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terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Eugênia conta, com exclusividade, o difícil e doloroso processo que enfrentou pela guarda do filho de Cássia Eller

Minha luta por Chicão







Maria Eugênia Vieira Martins é hoje uma mãe aliviada. Em 31 de outubro do ano passado conseguiu a tutela definitiva de Francisco, filho biológico de Cássia Eller e de Otávio Fialho, ex-baixista da banda da cantora, que morreu num acidente de carro antes mesmo de o bebê nascer. Foram dez meses entre a morte de Cássia e a conquista da guarda definitiva do garoto de 9 anos que viu nascer e de quem cuidou desde bebezinho. Um período de difíceis emoções: tristeza e saudade pela morte da companheira, angústia e ansiedade com a possibilidade de perder o filho. O pai de Cássia, o sargento aposentado Altair Eller, reivindicou a guarda do neto e, no fim, entrou em acordo com Eugênia. O entendimento permitiu uma decisão ousada da Justiça, reconhecendo, assim, as novas formações da família brasileira. Uma mulher homossexual teve garantido o direito de ser mãe, ainda que não tenha gerado o próprio filho.


Aos poucos, a rotina da casa volta à normalidade. Eugênia faz faculdade de nutrição à tarde, no mesmo período em que o filho está na escola. Pela manhã, confere o dever de casa, o banho e almoçam juntos. Também não deixa de acompanhá-lo às aulas de futebol de salão. "Chicão é bom de bola", já dizia Cássia Eller. A convite de CRESCER, Eugênia aceitou escrever sobre como conseguiu explicar tantas coisas complicadas a uma criança e como seu caso serve de espelho a outros pais e mães que disputam os filhos nos tribunais. "Não é fácil escrever sobre coisas tão pessoais", explicou ela. "Descrever emoções é coisa para poeta." Eugênia começou seu texto no dia do aniversário de Cássia. O que você vai ler a seguir não é poesia, mas o sensível relato de uma mulher que. com serenidade, venceu as barreiras do preconceito e lutou bravamente pelo direito de continuar sendo mãe de seu filho. E que, agora, em paz, pode se dar ao luxo de sentir saudade da companheira de 14 anos.


A intimidade de uma família feliz: Eugênia cuidou de Chicão desde que ele nasceu. Cássia tocava violão para o filho; Eugênia dava-lhe comida e trocava a fralda. Os três estavam sempre juntos, como se pode comprovar na foto feita no Mc Donald's ou no aniversário de 2 anos do garoto (abaixo)

Agora estou em paz

"Hoje, 10 de dezembro de 2002, minha companheira Cássia Eller faria 40 anos. Essa data, que já foi comemorada com muita alegria, reveste-se de tristeza. A saudade bate forte no coração de todos aqueles que conheceram e privaram da companhia da pessoa maravilhosa de Cássia. A menina doce e tímida que nos encantava com sua bondade e alegria de viver.

Estávamos em Brasília, eu e o Francisco, quando recebemos, com perplexidade, a notícia de sua morte. Havíamos passado juntos o Natal de 2001, em companhia de minha família. Naquele momento, embora chocada e transtornada com o fato, precisei reunir todas as forças para me estruturar e dar algum conforto para meu filho. A presença amiga da família e dos amigos foi fundamental nesse momento.

Já nos primeiros dias após sua morte, alguns amigos queridos do Rio de Janeiro começaram a me alertar para a situação delicada do Francisco. Ele era menor, órfão e estava em situação irregular. Eu precisava, o quanto antes, tomar providências no sentido de requerer a guarda provisória. Contatei o advogado de Cássia, que começou a juntar os documentos que seriam necessários e iniciamos o processo de guarda.

Procurei conversar com o Francisco, dizendo apenas o necessário para que ele ficasse a par da nossa situação. Sentia que seria melhor que ele soubesse de tudo por mim, já que o assunto estava sendo amplamente divulgado pela mídia. Nesse momento, contei com a colaboração preciosa de Tânia Almeida, terapeuta do Francisco, que me ajudou a decidir a melhor maneira de abordar os assuntos delicados que tinha para tratar com ele.





