John E. Burns, PhD
Sinopse
Entre as idades de 28 e 39, por onze anos, Sigmund Freud utilizou regularmente a cocaína em sua forma de alcalóide, em pó. Como jovem neurologista, essa foi sua primeira tentativa experimental fora da prática médica tradicional. Ele estava buscando o reconhecimento público capaz de gerar a clientela que lhe traria fama e recursos financeiros permitindo, assim, que se casasse com sua noiva, de quem estava separado havia dois anos. Durante esse período, Freud publicou três artigos importantes e fez uma apresentação para a Sociedade Psiquiátrica de Viena sobre os usos terapêuticos da cocaína. Embora esse experimento não tenha atingido suas expectativas, e seus artigos sobre a cocaína nunca tivessem aparecido em seus escritos publicados, esses estudos fizeram de Freud, na verdade, um fundador da psicofarmacologia e, provavelmente, influenciaram seu trabalho com os sonhos e o inconsciente.
Introdução
No início de sua carreira, Freud escreveu três artigos científicos sobre a cocaína. Quando eles foram “descobertos” e tornados públicos, em 1963 e, novamente, em 1974, ampliaram a compreensão do relacionamento de Freud com a droga que, até aquele momento “focalizava dois aspectos do envolvimento de Freud com a cocaína: primeiro, a questão da prioridade na descoberta da anestesia local e, segundo, a defesa ‘equivocada’ que Freud fez da droga como uma ... panacéia ...”[i]
Entretanto, a importância de Freud na história da psicofarmacologia não está somente na sua elegante revisão da literatura existente e nas suas sugestões para terapia, como apresenta em seu artigo “Sobre a coca”. O mais significativo de todos é o seu breve artigo, publicado em janeiro de 1885, “Uma contribuição para o conhecimento do efeito da cocaína”, um estudo que confirma o papel de Freud como um dos fundadores da psicofarmacologia moderna.
O primeiro ponto de importância é que Freud, depois de defrontar-se com uma droga com propriedades psicofarmacológicas singulares, não se satisfez com a mera revisão da experimentação humana e animal que havia sido feita até aquele momento. Ao invés disso, ele imediatamente partiu para a demonstração das propriedades psicofarmacológicas da substância. De fato, alguns anos antes, a droga havia sido estudada. Em 1880, von Anrep havia pesquisado a farmacologia da cocaína em experiências com animais. Freud, porém, trabalhou com uma substância purificada e fez registros cuidadosos de suas experiências – em si próprio. Ele utilizou os instrumentos de avaliação mais sofisticados disponíveis na época para poder obter os registros psicofisiológicos mais precisos possíveis e, então, correlacionou esses resultados, simultaneamente, com mudanças de humor e percepção, cuidadosamente descritas durante o período de ação da droga. Essas experiências estabeleceram a dosagem apropriada e o tempo de ação da substância – um relacionamento crucial na experimentação humana.
Uma comparação com relatórios de qualquer das experiências modernas com drogas psicoativas, incluindo aquelas realizadas com LSD, mescalina e outros compostos psicodélicos, mostra que o artigo de Freud estabeleceu uma tradição no estudo de substâncias com propriedades psicoativas.[ii]
A noiva de Freud.
Freud vinha de uma família de recursos modestos. Ele terminou seu curso de Medicina em 1881 e, no ano seguinte, assumiu um cargo no Hospital Geral de Viena e tornou-se noivo de sua futura esposa, Martha Bernays.[iii]
Durante [esses] anos de hospital, Freud estava totalmente envolvido no esforço de fazer seu nome, descobrindo algo importante na medicina clínica ou na patologia. Sua motivação não era, como poderia supor-se, pura ambição profissional mas, sim, muito mais, a esperança de um sucesso que lhe rendesse uma boa clientela particular para justificar seu casamento um ou, possivelmente, dois anos mais cedo do que ele ousaria esperar caso o curso dos acontecimentos fosse normal. [iv]
Freud estava intensamente apaixonado, como se percebe pelos seguintes trechos de cartas à sua noiva:
“... ter você completamente é a única exigência que eu faço para a vida...”[v]
“... a busca de dinheiro, posição e reputação, isso tudo quase não permite que eu lhe dedique uma ou duas linhas apaixonadas...”[vi]
“Eu gostaria de ter conseguido algo realmente bom antes de nos encontrarmos novamente.”[vii]
“Minha querida namorada, você está mesmo certa. De agora em diante, eu também vou escrever somente sobre a viagem [para encontrá-la] ... Eu devo estar viajando sob efeito de coca a fim de controlar a minha terrível impaciência.”[viii]
“Eu também te amo, mais ainda do que durante os nossos melhores dias aqui...”[ix]
A cocaína no século 19.
