Um jornalista visita o senhor dos livros
Wilker Sousa
Buscava uma pauta sobre livros. Aproximava-se a reunião e não dispunha de qualquer sugestão, o que me afligia. A urgência imposta pelo jornalismo por vezes sufoca aqueles habituados ao universo da reflexão, porém, em contrapartida, é capaz de expor o repórter ao inesperado - o avesso da rotina monástica. Recorri ao Google, pai dos apressados. "Livro", "biblioteca", "livreiro" foram algumas das palavras que digitei vertiginosamente na tentativa última de encontrar algo interessante para a reunião de pauta. Entre os milhares de resultados da pesquisa, um nome aparecia com frequência: José Mindlin.
Comecei, então, a ler algumas das dezenas de matérias relacionadas àquele senhor de mais de 90 anos. Fiquei fascinado por sua biblioteca particular e pelo raro acervo ali presente. Teria encontrado minha pauta? O fator ineditismo estava obviamente excluído, pois notei que a imprensa já havia explorado exaustivamente a história do bibliófilo e sua biblioteca. Precisava então encontrar algo novo relacionado ao tema - o famoso "gancho", em bom jargão jornalístico - pois do contrário, minha sugestão seria descartada de imediato. Devo admitir que a busca pelo "gancho" tornou-se naquele instante uma obsessão, pois precisava encontrar uma forma de conhecer a biblioteca. Entre as notícias que encontrei, uma dava conta que Sr. Mindlin decidira doar sua coleção brasiliana à Universidade de São Paulo. Ali estava meu pretexto.
Gabriel Brito Bueno de Oliveira |
Felizmente a pauta foi aceita; restava conseguir a visita. Aquele senhor poderia me receber? Temi ouvir um "não" - nada mais compreensível para alguém que, no alto de seus 93 anos, possivelmente tivesse optado pela tranquilidade, ao invés de receber visitas de repórteres em início de carreira. Liguei para sua secretária, que me prometeu um breve retorno. Passaram-se alguns dias, até que recebi a resposta: "O senhor Mindlin receberá você e o fotógrafo".
Naquela tarde, chegamos àquela casa murada em uma tranquila rua do bairro do Brooklin. À porta, um afável senhor apertou minha mão e com um sorriso no rosto convidou-nos a entrar. Da porta à sala principal, algumas estantes já prenunciavam o universo que me aguardava. Enquanto o fotógrafo fazia imagens da casa, comecei a entrevista com José Mindlin. As histórias de como havia adquirido seus livros o entusiasmavam e, com extrema lucidez, detalhava cada um dos episódios: a aquisição da primeira edição de O Guarani era seu predileto. Contou que, após diversas tentativas frustradas de conseguir o raro exemplar, viajou para a França para comprar o livro, porém, na viagem de volta, deixou-o cair no banco do avião. Para sua sorte, a companhia aérea o avisou do ocorrido e devolveu o livro.
Gabriel Brito Bueno de Oliveira |
Mindlin caminha pelos jardins de sua casa |
Entre uma e outra pergunta, meus olhos eram magnetizados por aqueles livros. Ao notar meu deslumbramento frente àquele tesouro literário, Mindlin comentou: "Alguns jornalistas que vêm aqui e me entrevistam, fazem fotos e vão embora, mas sequer pegam nos livros. Percebi que você olhava para as estantes. Se você é amigo dos livros, também é meu amigo." Ele levantou do sofá e começou a me mostrar algumas das obras raras. Embora sua visão já estivesse um tanto debilitada, o que o impedia de ler, era preciso ao indicar a posição dos livros na estante. "Retire esse", pediu. Quando notei, era a primeira edição de Os Lusíadas. Com sua permissão, folheei o livro sem ainda me dar conta do que tinha em mãos.
Posteriormente, saímos da sala e, ao passar pelo jardim, chegamos à biblioteca propriamente dita. Pacientemente, Mindlin indicava onde estavam muitas de suas raridades, tais como edições autografadas por Machado de Assis e originais de Guimarães Rosa e Graciliano Ramos.
Após horas entre aqueles livros, retornamos à sala da casa. Enquanto me despedia e agradecia sua atenção, Mindlin convidou-me a voltar com mais tempo para conhecer mais calmamente seu acervo (talvez por cordialdiade, ou talvez interessado em inocular ainda mais "o vírus da leitura", como costumava dizer). Pena não ter voltado.
Buscava uma pauta sobre livros e encontrei naquele senhor a materialização do encanto pela leitura.
