|
Sem ar-condicionado O município de Charqueadas (RS) não tem verão ao estilo senegalês, mas parte de sua população parece ter especial apreço por ar-condicionado. No final de 2008, a CGU descobriu que sete aparelhos de cerca de R$ 15 mil, adquiridos com recursos do Fundo Nacional de Saúde, desapareceram dos postos de saúde. A prefeitura não soube explicar o destino deles e nem de outros equipamentos sumidos, orçados em R$ 48 mil |
Os relatórios da CGU mostram que a prática de desviar recursos públicos nas pequenas cidades brasileiras é tão disseminada quanto a certeza da impunidade por parte dos criminosos. As fraudes grosseiras se repetem às centenas e explicitam uma falta de responsabilidade assustadora com o dinheiro dos contribuintes. Em alguns casos, os métodos utilizados pelos administradores públicos para desviar os recursos por pouco não ultrapassam a fronteira do absurdo. "O criminoso do colarinho-branco sabe que, se for pego e condenado, só será punido em dez anos, talvez 20 anos", diz o ministro-chefe da Controladoria-Geral da União, Jorge Hage. "Esse absurdo criou uma sensação de impunidade que é ainda mais acentuada nos pequenos municípios."
Cidades fiscalizadas pela CGU receberam R$ 11 bilhões em repasses federais
Foi provavelmente com essa certeza que os responsáveis pela Secretaria de Obras da pequena e isolada cidade de Boa Vista de Ramos, no meio da amazônia brasileira, sacaram mais de R$ 730 mil da conta da prefeitura oito dias antes do fim do mandato do prefeito eleito em 2002. Os recursos advindos do Ministério das Cidades seriam usados na construção da primeira estação de tratamento de esgoto do pequeno município de 13 mil habitantes. O dinheiro só deveria sair da conta quando a empresa vencedora da licitação desse início às obras. Mas não foi o que aconteceu. Quando os fiscais da CGU chegaram à cidade, o local onde a estação deveria estar instalada estava ocupado por cinco casas. Nenhuma delas tinha sequer um rudimentar sistema de saneamento.
IMPUNIDADE Ministro Jorge Hage critica a morosidade do Judiciário |
Na cidade de Casa Nova, localizada no norte da Bahia, os fiscais da Controladoria descobriram um caso tão ou mais emblemático dessa corrupção que ninguém vê. Por meio de recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental (Fundef), a prefeitura autorizava a agência do Banco do Brasil local a quitar dívidas pessoais de cidadãos que nem ao menos tinham relação direta com o poder público. Ao todo, Casa Nova gastou R$ 478 mil que deveriam ser investidos nas escolas da cidade para quitar as dívidas de 18 pessoas que haviam contraído empréstimos no banco por meio do crédito direto ao consumidor.
Os dois casos explicitam também a fragilidade dos sistemas de controle do Estado. É inacreditável que o saque de quase R$ 1 milhão e o pagamento de dívidas pessoais com recursos da educação só sejam descobertos em uma operação especial. A própria Controladoria não faz ideia de quando os fiscais voltarão a essas cidades. Ainda faltam quase quatro mil municípios para ser fiscalizados e, provavelmente, novas irregularidades só surgirão naqueles que passaram pelo crivo do órgão por razões pontuais. "O fato é que sob o ponto de vista da concepção estrutural do Estado brasileiro seria necessário repensar a federação para que medidas efetivas de combate à corrupção fossem aplicadas", diz o secretário-geral da Associação Brasileira de Municípios, José Carlos Rassier.
A CGU não está mudando a estrutura do Estado e, na verdade, o amplo trabalho que vem fazendo tem poucos resultados práticos. Até agora, cerca de 400 ações já foram ajuizadas pelo Ministério Público Federal com base nos relatórios do órgão e algo perto de 450 processos judiciais teve o mesmo destino por decisão da AdvocaciaGeral da União. Mas isso não significa muita coisa, como mostrou ISTOÉ em janeiro deste ano ao relatar alguns casos de corrupção apontados pela CGU. A Controladoria só pode tomar decisões administrativas contra os funcionários do Executivo. Prefeitos, vereadores e funcionários públicos estaduais e municipais, em última instância, só podem ser punidos pela Justiça. "E aí está um grande problema: o sistema judicial brasileiro é moroso demais", diz o ministro Jorge Hage. "É um absurdo, mas não há muito que possamos fazer."
5 toneladas de elástico São Francisco do Conde (BA) é, talvez, a maior consumidora per capita de elásticos para enrolar dinheiro do País. Em 2002, a Secretaria de Educação da cidade comprou cinco toneladas de elástico para dinheiro, algo como 4,3 milhões de pedacinhos de borracha. A CGU, no entanto, não conseguiu achá-los nas escolas do município, que também receberiam, de acordo com as compras com recursos do Fundef, 36 mil pincéis atômicos |
Hage não aceita as afirmações de que a Controladoria desempenha um papel muito mais simbólico do que efetivo. Para ele, um dos objetivos do programa de fiscalização dos municípios é também criar uma espécie de cultura do medo entre os administradores públicos. "Isso está acontecendo. Há um temor nas pequenas cidades e esse também é um dos nossos objetivos", diz. Mas ele concorda que não serão visitas de duas semanas de alguns fiscais federais que irão transformar a realidade do País."O universo de mais de cinco mil municípios é grande demais. É preciso que a sociedade civil entre nessa luta, sem ela a fiscalização sempre será deficitária", diz Hage.