Foi somente em 1860 que Albert Nieman, um estudante de graduação em farmacologia em Gottingen, isolou a base alcalóide que viria a ser conhecida como cocaína.[x] Seu uso foi imediatamente controlado na Europa mas não nos Estados Unidos, onde cresceu a proporções epidêmicas no final do século 19.[xi]
Em 1884, a companhia farmacêutica Merck produziu 3.179 libras de cocaína (aproximadamente 1.442 kg). Em 1886, a Merck produziu 158.352 libras de cocaína (aproximadamente 71.733 kg).[xii]
Arthur K. Donoghue cita três razões pelas quais a cocaína era interessante para a profissão médica naquele tempo:
Albert Nieman isolou o alcalóide concentrado de cocaína em 1860;
A agulha hipodérmica foi inventada em 1853; e
Médicos buscavam desesperadamente soluções para problemas clínicos já que eles não podiam fazer muito além de aliviar a dor com morfina e isto estava sendo reconhecido como causa de severas conseqüências.[xiii]
Freud pode ter estado sozinho na Europa ao defender as virtudes da cocaína, mas ele tinha muitos colegas com a mesma convicção nos Estados Unidos.[xiv]
Influência das experiências norte-americanas.
Freud citou freqüentemente fontes norte-americanas, como em seu artigo “Contribuições ao conhecimento e o efeito da cocaína”: “A Detroit Therapeutic Gazette publicou, em anos recentes, uma série completa de reportagens sobre abstinência de morfina e ópio que foram superadas com a ajuda da cocaína...”[xv] Havia mais de dezesseis artigos relacionados ao tema.[xvi]
Um efeito colateral do episódio da cocaína na vida de Freud talvez tenha sido a sua subseqüente amargura com a América do Norte. Ele confiava bastante no apoio das autoridades norte-americanas quanto à sua afirmação de que a droga era inofensiva. A experiência e o tempo mostraram-lhe seu equívoco. O seu primeiro encontro com a América do Norte havia sido uma decepção. Embora os EUA tenham sido o país mais receptivo à psicanálise a partir das palestras de Jung e Freud na Clark University este, mesmo no fim de sua vida, poucas vezes deixou de encontrar falhas e emitir julgamentos, argumentando a favor de posicionar a análise contra a psiquiatria americana e a medicina.[xvii]
Uso pessoal.
Por muitos anos, Freud sofreu de depressões periódicas e de fadiga ou apatia, sintomas neuróticos que, mais tarde, tomaram a forma de ataques de ansiedade antes que fossem dissipados por sua própria análise.[xviii]
Em minha última depressão severa, eu usei coca novamente e uma pequena dose elevou-me às alturas de uma forma maravilhosa. Agora mesmo, estou envolvido em pesquisar a literatura para uma canção de louvor a esta substância mágica.[xix]
Um pouco de cocaína, para soltar a minha língua [para visitar Charcot]. Fomos para lá numa carruagem... R. estava terrivelmente nervoso, eu estava bem calmo com a ajuda de uma pequena dose de cocaína... Essas foram as minhas conquistas (ou melhor, as conquistas da cocaína), que me deixaram muito satisfeito.[xx]
Os primeiros anos de Freud como jovem médico no Hospital Geral de Viena foram tempos muito difíceis para ele. Ele buscava reconhecimento, não tinha dinheiro e estava separado de sua noiva:
Nessa situação, cansaço, humor deprimido, ansiedade, preocupações e indigestão repetiam-se, diminuindo sua felicidade e sua eficiência no trabalho. Alguns desses estados podem ter-lhe parecido, de alguma forma, conectados à sua situação frustrante e inquietante... mas todos eles enfraqueceram seu poder de concentração e auto-controle... A cocaína, para ele, era um remédio quase perfeito contra seus acessos neurastênicos.[xxi]
Naquela época, eu estava fazendo uso freqüente da cocaína, para reduzir desagradável congestão nasal e eu havia ouvido, alguns dias antes, que uma de minhas pacientes, que tinha seguido meu exemplo, desenvolveu uma extensa necrose da mucosa nasal. Eu fui o primeiro a recomendar o uso da cocaína, [entretanto] essa orientação fez com que eu me censurasse severamente. O mal uso dessa droga apressou a morte de um caro amigo meu.[xxii]
Sabemos, através da “Interpretação dos sonhos”, que Freud ainda estava usando a droga em 1895[xxiii], um uso de onze anos entre as idades de 28 e 39 anos, entretanto não há nenhuma indicação de que ele era dependente ou que a usava compulsivamente. Como faz notar um autor:
O desejo de erguer-se acima e além foi canalizado, por Freud, para a ciência. Reconhecimento profissional imediato era o tipo de libertação que ele buscava. Ele não esperava o Nirvana diretamente através do seu próprio uso de cocaína e é por isso que ele não corria o risco da dependência.
