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sábado, 31 de outubro de 2009

Barbárie e indiferença


Pedro Estevam Serrano - 29/10/2009

Em geral, neste espaço, trato de temas políticos com nuances jurídicas. Ou de aspectos jurídicos inerentes à ocorrências políticas. Hoje, tratarei do não direito, da desordem, da falta de civilidade, da barbárie.

Duas noticias divulgadas neste mês refletem bem a situação que o mundo atravessa em tempos de capital globalizado e de sua crise. Em Hong Kong, foi vendida a moradia mais cara do mundo, um apartamento no valor de mais de US$ 56 milhões. Nesta mesma Hong Kong, pessoas moram em jaulas para poderem não ficar ao relento, cerca de 20 pessoas estranhas morando num espaço de cerca de 50 metros quadrados.

No início da pujança da política neoliberal no globo, no começo dos anos 1990, algumas teses socialistas-democráticas foram consideradas ultrapassadas. Concepções como intervenção do Estado nos processos econômicos para conter a anarquia produtiva e para distribuir riqueza foram tratadas como idéias de dinossauros, jurássicas. Direitos dos trabalhadores, Previdência e direitos sociais seriam conceitos conservadores, demagógicos, que atravancariam o progresso e o desenvolvimento econômico.

A política e o Estado, únicos veículos possíveis de contenção do poder econômico numa democracia e de possibilidade de um mínimo de voz à maioria da sociedade, foram reduzidas à sua sombra, ou seja, foram postos como se fontes exclusivas e unívocas da corrupção e da ineficiência. E as corporações privadas, gigantes do capital, como o sal da terra do progresso, da transparência e da ética.

Evidentemente, esqueceram de um detalhe, menor. Para serem objeto exclusivo do passado, as teses socialistas democráticas teriam de ver superados pelo capital pujante os problemas que levaram à sua elaboração, quais sejam, a miséria de grande parte da humanidade e as desigualdades sociais.

Obviamente, corporações privadas são um bem à sociedade, são formas organizadas de gestão da riqueza, que quando limitadas ao seu papel de atuação econômica, em geral, se traduzem em bem público, em meio à busca que fazem de realização legítima de lucros. Mas quando se arvoraram a exercer papéis de poder político, procurando ocupar o espaço dos interesses públicos com o seu próprio, a resultante foi a mesma que se verificou no exórdio do modelo industrial de capitalismo há mais de século, quando o capital graçava ilimitado e indomável: excessiva concentração de riqueza que anarquizou o processo produtivo, relegando a maioria da sociedade à míngua de condições mínimas de sobrevivência digna.

Após esta atual crise econômica, que, diga-se, está longe do fim, o que se observa por entre os escombros de civilidade que ainda restam após a devastação é um mundo cada vez menos humano e mais bárbaro. O instinto de preservação da espécie, no ambiente incluído na economia, se transmuta em preservação apenas dos humanos pertencentes ao ciclo econômico mais qualificado, assemelhados ora por certas características genéticas comuns, ora pela posse de certos signos do pertencimento.

Não se consome mais para obtenção de utilidades, consome-se para possuir signos de inclusão o suficiente para se distinguir da massa, destinada ao subemprego ou à morte. Os produtos foram transformados em experiências, como afirma Lipovetsky. Experiência de pertencimento ao grupo incluído, e de descolamento da espécie como um todo. Não é à toa que a mídia em geral trata os mais exuberantes na indiferença quanto ao destino da maioria da humanidade como “descolados”.

Falamos muito sobre os excluídos em outras colunas, o tema é relevantíssimo. Mas temos de por os olhos também sobre nós, os incluídos. Outro dia me surpreendi em sala de aula, ao debater com jovens do primeiro ano as características do Estado de bem estar social, a observação de vários alunos de que não vêem sentido em ter de arcar com mais tributos para resolver problemas “dos outros”. Não existe mais apenas “nós” na humanidade, mas “nós” como algo contraposto a “eles”.

A publicidade traz cada vez mais apelo à noção de família. Em princípio, algo louvável. Família se tornou um conceito quase incontrastável, um bem em si. Família como realidade é mesmo um bem absoluto, mas seu uso na comunicação de massas é de um perigo tão nocivo quanto sutil.

Na tradição judaico-cristã, família é uma célula social, que nos retira de um viver egocêntrico e nos aproxima da alteridade como algo nosso. A família, nesta tradição, é nosso link com a comunidade em que vivemos, nos aproxima dela e nos faz com ela conviver. Família me faz ser mais que apenas eu, nela, me reconheço e por ela me reconheço no humano.

Mas o que se tem visto é uma inversão de sentido, sutilmente patrocinada pela máquina de produção de subjetividades do capital, cujos efeitos facilmente se verificam no modo de pensar do contingente jovem da classe média paulistana. A Família volta à moda, mas não como forma de aproximação da comunidade e do próximo-humano, da alteridade em suma, como na tradição cristã. A similitude genética, de feições, entre seus integrantes é destacada como forma de diferenciação, de descolamento do comum e do humano. Se cuido bem dos meus meninos para quê me preocupar com o menino do farol?

A família é assim usada, enquanto signo comunicativo, como forma de afirmação de desigualdades e diferenças e não como forma de comunhão com o humano. Vira forma de opor diferenças onde deveria impor o comum. A criança que tem traços semelhantes ao meu vira apoio afetivo para minha indiferença quanto aos humanos mais distantes desses traços. E assim criamos nossos saudáveis filhos incluídos. Alimentamos não seu instinto de solidariedade que vem da preservação da espécie, mas suas diferenças.

Estimulamos a considerarem-se o bem, o “descolado”, o superior. Tanto mais informação, aprendizado de línguas e ballet, quanto mais afundamos nossos jovens em arrogância, insensibilidade e indiferença. Bom é ter um porsche e não participar da política ou ter como seus os problemas públicos e humanos. Criamos bárbaros egocêntricos, que reduzem a existência a ter dinheiro e fama nos sites descolados da Internet.

Em suma, a insensibilidade social do capital mora em minha casa e me chama de pai, ou de professor na escola em que trabalho. O problema humano não é só um problema dos políticos ou dos donos do poder econômico, é de todos nós e todos temos uma parcela de responsabilidade pelo que ocorre.

O progresso tecnológico conjugado à expansão do capitalismo há muito transmutou o sistema de produção de mercadorias em produção de subjetividades. A oferta passou a criar demanda.

A manutenção das desigualdades sociais bárbaras, que levam imensos contingentes humanos à morte ou à vida indigna, depende da manutenção de uma subjetividade indiferente por parte dos incluídos, por nós. Quem se põe como indiferente na luta entre o mais forte e o mais fraco, em verdade, apóia o mais forte. O maior exemplo brasileiro dessa indiferença reside, a meu ver, em meu próprio segmento social, a classe média paulistana. A ela cabe perguntar, mesmo vindo de um ateu que sou: onde ficaram os ensinamentos solidários de nossa educação cristã?

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