Não sei definir com precisão tudo que senti naqueles dias. Muitas emoções me assaltavam: medo, angústia, tristeza e, ao mesmo tempo, um estado de alerta e a consciência de que precisava me preparar para enfrentar aquela situação da melhor maneira possível. Nada podia dar errado. Nosso futuro dependia das decisões que tomaria dali pra frente.

Procurei apoio na família da Cássia e desde sempre pude contar com a compreensão e o carinho de sua mãe e seus irmãos. Estávamos unidos no propósito de aliviar o sofrimento do Francisco e sabíamos que o melhor para ele era permanecer comigo. Por outro lado, evitei o contato com seu avô, que havia dado declarações desastrosas na imprensa, tornando inviável qualquer tipo de entendimento. Foi com muita indignação que soubemos, também pela imprensa, que ele pretendia requerer a guarda do Francisco. Nesse momento, precisei conversar com meu menino e explicar que haveria uma disputa judicial pela sua guarda e que, embora eu reconhecesse que o avô tinha o direito de reivindicar sua companhia, eu não concordava com a maneira desrespeitosa e mentirosa com que ele se referia à nossa família, à nossa casa e ao meu comportamento.

Os meses que se seguiram foram muito difíceis. Ao mesmo tempo em que tinha de lidar com a ansiedade que uma disputa judicial provoca, precisava conviver com minha tristeza, com a saudade que aumentava a cada dia e, principalmente, estar inteira para confortar o Francisco. É essencial, num momento como esse, adotar uma atitude positiva diante da vida, encontrar alegria dentro da tristeza, afastar a depressão e descobrir o que a situação, por pior que seja, pode nos trazer de bom.

Em momento algum imaginei a possibilidade de ficar sem meu
menino. Procurava acreditar que a Justiça brasileira, assim como a
sociedade, que abertamente me apoiou, saberia decidir pelo bem-estar daquela criança, reconhecendo o afeto que nos unia, a família que efetivamente formávamos.

Foram momentos difíceis, sem dúvida. Mas nos sentíamos confortados com a ajuda incondicional dos amigos, da opinião pública, de artistas e políticos que se mobilizaram num movimento de apoio a nossa causa. Senti muito orgulho de ser brasileira e de fazer parte de um povo que deixava de lado preconceitos, que respeitava as diferenças e que apostava no amor e no respeito.

Finalmente, em 31 de outubro deste ano, o juiz da 2a Vara de Órfãos do Rio de Janeiro concedeu-me a tutela definitiva do Francisco. Ele seguiu para a escola depois de um longo depoimento e telefonamos para lá assim que saiu a decisão. Sua professora fazia aniversário naquele dia e disse a ele que aquela notícia era o melhor presente que havia recebido. Comemoramos com alívio e alegria essa decisão. Seus amigos fizeram muita festa e alguns deles foram festejar conosco num restaurante na Urca.

Embora essa decisão da Justiça não tenha criado uma jurisprudência, pois se tratou de um acordo entre as partes, acredito que tenha aberto um precedente importante. Demonstra a tendência do direito de considerar e respeitar a nova família brasileira. Aponta um amadurecimento das leis que devem acompanhar as transformações da sociedade e espero que nossa experiência possa servir de ponto de partida para uma ampla discussão sobre os direitos de casais homossexuais.

Passado um ano da morte da minha linda menina, depois de tanta luta para manter íntegra nossa família, sinto que estou em paz. Espero, agora, educar nosso filho da melhor maneira possível, para que ele se torne um homem de bem, para que seja feliz e tenha uma vida digna. Conto com a família da Cássia. Durante todo esse ano estreitamos nossa relação e temos em comum um grande amor por essa criança e o desejo de vê-la feliz. Sempre que nos visitam, o Francisco se alegra ao ouvir histórias de sua mãe quando era criança e, aos poucos, vamos substituindo a saudade que dói por outra mais agradável e mais leve.

Sinto-me privilegiada de ter podido conviver com a figura iluminada de Cássia durante todos esses anos. Acho mesmo que ela não era muito desse mundo. Minha querida companheira que, ao partir, em sua infinita generosidade, me deixou um filho lindo e, para seu filho, uma mãe."

Maria Eugênia Vieira Martins






LAST






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