Buscava uma pauta sobre livros e encontrei naquele senhor a materialização do encanto pela leitura.
leia abaixo a reportagem publicada na edição 129 (outubro de 2008), da revista CULT, sobre a biblioteca de José Mindlin
Generosidade cultural
Dono da maior biblioteca particular do país, José Mindlin doa 45 mil volumes à USP
Wilker Sousa
Brooklin, São Paulo. Ao final do jardim da casa, uma robusta porta de ferro é aberta. Nas estantes que circundam toda a sala, preciosidades da literatura brasileira. Entre "Machados" e "Bandeiras", o mais raro dos volumes: a primeira edição de O Guarani, de 1857. A obra-prima de José de Alencar foi adquirida a duras penas. Nos anos 1960, um leiloeiro grego deseja vender o livro por mil dólares. José Mindlin faz a encomenda a livreiros londrinos, mas não consegue adquiri-lo. Somente em 1977, encontra a obra em um sebo parisiense. Arremata a relíquia por um preço alto, o qual prefere não mencionar. De volta ao Brasil, chega a sua casa no Brooklin e, ao comunicar a oferta a Guita, sua esposa, percebe que perdeu a obra. Três dias depois, a Air France entra em contato e comunica ter encontrado o livro no banco de uma aeronave. A longa e penosa saga para obter o livro fez da obra a mais rara entre as dezenas de milhares da biblioteca.
Dividem as estantes com O Guarani as primeiras edições de Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antonio de Almeida, Paulicéia desvairada, de Mario de Andrade e Marília de Dirceu, de Tomás Antonio Gonzaga. Uma pequena escada leva ao subsolo onde estão outros milhares de volumes. Entre eles, há uma estante especial, aquela dedicada aos originais. Boa parte da obra roseana ali se encontra em seu formato embrionário, com anotações e rabiscos do autor, em meio aos textos batidos à maquina. Sagarana, Corpo de baile e a obra-prima Grande sertão: Veredas são exibidos com orgulho pelo bibliófilo. O último foi adquirido em 1956, nos arquivos da editora José Olympio, mesmo local onde encontrou os originais de Vidas secas, de Graciliano Ramos. Na página inicial, um raro feito da criação literária: o título "O mundo coberto de pennas" é preterido por Graciliano e dá lugar à versão definitiva: "Vidas seccas".
Gabriel Brito Bueno de Oliveira |
originais de Grande Sertão: Veredas |
Esses tesouros da cultura nacional são uma amostra dos 45 mil volumes que serão doados por Mindlin à Universidade de São Paulo. A Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin já está em fase de construção atrás do prédio da reitoria da Universidade. São 20 mil metros quadrados de área, com previsão de conclusão para o final de 2009. Caso a obra não esteja pronta dentro do prazo, a doação pode ser revogada. O acervo é composto por obras de literatura brasileira e portuguesa, documentos históricos, mapas e manuscritos raros, todos ligados à cultura brasileira, entre eles, a coletânea de viagens de Fracanzano da Montalbodo, de 1507, a qual faz alusão à viagem de Cabral. A doação deve-se ao forte laço entre Mindlin e a universidade. Ali se formaram ele, sua esposa e filhos, todos "uspianos".
Loucura mansa
O discurso sobre a história universal de Jacques Bossuet, obra de 1740, foi a primeira raridade adquirida pelo bibliófilo aos 13 anos de idade. Hoje, passados 81 anos e após 90 mil volumes adquiridos, a biblioteca de José Mindlin tornou-se a mais importante entre as particulares do país. A mais antiga edição é dos Sonetos de Petrarca, versão ilustrada, de 1488. O poeta italiano seria uma das influências do português Luis de Camões, cuja epopéia, Os Lusíadas, também possui lugar seleto na biblioteca, em sua primeira edição, de 1572.
Os livros estão presentes desde a infância na vida do paulista de 94 anos. Filho de judeus russos, Mindlin tem, entre as suas mais remotas lembranças, a biblioteca de seu pai. Posteriormente, no curso de direito da faculdade do Largo São Francisco, conhece Guita, com quem viveria um casamento de 68 anos. Nos anos 1950, torna-se empresário à frente da Metal Leve. Da empresa viria grande parte da renda destinada à compra dos livros, sua grande paixão. Dos pistões que a empresa fabricava, Mindlin pouco conhece; tanto que, em tom de brincadeira, pediu aos filhos que estampassem em seu epitáfilo: "José Mindlin. Fabricou pistões a maior parte da vida sem saber o que era".
Machado de Assis e Guimarães Rosa são os escritores brasileiros que mais admira. Do primeiro, possui uma edição de Phalenas, com dedicatória do autor. Com Guimarães Rosa cultuou longa amizade. Em sua biblioteca, há prateleiras dedicadas ao ilustre mineiro de Cordisburgo. Nelas, originais e versões com comentários e anotações de Rosa.Há quem rotule de loucura dedicar oito décadas e muito dinheiro aos livros. Mindlin, com bom humor, concorda: "Eu costumo chamar de loucura mansa".
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