nós, embora ambos estejam unidos no mesmo espírito, que é a língua portuguesa.
Quando o conferencista, brilhantemente, falava a respeito da estética do fim, me lembrava de versos de Eliot, que dizem: "O princípio é o fim e o fim é o começo", porque, na invenção da memória e na memória da invenção, o fim e o começo se entreligam, pois aquele que inventa cria uma sua própria lógica, que é uma lógica mágica, que é a lógica da invenção, e é o encontro feliz da memória e da invenção, porque, no fundo, tudo é memória, como dizia Borges.
E eu, quando ouvia também esta conferência a respeito da estética do fim em Eça, me lembrava de Borges, porque, em Borges, a morte antecede a vida. Em muitos dos seus contos, todas as coisas são como que embaralhadas, porque vige o princípio de que o fim é sempre um começo para a criação. Como nesse trabalho das Mil e uma noites que, na narrativa, nunca terminava, sempre recomeçava, e que leva também ao nosso Grande sertão: veredas de Guimarães Rosa, e sobretudo, também, ao Macunaíma de Mário de Andrade.
Queria dizer da minha admiração pelo trabalho do conferencista, honrando a nossa Academia Brasileira de Letras que, nesta tarde, tem a presença de tantos acadêmicos e um público que ama a obra de Eça de Queirós.
Presidente TARCÍSIO PADILHAAlguma outra indagação que queiram endereçar ao conferencista? Desejo, antes de mais nada, agradecer ao doutor Carlos Reis a sua bela exposição nesta Academia, e dizer-lhe que Portugal e o Brasil, hoje preocupados com a lusofonia e os desafios que cercam o futuro da nossa língua comum, vivem neste momento o enlace cultural necessário para mais e mais se ampliar e irradiar a cultura dos nossos povos, ainda mais, pensando-se no grande décor da nossa latinidade.
Por outro lado, não posso deixar de agradecer, e o faço com prazer, a presença da acadêmica Nélida Piñon, ex-presidente da Casa, dos acadêmicos Murilo Melo Filho, Antonio Olinto, Geraldo França de Lima, Lêdo Ivo, Josué Montello, nosso decano, Afonso Arinos de Melo Franco, Ivan Junqueira, Dr. Evandro Lins e Silva, Dr. Eduardo Portella, e nós dois aqui, completando este grupo de acadêmicos, que puderam acorrer hoje à conferência.Digo "puderam acorrer", porque estamos vivendo momentos de luto na nossa Casa, e abrimos assim um parêntese, uma epoké ao nosso sentimento de luto, porque é um momento cultural e a cultura não tem férias, não há feriado para a cultura, ela prossegue. E aquele que nos deixou, certamente, deixaria também esta mensagem: prossigam a caminhada, que já vai longe - e ele nos antecedeu no tempo, porque nasceu antes da criação da própria Academia.
Além dessas palavras, quero anunciar a próxima conferência, no dia 25 de julho, do acadêmico Carlos Heitor Cony; o título é Eça, invenção e observação.
Agradecendo a presença de todos, e especialmente grato ao conferencista, está encerrada a sessão.