E novamente:
O fator arquetípico que influencia a compulsão pela droga (“craving”), que concede tamanha intensidade ao desejo e convicção à crença, nunca venceu Freud completamente. A ciência significava muito mais para ele. A razão e um respeito pelos fatos faziam-no ficar sóbrio.[xxiv]
Aplicações terapêuticas
“Freud ainda considerava o campo da cocaína, por assim dizer, sua propriedade particular”[xxv] e estava fazendo experiências com ela em diversas aplicações terapêuticas:
Eu, agora, encomendei um bocado dela e, por razões óbvias, vou experimentá-la em casos de doenças do coração e, depois, em exaustão nervosa, particularmente na condição horrível que se segue à abstinência de morfina...[xxvi]
Ele esperava curar diabetes com cocaína[xxvii] e experimentou cocaína em muitos amigos, colegas e pacientes.[xxviii]
Freud insistia que a dependência ou o abuso da cocaína nunca fora reconhecido como um fenômeno em si, mas, em vez disso, que ocorria entre pessoas que haviam sido, anteriormente, dependentes da morfina[xxix] e que se fosse usada por um longo período, mas moderadamente, não seria prejudicial ao corpo.[xxx] Freud concluiu que a cocaína não tinha ação direta no sistema neuromuscular, podendo, porém, atuar sobre ele, em certas circunstâncias, quando melhorava o bem-estar geral.[xxxi]
Os artigos sobre a cocaína.
Freud escreveu três artigos básicos sobre a cocaína e fez uma conferência para a Sociedade Psiquiátrica de Viena. Ele também mencionou o seu uso e sua experimentação com a cocaína em análises posteriores de sonhos, como no “Sonho da Injeção de Irma” (1895) e o “Sonho da Monografia de Botânica” (1898), ambos mencionados em seu volume maior, “A Interpretação dos Sonhos” (1900).
O primeiro artigo de Freud, “Sobre a coca”[xxxii], publicado em 1884, era uma exposição longa[xxxiii] da planta coca, sua história e seus usos, migração para a Europa, efeito em animais, efeito no corpo humano e, finalmente, os usos terapêuticos da cocaína, com capítulos sobre:
Coca como estimulante.
O uso da coca para doenças digestivas do estômago.
Coca na caquexia.
Coca no tratamento da dependência de morfina e de álcool.
Coca e asma.
Coca como afrodisíaco.
Aplicação local da coca.
Esse artigo foi amplamente aceito de modo que Freud reimprimiu 500 cópias em fevereiro do ano seguinte, com um adendo, que dizia: “Eu preciso reiterar, de modo ainda mais enfático que antes, a diversidade das reações individuais à cocaína.”[xxxiv]
Seu segundo artigo, “Uma contribuição ao Conhecimento do Efeito da Cocaína.”[xxxv] é o primeiro e último experimento científico de Freud. Nesse artigo, Freud não se ocupa com as reações subjetivas ao uso da cocaína, mas com os efeitos objetivos da droga em quantidades mensuráveis de energia muscular e de tempos de reação. Ele se utiliza de dois dos instrumentos mais precisos que estavam disponíveis na época; o dinamômetro e um neuroamoebímetro.[xxxvi] É um artigo mais curto; tem quatro páginas.
