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sábado, 2 de janeiro de 2010

Na Venezuela, nem mesmo a morte é garantia de paz


The New York Times
Simon Romero
Em Caracas (Venezuela)
Primaveras fazem sombra nos caminhos do Cementerio General del Sur, onde os mausoléus de estadistas e estrelas de cinema permanecem ao lado das sepulturas de aristocratas e milhares de pessoas comuns. Leões esculpidos observam do alto de sepulcros. Elegância, e não a anarquia, já definiu este local de descanso.

Isso não ocorre mais.

Hoje, criptas de temidos governantes militares foram saqueadas. Caixões, abertos com pés-de-cabra, ficam largados sob as árvores. Barras e portões com cadeados cercam os túmulos de algumas famílias, como se isso pudesse protegê-los de uma perturbadora realidade: em Caracas, nem mesmo a cidade dos mortos está segura.

Acompanhando os crescentes níveis de assassinatos e sequestros da Venezuela, os cemitérios são o cenário para uma nova onda de crimes. Ladrões de sepulturas as estão saqueando em busca de ossos humanos, suprindo a demanda de alguns praticantes de uma religião cubana de rápido crescimento chamada Palo - que usa ossos em suas cerimônias.
  • Meredith Kohut/The New York Times

    Túmulos foram vandalizados no Cementerio General del Sur, em Caracas (Venezuela)


Os críticos afirmam que a situação nos cemitérios reflete um colapso social, onde a impunidade está disseminada. Os crimes violentos e a corrupção policial no país estão impregnados, mesmo com o presidente Hugo Chávez pedindo pela criação de um "novo homem" - como parte de sua revolução inspirada no socialismo.

"O cemitério se tornou um emblema icônico de nossa tragédia nacional", disse Fernando Coronil, respeitado antropólogo venezuelano. "Em nossa luta diária para manter uma ordem civil contra transgressões múltiplas na propriedade e na decência, agora nem mesmo os mortos podem descansar em paz".

Em nenhum lugar o tráfico de ossos prospera mais que no Cementerio del Sur, como é conhecida a necrópole fundada em 1876 pelo déspota francófilo Antonio Guzmán Blanco. A grandeza de suas tumbas evoca, para alguns, Père Lachaise, em Paris.

"Ainda não consigo entender como isso aconteceu", disse Jesús Blanco, de 42 anos, treinador de cavalos que se desesperou, em fevereiro, quando visitou o túmulo de seu pai, Melecio, e descobriu o caixão aberto e com o esqueleto desaparecido.

Muitas famílias desistiram totalmente de visitar o cemitério. Durante o dia, criminosos bêbados passeiam por seus corredores a pé ou em motos, algumas vezes atacando os visitantes. Os terríveis crimes do cemitério, como um assassinato com suicídio em novembro, enchem as páginas policiais dos jornais.

Os carrancudos policiais que rondam a entrada do cemitério pouco fazem para acabar com a desordem, segundo Armando Regalado, diretor do Aprofamiliares, um grupo de cidadãos formado no ano passado para protestar contra o comércio de ossos humanos.

"A polícia está lá para insultar e intimidar, além de ignorar os abusos que veem diariamente", disse Regalado, cujo filho, morto a tiros três anos atrás, aos 21 anos, está enterrado em uma parte do cemitério chamada El Artista. Dezesseis esqueletos foram reportados como roubados de seus caixões somente neste ano.

A polícia entrou em alerta recentemente, quando jornalistas apareceram no portão do cemitério estatal com uma autorização para realizar entrevistas. Eles disseram que a autorização não tinha valor, e exigiram uma propina de mil bolívares, cerca de 464 dólares, para permitir a continuidade do trabalho. Diante da recusa dos jornalistas, reagiram dando de ombros.

José Francisco Ceballo, ex-gerente do Cementerio del Sur, causou tumulto em maio, quando disse que o cemitério estava "um caos". Naquele mês, segundo ele, inspetores descobriram pelo menos 475 caixões saqueados.

Pouco parece ter mudado desde então, apesar das promessas de limpar o cemitério, disseram os padres católicos que supervisionam os funerais e parentes que visitam. Alguns motoristas de táxi se recusam a entrar no terreno, ou só o fazem com uma escolta de guardas armados.

Carolina Sanoja, sucessora de Ceballo como diretora do cemitério, não quis dar entrevistas.

Os praticantes locais do Palo afirmam que sua religião é mal-compreendida e demonizada devido aos relatos de caos no Cementerio del Sur.

Eles reconhecem a importância para sua religião dos ossos humanos, que eles colocam em um caldeirão chamado de "nganga", junto com terra e gravetos, e oferecem a um espírito, ou "mpungu". Mas os paleros, como são conhecidos os seguidores da religião, protegem muitas de suas práticas de pessoas de fora.

"Temos de ter cuidado, já que é fácil culpar os paleros por todos os problemas da Venezuela", afirmou Samuel Sambrano, 34 anos, líder palero.

"Será que todos os católicos devem ser culpados por alguns padres ruins?", perguntou. "Hipocrisia e ódio estão em toda parte, especialmente entre aqueles sem entendimento e respeito por nossas crenças".

Zambrano, ecoando outros paleros, disse que as autoridades que administram o Cementerio del Sur eram responsáveis pela falta de controle que possibilitava um mercado negro de ossos humanos. Crânios chegam a custar US$ 2 mil, e um fêmur cerca de US$450, segundo a mídia local.

Algumas pessoas que tiveram ossos de parentes roubados culpam o governo Chávez, por ter trazido milhares de consultores políticos cubanos ao país nesta década. Porém, especialistas em religião dizem que a migração do Palo à Venezuela, e sua evolução local com fortes influências venezuelanas, antecede a ascensão de Chávez ao poder.

"O Palo provavelmente chegou à Venezuela com a primeira onda de cubanos fugitivos da revolução, no início da década de 1960, e se revigorou com o fluxo mais recente", disse Andrew Chesnut, especialista em religiões latino-americanas da Virginia Commonwealth University.

Na religião, os ossos representam os ancestrais e espíritos dos mortos. Por conter a energia espiritual dos mortos, quanto mais poderosa fosse a pessoa em vida, mais fortes seriam os ossos, disse Chesnut.

Disso se originou a atração por restos mortais encontrados em mausoléus ornamentados. Saqueadores na tumba de Joaquín Crespo, general que governou a Venezuela na década de 1890, arrombaram não somente seu interior, mas também os túmulos de seus descendentes, no lado de fora.

A cena de destruição se repete em todo o cemitério, que é ligado a favelas através de estradas de terra.

Milvia Santos ainda treme quando descreve como se sentiu no dia das mães, quando foi visitar o tumulo de sua mãe - apenas para encontrar o caixão quebrado e seu crânio desaparecido.

"Naquele momento, me senti como se quisesse deixar este mundo", disse Santos, de 40 anos, funcionária pública. "Então, percebi o que poderia acontecer ao meu corpo se eu morresse", continuou, "e me sentei para chorar".









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