Uma nova chance para eles A histórica decisão do STF em favor das células-tronco embrionárias revoluciona a medicina brasileira e abre a possibilidade de cura a milhares de pacientes Por CILENE PEREIRA, GREICE RODRIGUES E SÉRGIO PARDELLAS Colaborou Camila Pati
João Pedro, Júlia, Marcos, Ingrid, Claudecir, Denis, Anderson e Kathy. Para esses brasileiros e também para outros milhares de cidadãos, a semana passada foi inesquecível. Ela ficará marcada como o tempo em que a esperança renasceu com força dentro de cada um. Todos são portadores de alguma doença que, no futuro, poderá ser tratada, e quem sabe curada, com terapias realizadas a partir de células-tronco embrionárias – estruturas versáteis capazes de gerar qualquer tecido do corpo. Com a liberação definitiva na quintafeira 29, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), das pesquisas com essas células, a expectativa é que os estudos proliferem pelo País. Não foi uma vitória fácil. Após a alegria experimentada em março de 2005 quando a Lei de Biossegurança foi aprovada pelo Congresso Nacional permitindo a realização dos estudos, os pacientes sofreram um revés. O então procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, entrou no STF com uma ação pedindo que a autorização para as pesquisas fosse considerada inconstitucional. O argumento era que o uso de embriões feria o direito à vida, garantido pela Constituição. O procurador tocou em uma questão tão importante como polêmica: afinal, quando a vida começa? De acordo com a Igreja Católica, por exemplo, há vida já em um embrião. No entendimento da ciência, não. No julgamento, os juízes do STF ficaram ao lado da razão. Por seis votos a cinco, deram o aval que faltava. Eles liberaram o uso de células retiradas de embriões congelados há pelo menos três anos em clínicas de reprodução humana, desde que haja o consentimento dos pais. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária está organizando um cadastro dos centros onde estão embriões com essas características. Se para os pacientes a decisão do STF dá novo fôlego para continuarem lutando contra patologias quase sempre graves, para a medicina brasileira o sinal verde significou um marco histórico. A permissão de realização de pesquisas com células-tronco embrionárias nos coloca no Primeiro Mundo da ciência pelo menos nessa área do conhecimento, ao lado de países como Japão, Estados Unidos e Israel. A partir de agora, os pesquisadores brasileiros podem se dedicar mais diretamente aos estudos, condição que estava prejudicada até então.
Desde 2005, quando a lei foi aprovada, poucos grupos se arriscaram a trabalhar com células embrionárias, importadas de outros países. Com a indefinição sobre a legalidade das pesquisas, os cientistas sentiam-se temerosos de ser obrigados a interromper as investigações caso a decisão do STF fosse contrária. O resultado é que nesses três anos apenas seis projetos com as embrionárias tomaram curso no País. Em compensação, estão sendo realizados 49 protocolos com células-tronco adultas. Essas estruturas são extraídas basicamente da medula óssea e do cordão umbilical. São fontes mais acessíveis, obviamente, mas o problema é que as células adultas apresentam menor potencial de transformação. Isso significa que elas podem dar origem a determinados tipos de tecidos, não a todos, como ocorre com aquelas retiradas de embriões. Os projetos com embrionárias em andamento receberam do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) R$ 9,4 milhões em financiamento. Todos os trabalhos estão incluídos no que se chama, em ciência, de pesquisa básica. Ou seja, os pesquisadores estão realizando análises ainda muito iniciais sobre o funcionamento das células embrionárias, suas características, maneiras de extraí-las e de cultivá- las, entre outros aspectos. Mesmo sob essas circunstâncias, o País pôde comemorar alguns feitos importantes. Um deles foi a criação de neurônios. O autor é o professor Steven Rehen, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Agora, a situação é totalmente diferente. A permissão definitiva serviu como uma injeção de ânimo nos laboratórios. “Isso muda tudo. Vamos buscar investimentos para contratar mais profissionais e ampliar os estudos”, afirma Rehen. Em Brasília para acompanhar a votação do STF, a geneticista Mayana Zatz, da Universidade de São Paulo, uma das mais atuantes pela liberação dos estudos, estava emocionada: “Temos uma enorme responsabilidade pela frente. Vamos lutar para que os pacientes possam ter as mesmas condições de saúde que o restante da população.” Em São Paulo, a pesquisadora Lygia da Veiga Pereira comemorou. Ela, que também lutou pela aprovação da lei, vem trabalhando para estabelecer linhagens de embrionárias aqui no Brasil: “Dessa forma, teremos mais autonomia e não dependeremos de outros países.” Animada com as novas perspectivas, Lygia planeja conseguir produzir as células e, depois, testar sua eficácia no tratamento de várias doenças. “Estou convencida de que nos próximos dois anos começarão os testes em seres humanos de terapias formuladas com células extraídas de embriões. Precisamos estar preparados para isso”, diz ela. No mundo, crescem as pesquisas para avaliar o potencial das embrionárias. Espera-se para este ano, por exemplo, o início do primeiro experimento em seres humanos de um desses tratamentos. Ele deverá ser realizado nos Estados Unidos, sob a coordenação de cientistas da Universidade da Califórnia. Eles querem saber se células criadas a partir dessas estruturas são eficientes para tratar lesões medulares, substituindo aquelas que foram atingidas. Em cobaias, a resposta foi positiva. |
A profusão de trabalhos com bons resultados é impressionante. Na Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, pesquisadores reduziram em ratos danos associados ao acidente vascular cerebral. “As células embrionárias têm o potencial para tratar problemas complexos. Espero que possamos usar os tratamentos em larga escala dentro de cinco anos”, diz Gary Steinberg, coordenador do trabalho. Na edição de fevereiro da revista Blood, órgão oficial da Sociedade Americana de Hematologia, outra notícia animadora. Cientistas americanos, alemães e tailandeses demonstraram pela primeira vez que as embrionárias são capazes de gerar células do sistema de defesa do corpo. Há ainda experiências transformando as estruturas em neurônios, em células cardíacas, ósseas e até em células produtoras de insulina. Se essas últimas se mostrarem eficientes em seres humanos, será uma revolução na forma de tratar a diabete. Afinal, a doença é caracterizada pela dificuldade de o corpo produzir ou absorver a insulina, o hormônio que abre as portas da célula para a entrada da glicose. Ao aprimorar a fábrica de insulina, o controle da enfermidade certamente será melhor.