Ele conclui que a melhora funcional decorrente do uso da cocaína não é uma conseqüência da ação direta da droga sobre a musculatura, mas o resultado de um aumento do bem-estar geral que melhora a ação motora de modo secundário.[xxxvii]
Como observa Robert Byck, M.D., nossa principal fonte:
Em resumo, o artigo de Freud é escrito de maneira lúcida e é pioneiro ao abordar o vínculo crucial entre o efeito fisiológico e o efeito mental, relacionado ao tempo de ação de um estimulante do sistema nervoso central. “Uma Contribuição ao Conhecimento do Efeito da Cocaína” é um dos primeiros exemplos de um artigo científico sobre uma droga psicoativa que aborda claramente estes pontos.[xxxviii]
A conferência de Freud para a Sociedade Psiquiátrica de Viena “Sobre o Efeito Geral da Cocaína”[xxxix] foi uma tentativa de interessar seus colegas no uso da cocaína dentro do organismo e em sua capacidade de aumentar a sensação geral de bem-estar.[xl] O artigo, na tradução, tem cinco páginas de extensão[xli] e enfatiza dois pontos:
A psiquiatria é rica em drogas que podem reduzir a atividade nervosa super-estimulada, mas é deficiente em agentes que possam aumentar o desempenho do sistema nervoso deprimido.[xlii]
Eu não hesito em recomendar a administração de cocaína para tais curas de abstinência [da morfina] em injeções subcutâneas... sem nenhum medo de aumentar a dose.[xliii]
Ele, de fato, menciona:
Acima de tudo, é necessário dizer que o valor da cocaína na prática psiquiátrica ainda está por ser demonstrado e será, provavelmente, conveniente que se faça uma experimentação minuciosa assim que o atual preço, exorbitante, da droga torne-se mais razoável.”[xliv]
O terceiro artigo de Freud, “Observações sobre a Compulsão (“craving”) e o Medo da Cocaína.” Tem seis páginas na tradução.[xlv]
Nesse artigo, Freud defende a cocaína contra a acusação de ser perigosa e causar dependência, nas palavras de um psiquiatra alemão “o terceiro flagelo da humanidade”, ao lado do álcool e da morfina. Citando as próprias experiências e aquelas de outros autores, ele mantém que a dependência de cocaína ocorre somente com dependentes de morfina que, durante tentativas de retirada, acreditam-se curados, conservam sua dependência de drogas e, meramente, mudam de uma substância para outra, neste caso, da morfina para a cocaína. Em todos os outros casos, não se reconhece a cocaína como causadora de dependência, pode ser abandonada quando se desejar fazê-lo e, depois de uso prolongado, pode causar aversão ao invés de causar desejo (“craving”) por ela.
Por outro lado, Freud acha que o uso geral da cocaína está limitado por um elemento de desconfiança.[xlvi]
Uma oportunidade perdida.
Em seu estudo autobiográfico, Freud escreve:
No outono de 1886, fixei-me em Viena como médico e me casei com a jovem que havia ficado me esperando numa cidade distante por mais de quatro anos. Agora, posso retornar um pouco ao passado e explicar qual foi a culpa de minha noiva pelo fato de não me tornar famoso ainda jovem. Um interesse secundário, embora profundo, havia me levado, em 1884, a obter da Merck uma pequena quantidade do então pouco conhecido alcalóide cocaína e estudar sua ação fisiológica. Quando me achava no meio dessa tarefa, surgiu a oportunidade de uma viagem a fim de visitar minha noiva, de quem eu estava afastado havia dois anos. Rapidamente, terminei minha pesquisa sobre a cocaína e me contentei, em meu livro sobre o assunto, em profetizar que logo seriam descobertos outros usos para ela. Sugeri, contudo, a meu amigo Königstein, o oftalmologista, que ele devia investigar a questão de saber até que ponto as propriedades anestésicas da cocaína eram aplicáveis em doenças dos olhos. Quando voltei de minhas férias, verifiquei que não fora ele, mas outro de meus amigos, Carl Koller (agora em Nova Iorque), com o qual eu também tinha falado sobre a cocaína, quem havia feito os experimentos decisivos em olhos de animais e os demonstrara no Congresso Oftalmológico de Heidelberg. Koller, portanto, é considerado, com justiça, o descobridor da anestesia local com cocaína, o que se tornou tão importante em pequenas cirurgias; mas não guardo nenhum rancor da minha noiva pela interrupção das minhas pesquisas.[xlvii]
Um longo tempo foi necessário até que Freud pudesse assimilar a verdade amarga de que o uso que Koller fez dela tenha sido praticamente o único uso de valor e que todo o resto de seu trabalho com cocaína tenha virado cinzas.[xlviii]
A descoberta e a repressão dos artigos de Freud sobre a cocaína.