Mas fiscalizar municípios pequenos, que não divulgam suas informações e exercem poder político e econômico na vida da maior parte de seus moradores, não é exatamente uma tarefa fácil. Além das dificuldades em obter as informações, é preciso também conhecimento técnico para decifrar os herméticos relatórios de prestação de contas. Algumas experiências têm dado resultado, mas são casos isolados.
A mais bem-sucedida delas ocorreu no município de Rio Bonito, no interior de São Paulo. Um grupo de amigos nascidos na cidade e liderados pelo então presidente da Klabin, Josmar Verillo, formou uma ONG para apresentar projetos à prefeitura e trabalhar na captação de recursos para executá-los.
Em pouco tempo perceberam que, apesar da boa arrecadação, nada acontecia. "Vimos que não adiantava nada nosso esforço porque tudo que entrava na prefeitura era desviado de alguma forma", diz Verillo, hoje presidente da usina Santa Cândida. "Decidimos mudar nosso foco de atuação e começamos a fazer um trabalho de fiscalização rigoroso nas contas municipais." Dois anos depois, em 2002, a ONG batizada de Amarribo conseguiu cassar o prefeito Sérgio Antônio Buzar, que depois foi condenado pela Justiça e só foi detido em Rondônia após um longo período foragido.
Como a roubalheira que assola a vasta maioria dos municípios brasileiros traz tanto - ou mais - prejuízo ao País quanto os grandes escândalos
Yan Boechat e Larissa Domingos
Gasto sem provas A Prefeitura de Oiapoque (AP) não se deu nem mesmo ao trabalho de falsificar notas fiscais. A cidade recebeu, entre 2005 e 2007, R$ 421 mil do Ministério das Cidades para construir um novo terminal rodoviário. No entanto, a administração municipal não provou à CGU como usou R$ 271 mil dos recursos. Não havia notas que justificassem os gastos. O caso foi encaminhado ao Ministério Público Federal do Amapá |
A estratégia funcionou, mas não garantiu resultados permanentes. O novo prefeito, eleito em 2006, Rubens Gaiozo Jr., passou a adotar as mesmas práticas de seu antecessor. Novamente a ONG voltou à fiscalização, descobriu novos casos de corrupção e conseguiu cassá-lo, em 2007. "Pela experiência que adquirimos nesses processos, me arrisco a afirmar que 98% dos municípios brasileiros têm desvios de recursos públicos", diz Verillo. "Se não é o prefeito, são os secretários ou alguém da equipe. E isso acontece porque é muito fácil roubar dinheiro público no Brasil. Não há estrutura capaz de acompanhar o que acontece nos quase 5,6 mil municípios do País."
ONG do interior paulista conseguiu cassar dois prefeitos corruptos em cinco anos
LUPA Para Josmar Verillo, o cidadão precisa fiscalizar |
Verillo advoga pela mesma tese do ministro Jorge Hage: sem apoio da sociedade civil é praticamente impossível combater essa corrupção em contagotas que assola todo o País. "Não tem jeito: ou você tem um grupo de cidadãos acompanhando a prefeitura de perto ou haverá corrupção", diz o executivo. Sua opinião é quase consenso entre as entidades que combatem a corrupção no País. "Só a atenção e a cobrança dos cidadãos podem aprimorar o controle dos gastos públicos. É utopia crer que esse papel caiba ao Estado de forma exclusiva", diz Augusto Miranda, vice-presidente do Instituto de Fiscalização e Cidadania (IFC).
Criado em 2005 em Brasília, o IFC trabalha no incentivo à criação e apoio a ONGs destinadas a fiscalizar o poder público municipal. Hoje são 100 entidades apoiadas pelo instituto, que, além de treinar seus integrantes, oferece ferramentas para um controle mais efetivo das contas dos municípios brasileiros. "Mas a verdade é que não basta vontade e dedicação, é preciso também força política e econômica para se contrapor ao poder público, que em regiões pobres é o mantenedor de quase toda a população", diz Miranda.
ESTRUTURAL Rassier, da ABM: "O Estado precisa mudar para coibir a corrupção
Não são todas as cidades brasileiras que dispõem de um executivo com experiência internacional, com passagens pela presidência de uma multinacional, co mo é o caso de Jos mar Verillo. São poucos também os municípios que podem contar com profissionais qualificados que consigam entender a complexa contabilidade pública.
No fundo, esperar que um país em que 30 milhões de pessoas cruzaram a linha que os separava da pobreza extrema há poucos anos tenha uma rede de fiscalização formada pela sociedade civil é quase uma utopia. E a corrupção que assola os pequenos municípios é a força motriz de um círculo vicioso que retroalimenta as máfias, os prefeitos, as empresas, enfim, os criminosos de toda sorte que se aproveitam da incapacidade do Estado em fiscalizar seus recursos
Sphere: Related Content