FORÇA NO BASQUETE O jogador de basquete Claudecir Lopes da Silva, 28 anos, acredita na nova porta aberta pelos estudos com as células embrionárias: “Pode ser uma opção para pessoas como eu.” Claudecir ficou paraplégico aos 13 anos após cair de uma laje. O acidente o abateu profundamente: “De repente, mudou tudo. Minha liberdade de andar acabou. Fiquei oito anos sem querer sair de casa, deprimido.” A vontade de voltar a viver veio com a possibilidade de jogar basquete. Hoje, ele faz parte de um time da cidade paulista de São Bernardo do Campo. Além de estímulo, o esporte também é fonte de renda para Claudecir. |
CRESCER PARA AJUDAR Aos seis anos de idade, Denis Pinheiro já tinha perdido a conta das internações por causa da fibrose cística. O problema é que ninguém sabia que as freqüentes pneumonias apresentadas pelo garoto, hoje com 14 anos, eram causadas pela doença. Nos serviços de saúde da região de Ibiporã, no interior do Paraná, sua cidade natal, Denis era visto apenas como uma criança frágil. O diagnóstico só foi feito em 2001, depois de o menino quase ter morrido em uma UTI. A doença o afastou da escola por dois anos e obrigou a família (pai, mãe e uma irmã de dez anos) a se mudar temporariamente para a capital paranaense em busca de um tratamento melhor. A esperança de alívio veio com a aprovação das pesquisas. “Quero crescer e ajudar outras pessoas como eu fui ajudado”, diz ele. |
As células embrionárias se tornaram tão atraentes exatamente por causa dessa formidável capacidade de gerar qualquer outro tipo de célula. É por isso que hoje são esperança para os pacientes. Tome-se o exemplo da fibrose cística, doença genética que compromete o pulmão de maneira extremamente severa. A idéia principal dos cientistas é gerar células pulmonares para assumir a função daquelas que a enfermidade matou ao longo dos anos. “É como se o paciente ganhasse um novo pulmão”, diz o geneticista Salmo Raskin, de Curitiba. O mesmo princípio vale para tratar a distrofia muscular, caracterizada pela degeneração progressiva dos músculos. Nesse caso, o objetivo é obter células musculares. Para combater a anemia falciforme (provocada por uma deformação nas hemácias, as células do sangue que transportam o oxigênio) planeja-se a criação de células sangüíneas livres do problema. Já contra a esclerose múltipla e lesão medular, o que se quer é obter novos neurônios para ocuparem o lugar dos que foram lesados. Assim, como uma espécie de fábrica de células, as células embrionárias tornaram- se uma enorme fonte de esperança de vida.
TORCIDA OTIMISTA Anderson Alves da Silva, 20 anos, gostaria de se curar para passar mais tempo brincando na água, uma das coisas de que mais gosta de fazer. Portador de anemia falciforme (enfermidade provocada por uma alteração na forma das hemácias), o rapaz não pode ficar muito tempo em água fria. “No máximo uns dez minutos”, diz ele. Anderson apresenta os sintomas desde os dois anos. Também não pode se expor durante muito tempo ao sol e tem de moderar as atividades físicas para não sofrer dores fortes pelo corpo. “Quando tenho as crises dolorosas só melhoro com morfina”, conta. Ele está otimista: “As pesquisas vão ajudar a mim e principalmente às crianças.” |
PRIMEIROS PASSOS “Já posso sonhar em correr e brincar.” Com essas palavras, a menina Kathy de Oliveira, nove anos, comemorou a decisão em favor das pesquisas com células-tronco embrionárias. Ao lado da mãe, Angelita de Lira, 40 anos, Kathy era só sorrisos. Ela tem distrofia muscular, doença que leva à degeneração dos músculos. “Espero que os cientistas trabalhem para curar não só minha filha como outras pessoas que sofrem essa angústia”, diz Angelita. A decisão faz renascer a sua esperança de ver a filha andar: “Ela já nasceu com esse problema. Por isso, nunca tive esse prazer. Agora esse sonho parece mais próximo.” |
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