Parece que pessoas ligadas a Freud não querem trazer esses artigos para o conhecimento geral.[xlix]
Em referências a seus textos anteriores... [n]os quais ele implica a agulha hipodérmica como a fonte de perigo no emprego da cocaína, ele omitiu qualquer referência ao artigo de 1885 no qual tinha defendido firmemente as injeções perniciosas. Esse último artigo também não foi incluído na lista de textos que, em 1897, teve que preparar ao se inscrever para o título de Professor. Nenhuma cópia dele pode ser encontrada na coleção que mantinha de suas reimpressões. Parece ter sido suprimido completamente.[l]
Em 1960, Arthur K. Donoghue e James Hillman, dois estudantes de Freud e Jung, dos quais o último publicou amplamente sobre psicanálise, notaram que, embora fosse bem sabido que Freud havia feito muitas experiências com cocaína e que havia escrito artigos sobre o assunto, não conseguiam localizar nenhum documento relevante seja em Alemão ou nas traduções para o Inglês dos artigos de Freud. Depois de uma longa busca em muitos arquivos e bibliotecas, eles localizaram os documentos mencionados acima. A curadoria do patrimônio de Freud deu a eles permissão para publicar 1.500 cópias e para oferecê-las à venda por um ano. Esse volume foi publicado em 1963 e, além de algumas livrarias, lojas de artigos para uso de drogas e a comunidade hippie, houve muito pouco interesse e a maior parte dos livros foi destruída ao final do ano.[li]
Em 1974, com a epidemia da cocaína tornando-se aparente por todo o mundo, houve um interesse renovado no trabalho de Freud com a droga e o Dr. Robert Byck, M. D. publicou um volume completo dos artigos de Freud, comentários de outros sobre esses artigos, incluindo os da filha de Freud, Anna, e extensa documentação sobre a história e o uso de cocaína.[lii]
Influência na carreira de Freud.
Então, em resumo, pode ser dito que o trabalho de Freud sobre a cocaína foi pioneiro em muitos aspectos; que os erros de julgamento que ele fez e sua defesa da droga foram erros que, desde então, foram cometidos por muitas pessoas que trabalharam com drogas ativas sobre o sistema nervoso central; e que as dificuldades que ele criou para si próprio por causa dessa defesa foram relativamente pequenas quando comparadas à importância da introdução de uma metodologia científica sistemática para o estudo de drogas ativas sobre o sistema nervoso central. Como disse Daniel Freedman em 1969, “eu não tenho certeza do que se quis dizer sobre Freud estar certo ou errado, já que ele, sempre, está as duas coisas.”[liii]
Nessa pesquisa da cocaína, Freud, primeiro, deixou o caminho consagrado da neurologia da época para aventurar-se no desconhecido. Esse desconhecido ainda estava concretizado numa substância química, do mesmo modo que ele supunha o fluido seminal como a base orgânica em suas primeiras idéias sobre a teoria da libido. O fracasso de Freud com a cocaína foi uma beata culpa. No erro e na derrota ele se afastou de uma abordagem física, orgânica para o tratamento das dificuldades mentais o que, por fim, levou à descoberta do inconsciente e da psicanálise.[liv]
O episódio da cocaína é, portanto, não apenas de interesse para a consideração biográfica de Freud mas, também, conduz diretamente ao desenvolvimento da psicanálise. Pelas duas razões ele merece uma apresentação completa e detalhada, embora este episódio some apenas algumas linhas à história da farmacologia e da medicina.[lv]
Desta perspectiva, podemos, agora, enxergar o “episódio da cocaína” não como um erro juvenil a ser ignorado pelos seus sucessores e excluído do corpo de seus trabalhos. Pelo contrário, é uma marca juvenil de sua grandeza. Ele teve a capacidade de estar envolvido num contexto complexo e poderoso e, ainda assim, realizar seu trabalho rumo a uma solução individual. Ele rejeitou a tentação do atalho e continuou adiante para realizar a mesma ambição espiritual, só que, agora, num nível psicológico.[lvi]
Vom Scjheéidt sugeriu que o desenvolvimento da psicanálise e da psicologia do ego tenha sido, em parte, o resultado da tentativa de Freud de lidar com o estado diferente de consciência produzido pela cocaína.[lvii]
Bibliografia
Bernfeld, Siegfried, “Freud’s Studies on Cocaine”, reimpresso de Journal of the American Psychoanalytic Association, No. 4, Vol. I, October, 1953.
