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quinta-feira, 4 de março de 2010

Versos malditos





Embora tenha publicado apenas um livro, o poeta Augusto dos Anjos conquistou os leitores com uma obra densa sobre as angústias e desilusões do ser humano


Todos os que circulam pela linha verde (Vila Madalena/Alto do Ipiranga) do metrô de São Paulo já devem ter percebido que, desde outubro de 2009, nas paredes das estações, estão estampados poemas de grandes nomes do gênero, do Brasil e de Portugal. As intervenções fazem parte do projeto Poesia no Metrô, que deve se expandir para as outras linhas da cidade e para algumas estações da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). Porém, talvez apenas os mais atentos notaram que, na estação Vila Madalena, há versos de Augusto dos Anjos, de um poema chamado O Morcego que diz: “A Consciência Humana é este morcego!/Por mais que a gente faça, à noite, ele entra/Imperceptivelmente em nosso quarto!”. Achou assustador? Pois da cabeça desse que é considerado um dos maiores nomes da poesia brasileira saíam imagens ainda mais inquietantes.

Autor de textos como Budismo Moderno – que traz uma expressão bastante conhecida: “Ah! Um urubu pousou na minha sorte!” –, o poeta é caracterizado pelo pessimismo, pela angústia e pela desilusão que nutriam seu vocabulário e sua temática. Publicou apenas um livro em vida, Eu (há uma edição de 2005 pela Ática), em 1912, dois anos antes de morrer, e já foi associado ao parnasianismo – como Olavo Bilac (1865-1918) –, ao simbolismo, a exemplo de Cruz e Sousa (1861-1898), além de aparecer como expoente na poesia do pré-modernismo.

O consenso entre estudiosos de sua obra é de que Augusto dos Anjos soube explorar as inquietudes e a tragédia humana em seus poemas sem que a temática o afligisse. Na verdade, há quem diga que ele foi uma pessoa extremamente “amável”. Entre os que atestam a personalidade “calma, normal e alegre” do poeta está a doutora em letras pela Universidade Federal da Paraíba, e pós-doutorada pela Vanderbilt University, nos Estados Unidos, Sandra Sassetti Fernandes Erickson. “Ele morreu jovem ironicamente, e, por isso, suas desilusões não foram tantas”, afirma a especialista, autora do livro A Melancolia da Criatividade na Poesia de Augusto dos Anjos (Editora da Universidade Federal da Paraíba, 2003). “O imaginário não convergia com sua vida pessoal.”


Vida sem exageros
Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos nasceu em 20 de abril de 1884, no engenho de açúcar Pau D’Arco, no município de Sapé, na Paraíba. A vida teria sido relativamente simples e saudável – embora sua aparência franzina sugerisse uma saúde frágil. De acordo com Sandra Erickson, ele viveu como um “santo”: “Não bebeu, não fumou, não magoou ninguém. Amou e foi amado”.

Até sua condição financeira não levaria a pensar que o poeta tivesse algo do que reclamar: no engenho onde nasceu, era filho dos donos, não dos empregados. O pai, Alexandre Rodrigues dos Anjos, era um intelectual de pensamento liberal. Nos estudos, Augusto era “brilhante”. Destaque em sua sala na Escola de Direito de Recife, onde se graduou em 1907.
Acompanhou, nos primeiros anos do século 20, e com especial atenção, a substituição do modelo latifundiário pela instalação das grandes usinas de cana-de-açúcar – o início do assalariamento da população ex-escrava, o que influenciou sua produção literária. Segundo a doutora em teoria e história literária – com ênfase em literatura brasileira – pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Francine Fernandes Weiss Ricieri, o escritor viveu no mundo e dele colheu impressões, as quais estiveram na gênese de seus versos. “Contudo, há o risco de uma explicação direta que reduza a escrita do poeta ao resultado de determinantes sociais”, alerta a especialista. “O mais interessante é a especificidade da elaboração de um texto, seja isso uma reação ou não ao mundo externo.”


