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No Carnaval do ano passado, quando foi divulgado que duas múmias haviam sido encontradas no Mosteiro da Luz, em São Paulo, o mais inusitado da descoberta era a informação de que os corpos das duas freiras tinham sido encontrados graças a um foco de cupim. Sob o pretexto de debelá-lo, marteladas em uma das seis tumbas, onde funcionou até 1820 o antigo cemitério das Irmãs Concepcionistas da Congregação da Imaculada Conceição, revelaram a descoberta, de grande valor histórico e arqueológico. Desde então, a sala de 30 metros quadrados foi trancada com uma corrente para que arqueólogos escavassem nos outros cinco túmulos. ISTOÉ teve acesso ao antigo cemitério e às fotos do Projeto Arqueologia Funerária no Mosteiro da Luz. Entre os detalhes das pesquisas feitas nos corpos das 11 irmãs encontrados ali, uma revelação: foi a possibilidade de haver uma santa enterrada no mosteiro que determinou a abertura das tumbas da parede, conhecidas como carneiras. Ou seja, desde a remoção do primeiro tijolo, o que se procurava não era cupim. "Todos nós sabíamos do cemitério das irmãs dentro da clausura", conta o cônego Celso Pedro da Silva. "Isso se faz em todos os mosteiros do mundo."
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APURO O trabalho dos arqueólogos em uma das tumbas do Mosteiro da Luz, onde ainda vivem 14 irmãs enclausuradas: 11 corpos entre contas de terço, sete pares de sapato e flores |
Aos 73 anos e procurador do mosteiro, ele é o porta-voz da curiosa história que precipitou as escavações. Remonta ao século XIX, quando uma das freiras do mosteiro dizia ouvir, seguidas vezes, um barulho vindo de uma das carneiras - exatamente a que foi aberta primeiro, no ano passado. Alertada do fato, a madre superiora resolveu, então, abrir a tumba. A parede foi quebrada e percebeu-se que havia um corpo intacto enterrado ali. O túmulo foi fechado imediatamente, mas a história da religiosa com tecidos de pele preservados nunca mais saiu dos corredores da Luz. "Um corpo que não se corrompe, fica intacto, para nós significa santidade", explica o cônego.
Com essa ideia na cabeça, Celso Pedro, então capelão do mosteiro, passou a discutir com a madre superiora a possibilidade de tirar a história a limpo. O assunto foi tratado, inclusive, com as 14 irmãs que, hoje, vivem enclausuradas no local. Até que se decidiu abrir a carneira, localizada em uma das dependências do Museu de Arte Sacra (MAS), que funciona no mosteiro, no meio de um feriado, sem a presença de visitantes. "A gente abre e, se houver mesmo uma irmã santa ali, comunica o cardeal. Do contrário, fechamos e morreu o assunto", acordaram. Além do cônego, dois seminaristas, o capelão atual, a diretora do MAS e três irmãs enclausuradas foram chamados para a abertura da carneira. Arqueólogos do Museu de Arqueologia e Etnologia, da Universidade de São Paulo (USP), e especialistas do Instituto Médico Legal também estiveram presentes.
"Tínhamos curiosidade de saber o que existia de verdade no túmulo. Se não tivesse nada demais, era para fechar e acabou-se. Só que isso não foi feito", diz Celso Pedro.
REVELAÇÃO O cônego Celso Pedro (abaixo, à esq.) e a tumba que poderia revelar uma santa: "Um corpo que não se corrompe, para nós, é santidade", diz ele
Os dois corpos encontrados na carneira de número 1 - todas elas medem 1,90 cm de comprimento por 60 cm de altura e foram numeradas pelos pesquisadores - tiveram suas datas de morte precisadas: 1780 e 1880, respectivamente. Têm, portanto, 230 e 130 anos (há uma margem de erro de 40 anos para cima ou para baixo). A terra retirada dos túmulos também já foi analisada e data dos séculos XVII e XVIII. Dos corpos enterrados nas seis tumbas, três são múmias, quatro, esqueletos e quatro apresentam os ossos desarticulados.
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PENEIRA A terra retirada das tumbas é dos séculos XVII e XVIII. Dois corpos têm 130 e 230 anos |
Os arqueólogos tiveram acesso aos registros históricos das 130 freiras que morreram na Luz. Informações como enfermidades, causa mortis, idade e ancestralidade delas serão comparadas com as análises dos materiais coletados nas tumbas. Até agora, 585 peças foram registradas no inventário arqueológico, como contas de terço, escapulários, sete pares de sapato, ossos, tecidos e flores. Esse trabalho - pioneiro no País, sob abordagem forense, arqueológica e antropológica, com material mumificado de religiosas brasileiras - só prosseguiu graças à atuação do cônego. "Pensando na ciência e na história paulistana, seria uma falta de inteligência impedir algo que possa contribuir para a cultura", diz ele, que hoje é vice-presidente do conselho do MAS.
Na Luz, ciência e religião têm caminhado de mãos dadas por uma causa nobre: reescrever a história de religiosas que conviveram e contribuíram com um santo, o Frei Galvão. O trabalho encontra-se na fase final de escavação. Depois, irão ocorrer as análises de laboratório. "Há vestígios que devem ajudar a interpretar a história de como se vivia em São Paulo", afirma Sérgio Francisco Monteiro da Silva, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, que coordena a equipe de arqueografia funerária. A carneira de número 5 é a única que possui apenas um corpo enterrado. Trata-se da múmia em melhor estado de conservação. Ela está calçada, apresenta as mãos amarradas por uma fita sobre o tórax em posição de oração."Não me admiraria se ela fosse uma parente de Frei Galvão", opina Mari Marino, diretora do MAS. Os corpos das freiras não deixaram os túmulos durante a pesquisa. As carneiras serão fechadas com os mesmos tijolos, que foram retirados e numerados para retornarem na mesma posição. Uma urna com um pouco da terra original ficará depositada dentro de cada uma delas. Será o fim de uma lenda que se transformou em um trabalho cuidadoso e apurado.
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