Byck, Robert, (Editor com anotações de Anna Freud), “Cocaine Papers by Sigmund Freud”, Stonehill, 1974.
Donoghue, Arthur K., “Freud’s Cocaine Papers”, Festival of Archetypal Psychology, University of Notre Dame, July 1992, gravado por Sounds True of Boulder, Colorado.
Freud, Sigmund, “The Interpretation of Dreams”, “The Dream of Irma’s Injection”, July 1895, traduzido do inglês por James Strachey.
Freud, Sigmund, “An Autobiographical Study”, by Sigmund Freud, traduzido do inglês por James Strachey, Norton, 1989.
Jones, Ernest, M.D. “The Life and Work of Sigmund Freud”, Basic Books, 1977.
Hillman, James, (Editor), “Freud’s Cocaine Papers, Foreword by James Hillman”, Dunquin Press, 1963,
Karch, Steven, B, “A Brief History of Cocaine”, CRC Press, 1998.
Musto, David F., “The History of Legislative Control Over Opium, Cociane, and their Derivatives”, http://www.druglibrary.org/schaffer/History/ophs.htm (Acessado em 9/9/02)
Vom Scjhéidt, J., “Sigmund Freud und das Kokain,” Psyche 27: 385-429 (973)
[i] Byck, pág. xviii.
[ii] Byck, xx.
[iii] www.freud.org.uk (Acessado em 9/9/02)
[iv] Byck, pág. 5.
[v] Carta de Freud a Martha Bernays, 18 de junho de 1884, Byck. pág. 41.
[vi] Carta de Freud a Martha Bernays, 7 de janeiro de 1885, Byck. pág. 91.
[vii] Carta de Freud a Martha Bernays, 21 de abril de 1884, Byck. pág. 40.
[viii] Carta de Freud a Martha Bernays, 19 de junho de 1884, Byck. pág. 42.
[ix] Carta de Freud a Martha Bernays, 21 de abril de 1884, Byck. pág. 39.
[x] Em 1863, a substância foi adicionada ao vinho por um francês, Angelo Mariani. O seu “Vinho Mariani” continha 6 g de cocaína alcalóide por onça e era mundialmente popular para uma variedade de enfermidades, especialmente na abstinência de opióides. Entre os usuários famosos desse preparado estão Thomas Edison, Robert Louis Stevenson, Júlio Verne e o Papa Leão XIII.
http://hsc.virginia.edu/medicine/clinical/internal/conf/chiefs/cocaine.htm (Acessado em 23/8/02).
[xi] Musto, http://www.druglibrary.org/schaffer/History/ophs.htm (Acessado em 9/9/02).
[xii] Karch, pág. 202.
[xiii] Donoghue. Formas de injeção intravenosa e de infusões começaram já em 1670. Entretanto, Charles Gabriel Pravaz e Alexander Wood foram os primeiros a desenvolver uma seringa com uma agulha fina o suficiente para perfurar a pele em 1853. http://inventors.about.com/library/inventors/blsyringe.htm (Acessado em 9/9/02).
[xiv] Byck, pág..xxvii.
[xv] Byck, pág. 117.
[xvi] Byck, pág. 70.
[xvii] Hillman, p.v. Ele não compreendia como Einstein podia sentir-se em casa lá; em uma oportunidade, numa conversa com Max Eastman, ele chamou a América de ‘aborto’. Hillman, p.v.
[xviii] Byck, pág. 10.
[xix] Carta de Freud a Martha Bernays, 2 de junho de 1884, Byck. pág. 10.