Crítica social
Em observação à falência dos proprietários de engenho e à miséria dos ex-escravos, Augusto dos Anjos criticou contundentemente o mundo e o patriarcado brasileiro. Em Ricordamzza Della Mia Giuventú, por exemplo, ele se volta contra a própria mãe, que acusara sua ama de leite de furtar “algumas moedinhas” da família – para quem a empregada, ele continua, dava o “ouro líquido”, ou seja, o leite, tirado da boca da própria filha. Já em a Árvore da Serra [poema reproduzido acima], o autor se refere aos direitos da natureza. “O interesse, porém, do poeta no mundo vai muito além do fenomenal”, retoma Sandra Erickson. “Ele representa algo bem mais profundo e além do contexto sociopolítico e econômico. Por isso, à medida que os contextos passam, Augusto vai se tornando cada vez mais, ele mesmo, o meio para a sociedade e a poesia.”


Estética da linguagem
Sandra afirma ainda que Augusto dos Anjos aprofundou potencialidades estéticas dez anos antes do que viriam a fazer expoentes do modernismo como Ezra Pound e T. S. Eliot. “[o livro Eu] É o evento inaugural do modernismo”, declara. “Não apenas da poesia brasileira, mas da ocidental, já que após sua publicação quebrou-se um paradigma.” Ainda segundo a especialista,a sofisticação poética que caracteriza o modernismo brasileiro é comum em sua linguagem. Sandra explica que o tratamento imagístico e linguístico de seus temas – morte, decadência e decomposição física da matéria – fez com que o poeta fosse geralmente associado ao escritor norte-americano Edgar Allan Poe e ao francês Charles Baudelaire. “Todavia, embora utilize elementos simbolistas e decadentistas, dos Anjos não é um poeta satânico como Baudelaire”, ressalva. “Pois não se interessa, programaticamente, por uma rejeição radical e obsessiva ao cristianismo.”

Para Francine Weiss é errônea a interpretação de que o poeta teria assumido feições parnasianas e simbolistas. “Mesmo que se valha de aspectos que passaram para a historiografia literária como sendo parnasianos ou simbolistas, não é pertinente utilizar qualquer dos dois termos como referência definidora do trabalho do escritor”, diz.

Já o pessimismo, recorrente em seus versos, é outra parte do imaginário do poeta, “estrategicamente arquitetada para articular o fenômeno denominado por Harold Bloom [crítico norte-americano]: o da angústia”, acrescenta Sandra. “Quanto maior a força poética de um poeta, maior sua melancolia da criatividade.”

Augusto dos Anjos casou-se com Ester Fialho, com quem teve dois filhos, Glória e Guilherme. Católico praticante, recebeu – a seu pedido – o rito de extrema-unção, antes de morrer de pneumonia em 1914.



POEMAS

A árvore da serra

— As árvores, meu filho, não têm alma!
E esta árvore me serve de empecilho...
É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice calma!

— Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pos almas nos cedros... no junquilho...
Esta árvore, meu pai, possui minh’alma! ...

— Disse— e ajoelhou-se, numa rogativa:
«Não mate a árvore, pai, para que eu viva!»
E quando a árvore, olhando a pátria serra,

Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra!



Budismo moderno

Tome, Dr., esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?!

Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contato de bronca destra forte!

Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;

Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!





Embate entre poetas
Espetáculo teatral apresenta Augusto dos Anjos e Olavo Bilac em posições antagônicas na vida e na arte
A contradição do sucesso e do fracasso originou o espetáculo A Última Quimera (foto), montagem da Cia. Les Commediens Tropicales, em cartaz de 29 de janeiro a 5 de fevereiro, no Sesc Santana. De um lado, Augusto dos Anjos, homem de sensibilidade aguçada e que produzira em vida o livro Eu (há uma edição de 2005 pela Ática), aclamado postumamente. Do outro, Olavo Bilac, reconhecido e requisitado em vida, que teve o prestígio em queda acentuada depois da morte. A peça é um “estudo-ensaio-espetáculo”, conforme define a companhia, e traz uma recorrente questão: qual a contribuição de um artista no processo histórico?

Adaptado do livro homônimo da escritora Ana Miranda, A Última Quimera se pretende uma “pseudobiografia”, criada a partir das cartas trocadas entre o poeta e sua mãe, Córdula de Carvalho Rodrigues dos Anjos, enquanto Augusto morou no Rio de Janeiro e na cidade mineira de Leopoldina. “Olavo Bilac, contemporâneo de Augusto, foi ovacionado em vida e quase relegado ao ostracismo depois da morte e do fim do movimento parnasiano”, explica o ator, dramaturgo, produtor e integrante da companhia Carlos Canhameiro. “Esse é o embate principal da peça.”



















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