PARA SEAN GOLDMAN, BRASILEIRO, UM MENINO DE 9 ANOS, UM INOCENTE , NENHUMA RESPOSTA, MAS PARA CESARE ITALIANO CANALHA :
William Maia - 01/01/2010 - 11h00
Se fosse o caso de recorrer à retórica preferida do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para definir este caso, seria possível dizer: nunca antes na história deste país um processo de extradição mobilizou tanto a comunidade jurídica, ou provocou tantas reações no meio político e diplomático, quanto o pedido de repatriação do ex-militante comunista Cesare Battisti à Itália, onde foi condenado à prisão perpétua pela suposta participação em quatro homicídios no fim da década de 1970—os chamados “Anos de chumbo”.
A série Retrospectiva Jurídica 2009 da revistaÚltima Instância apresenta aos leitores os debates e fatos mais marcantes do ano no Judiciário brasileiro. O Supremo Tribunal Federal e suas polêmicas decisões, a crise no sistema carcerário do país, os diversos escândalos de corrupção no Legislativo e a virtualização de processos serão alguns dos temas em análise.
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Quando o ministro da Justiça, Tarso Genro, concedeu o statusde refugiado político a Battisti, ainda no começo de janeiro, a libertação do hoje escritor e ex-intregrante dos PAC (Proletários Armados pelo Comunismo), preso no Brasil desde 2007, parecia certa. O Estatuto do Refugiado (Lei 9.474/97) determina expressamente o fim do processo de extradição assim que o refúgio é concedido pelo governo brasileiro.
Não foi o que aconteceu, no entanto.
Apesar dos reiterados pedidos da defesa de Battisti, o presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Gilmar Mendes, considerou que a decisão administrativa do ministro da Justiça não era suficiente para afastar a jurisdição do Supremo em um processo cuja competência lhe é assegurada pela Constituição e determinou o prosseguimento da ação, que ficou sob a relatoria do ministro Cezar Peluso.
Na época, Mendes qualificou a decisão de Tarso como um “ato isolado”, em referência ao fato de que o ministro atendeu a uma apelação de Battisti e reformou a decisão do Conare (Comitê Nacional para os Refugiados), órgão colegiado que lhe havia negado o refúgio, por considerar que os crimes pelos quais Battisti é acusado não têm natureza política.
Para manter o italiano no Brasil, Tarso fez uma longa digressão sobre o conturbado período histórico em que os crimes foram cometidos, para demonstrar que a Itália recorreu a leis de exceção para combater os grupos extremistas que tentaram desestabilizar o governo no fim dos anos 1970. Segundo o ministro, devido ao ambiente político do país, Battisti não teve direito a um julgamento justo e por isso teria “fundado temor de perseguição” se voltasse à Itália, em virtude de seu posicionamento político.
Battisti sempre negou os crimes. Alega que foi vítima de uma armação de um ex-colega de grupo, Pietro Mutti, que sob delação premiada o acusou de ser o responsável pelas mortes, quase dez anos depois da ocorrência dos crimes. Também diz que foi julgado à revelia e que não teve direito à ampla defesa.
A afirmação de Tarso provocoua ira de autoridades italianas e abalou as relações entre os dois países. Críticas vieram de todos os lados. Um deputado de um partido conservador chegou a dizer que o Brasil não era famoso por seus juristas, mas por suas dançarinas. O presidente da Itália, Giorgio Napolitano, enviou carta a Lula reclamando do refúgio e por alguns dias convocou de volta o embaixador italiano no Brasil, um ato considerado grave no meio diplomático. Cogitou-se até mesmo cancelar um jogo amistoso entre as seleções de futebol dos dois países.
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A queda do refúgio
Após meses de recursos de ambas as partes, o Supremo enfim começou o julgamento do caso no início de setembro. Em um votoextenso e contundente, o relator Cezar Peluso classificou a decisão de Tarso Genro de conceder o refúgio como “ilegal e absolutamente nula”. Segundo Peluso, o ministro da Justiça distorceu o cenário histórico italiano do fim dos anos 1970 em um “exercício de pura especulação”.
Peluso destacou ainda que a Itália é reconhecida, na verdade, como um exemplo de combate a movimentos subversivos e terroristas sem a quebra da ordem constitucional e do respeito aos direitos humanos. Ele não poupou críticas ao fato de Tarso ter feito um juízo de valor sobre o caráter político dos crimes —o que impede a concessão da extradição.
Afastado o refúgio foi aberto o espaço para a análise do mérito do pedido de extradição. O relator considerou que estavam presentes os requisitos legais para o deferimento do pedido e rejeitou a hipótese de crime político. “Um dos crimes foi num açougue, outro contra um joalheiro. Como se falar em crime político?”, questionou. Seu voto foi seguido pelos ministros Ricardo Lewandowski, Carlos Ayres Britto, Ellen Gracie e Gilmar Mendes.
Outra corrente, no entanto, que incluiu os ministros Joaquim Barbosa, Carmen Lúcia, Eros Grau e Marco Aurélio Mello —que pediu vistas dos autos— considerou que o Supremo não poderia anular de ofício —sem provocação— um ato de um ministro de Estado, o que implicaria na extinção do processo de extradição sem julgamento de mérito.
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A palavra final
O deferimentoda extradição, entretanto, não encerrou a polêmica em torno do processo, já que a Corte aproveitou o caso para discutir uma questão nunca antes enfrentada: a quem cabe a palavra final nos processos de extradição? Ao Supremo ou ao presidente da República?
Após o voto de desempate do ministro Gilmar Mendes, a Corte passou a deliberar se a decisão do próprio STF nos pedidos de extradição deve ser obrigatoriamente seguida pelo presidente da República, ou se cabe ao chefe de Estado a palavra final sobre esse tipo de processo.
Depois de uma longa e tensa discussão, o Tribunal se dividiu: o relator, Cezar Peluso, Ellen Gracie, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes argumentaram que o presidente não pode descumprir a decisão do Supremo, baseada no tratado de extradição entre os dois países e no Estatuto do Estrangeiro.
Peluso foi duro ao comentar a possibilidade de Lula se negar a extraditar Battisti. Ele disse que isso transformaria os julgamentos de extradição pelo STF em uma “brincadeira infantil” e "pura perda de tempo”. “Por que razão o Brasil pleiteia uma vaga no Conselho de Segurança da ONU se descumpre tratados internacionais?”, ironizou.
Porém, essa corrente foi vencida pelo entendimento dos ministros Marco Aurélio Mello, Carmen Lúcia, Joaquim Barbosa, Eros Grau e Carlos Ayres Britto. Eles defenderam que, por ser o responsável pela política externa brasileira, é o presidente da República quem dá a última palavra sobre a conveniência ou não da entrega de um estrangeiro procurado em outro país.
Antes da proclamação do resultado do julgamento, uma nova discussão foi iniciada em torno do voto do ministro Eros Grau, porque Mendes entendeu que ele havia votado no sentido contrário. Irritado, Eros disse que aderia à divergência iniciada pela ministra Carmen Lúcia, que conferia poder discricionário ao presidente da República para ignorar a decisão do Supremo.
Semanas depois, porém, o ministro teve que explicar novamente o seu voto e o resultado do julgamento foi alterado. Eros considera que o Supremo apenas autoriza a extradição e a definição cabe ao chefe de Estado, mas a decisão de não entregar o extraditando deve ser feita nos termos do Tratado de Extradição entre os dois países.
Com isso, se quiser manter Battisti no país, Lula terá que justificar de acordo com o tratado os motivos de sua decisão, o que abre espaço para um futuro questionamento no próprio STF.
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