[xx] Carta de Freud a Martha Bernays, 18 de janeiro de 1886, Byck. págs. 161 – 163.
[xxi] Bernfeld, Byck, pág. 341.
[xxii] Freud, “A interpretação dos sonhos”, Byck, 211.
[xxiii] Byck, pág. xvii.
[xxiv] Hillman, vii. Entretanto, Freud era severamente dependente da nicotina e fumou charutos até o final de sua vida apesar de 31 cirurgias em dezessete anos. Ele precisou usar uma placa protética no céu da boca que lhe causava desconforto contínuo e interferia com sua fala. Sua inabilidade de deixar de fumar permaneceu um ponto cego intencional. A admissão, por parte de Freud, de sua dependência ao fumo causava sempre uma postura extremamente defensiva e não foi mencionada, de nenhuma forma, em sua auto-análise. Era um lado seu que ele sentia não ser da conta de ninguém.
http://www.med.umich.edu/1libr/subabuse/tobacc01.htm (Acessado em 10 de setembro de 2002.)
http://www.Cigaraficionado.com/Cigar/Aficionado/people/ff1294.html (Acessado em 10 de setembro de 2002.)
[xxv] Byck, pág. 33.
[xxvi] Carta de Freud à Martha Bernays, 21 de abril de 1884, Byck, pág. 39.
[xxvii] Byck, pág. 33.
[xxviii] Bernfeld, Byck, pág. 325.
[xxix] Byck, pág. xxxiii.
[xxx] Byck, pág. 62.
[xxxi] Jones, Byck, pág. 153.
[xxxii] “Über Coca.” Von Dr. Sigm. Freud, Secundararzt im k.k. Allgemeinen Krankenhause in Wien. Centralblatt für die ges. Therapie. 2, 289c 314, 1884, Juli.
[xxxiii] Vinte e quarto páginas de extensão, na tradução de Byck, 49 – 73.
[xxxiv] Byck, pág. 107.
[xxxv] “Beitrag zur Kenntniss der Cocawirkung.” Von Dr. Sigm. Freud, Sekundararzt im k. k. Allgemein Krankenhause in Wien. Wienner Medizinische Wochenschrift. Sonnabend, den 31. Jänner 1885. Nr. 5. Fünddreissigster Jahrgang, pol. 130-133.
[xxxvi] Aparelho elétrico que emite um sinal sonoro que é desligado quando percebido pelo indivíduo que está sendo testado. O intervalo entre ouvir o sinal e desligar o aparelho é medido para avaliar o tempo de reação neurológica ao estímulo sonoro. Byck, pag. 98.
[xxxvii] Byck, pág. 97 e xxv.
[xxxviii] Byck, xxv.
[xxxix] “ Über die Allgemeinwirkung des cocaïns. Vortrag, gehalted impsychiatrischen Verein am 5. Marz 1885 von Dr. Sigm. Freud, Medicinischchirirgisches Centralblatt, Nr. 32, pp. 374-375, August, 1885.
[xl] Byck, pág. 113.
[xli] Byck, págs. 113 – 118.
[xlii] Byck, pág. 116.
[xliii] Byck, pág. 117.
[xliv] Idem.
[xlv] Beiträge úber Anwendung des Cocaïn furcht mit Beziehung auf einem Vortrag W. A. Hammond’s. Von Dr. Sigm. Freud, Dozent für Nerven-krankheiten in Wien. 1887. Wienner Medizinische Wochenschrift Nr. 28, p. 929-932, 9 Juli 1887. Byck, p. 171 – 176.
[xlvi] Byck, pág. 171.
[xlvii] Freud, “Um estudo autobiográfico”, Byck, pág. 255.
[xlviii] Byck, pág. 33.
[xlix] Donoghue.
[l] Jones, Byck, pág. 199.
[li] Hillman, iii, Donoghue.
[lii] Byck. Esse volume também contém a história interessante da controversa descoberta e uso da cocaína em cirurgia, especialmente do olho.
[liii] Byck, pág. xxxiii.
[liv] Hillman, pág. v.
[lv] Bernfeld, Byck, pág. 324.
[lvi] Hillman, pág. viii.
[lvii] Vom Scjhéidt, Byck, pág. 91.
Novembro de 2002
johnburn@amcham.com.br
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