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sábado, 27 de março de 2010

Nardoni


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A justiça foi feita

Três dias antes de a morte de Isabella completar dois anos, seu pai, Alexandre Nardoni, e sua madrasta, Anna Carolina Jatobá, são condenados pela Justiça como autores do homicídio. Pela celeridade, rigor técnico e sentenças rigorosas, o julgamento pode ser considerado um divisor de águas na Justiça brasileira


Com reportagem de Laura Diniz, Kalleo Coura, Renata Betti e Gabriele Jimenez

Fotos Amiccuci Gallo; Oscar Cabral; Hipolito Pereira/AE; Agliberto Lima/AE; Paulo Viale; Marcio Fernandes/AE;
ISABELLA
Morta aos 5 anos de idade por aqueles que deveriam protegê-la

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Isabella Nardoni, finalmente, poderá descansar em paz. A condenação exemplar de Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá pelo homicídio triplamente qualificado da menina fecha um ciclo de dor para os que a amavam e reacende um horror generalizado ao comprovar que aquilo que parecia cruel demais para ser verdade de fato ocorreu. Uma criança de 5 anos de idade foi asfixiada por sua madrasta e lançada viva da janela por seu pai – que, ao vê-la caída no solo, em lugar de socorrê-la, ocupou-se da tentativa de salvar a própria pele e a da mulher, forjando urgência em localizar "o monstro que havia feito aquilo". Agora, pode-se afirmar com certeza que os monstros estão identificados. E a Justiça desceu sobre eles com mão de ferro. Não se sabe o placar exato do júri porque, ao chegar ao quarto voto favorável à condenação, o juiz parou de contá-los – a maioria simples já estava estabelecida. Nardoni foi condenado a 31 anos, 1 mês e 10 dias de prisão em regime fechado pelo crime de homicídio, com os seguintes qualificadores: uso de meio cruel, impossibilidade de defesa da vítima e prática de crime destinado a ocultar crime anterior. Além disso, aumentaram a pena de Nardoni os seguintes agravantes: o fato de a vítima ter menos de 14 anos e de ele ser seu pai. Anna Carolina foi condenada a 26 anos e 8 meses de detenção, também em regime fechado, pelo mesmo crime, com os mesmos qualificadores e agravantes (exceto, obviamente, o da paternidade da vítima). Foram acrescentados 8 meses de prisão em regime semiaberto para cada réu por fraude processual: a tentativa do casal de "limpar" a cena do crime. Ao ouvir a sentença proferida pelo juiz Maurício Fossen, Anna Carolina Jatobá olhou para a família com ar compungido e acenou com um adeus. O casal, que recebeu a sentença algemado, não poderá recorrer dela em liberdade.

A condenação do casal – sem a confissão dos réus nem o depoimento de testemunhas oculares – consagrou a máxima do jurista italiano Enrico Ferri, que afirmou ser a lógica "a rainha das provas". Nesse caso, o exercício da lógica contou com um elemento fundamental: o exímio trabalho da perícia técnica paulista. Por meio da análise de materiais genéticos, uso de reagentes químicos e estudos de cronometragem, os peritos costuraram provas que, de outra forma, não se conectariam diretamente e, assim, deram respostas a lacunas que poderiam se transformar em perguntas jamais respondidas. Foi o resultado de um trabalho conjunto entre a perícia e a polícia, por exemplo, que produziu uma das argumentações mais robustas apresentadas pelo promotor Francisco Cembranelli aos jurados: a cronologia dos fatos que se deram imediatamente após a morte de Isabella. Por meio de um vasto cruzamento de informações, os investigadores responsáveis pelo caso puderam precisar o momento exato em que Isabella foi atirada pela janela – às 23h48. O promotor Cembranelli demonstrou de forma cabal que, nesse horário, tanto Alexandre Nardoni quanto Anna Carolina Jatobá estavam, sim, dentro do apartamento (veja o quadro). O fato de não ter sido constatada a presença de nenhum outro adulto na cena do crime levou à inevitável conclusão de que só poderiam ser eles os autores do homicídio – uma questão de lógica. Também pesaram contra Nardoni os laudos da perícia técnica, em especial o que analisou a camiseta que ele usava na noite do assassinato. Os peritos observaram que a peça trazia, na altura dos ombros, marcas de sujeira em forma de losango – e que elas seguiam o exato padrão da rede de proteção por onde Isabella foi jogada. Testes mostraram que as marcas só poderiam ficar impressas dessa forma no tecido caso a pessoa que a estivesse vestindo enfiasse os dois braços pelo buraco da rede e sustentasse, com as mãos, o equivalente a 25 quilos – precisamente o peso de Isabella. Na condição de testemunha, a perita Rosângela Monteiro, responsável pela análise da camiseta, foi assertiva ao relatar a conclusão a que chegou com sua equipe. "O réu defenestrou a vítima. Foi ele", afirmou.

Às provas técnicas se somou uma atuação impecável da parte de Cembranelli, que demonstrou domínio absoluto de todos os detalhes do caso do começo ao fim do julgamento. O apogeu de seu desempenho se deu na quinta-feira, quando o promotor interrogou os réus, deixando-os por várias vezes sem respostas razoáveis. O primeiro a responder ao promotor foi Nardoni. Cembranelli o arguiu sobre a razão pela qual não telefonou para o resgate assim que chegou ao gramado do prédio, onde a filha estava caída.

– Por que o senhor não a socorreu? – perguntou o promotor.

– Eu estava vendo se ela estava viva – respondeu o pai.

– Ela estava viva. Por que o senhor não a socorreu?

– Eu estava em choque, não sei dizer.

– Por que o senhor não a socorreu? – insistiu Cembranelli.

– Quando caí em si (sic), seu Lúcio (o vizinho) estava dizendo para não mexer nela.

As respostas de Nardoni estarreceram promotor e jurados: como um pai que acaba de ver a filha despencar do alto de um prédio deixa de tomar providências por determinação do vizinho? Nardoni também teve dificuldade para explicar por que não dirigiu a palavra nem sequer uma vez à mãe de Isabella, Ana Carolina Oliveira, depois da morte da menina – nem no velório, nem no enterro.

– Ela lhe entregou a filha viva e a recebeu morta. Por que não falou com ela? – quis saber o promotor.

– Era uma situação embaraçosa – limitou-se a responder o pai da menina morta.

Em seguida, foi a vez de Anna Carolina Jatobá enfrentar a acusação. Em seu depoimento, ficou claro que ela reproduzia, com detalhes minuciosos, respostas que eram de interesse da defesa, mas dizia não se lembrar de questões que pudessem trazer embaraços para ela e Nardoni. Anna Carolina Jatobá chegou a dizer que, no dia do crime, só havia lavado roupas pretas, mas disse não se recordar do valor da pensão alimentícia paga pelo marido a Isabella (325 reais por mês). Houve ainda um desfile de contradições: Nardoni havia afirmado que o casal tinha apenas "brigas normais", mas a mulher declarou que eles "quebravam o pau" constantemente.

Os jurados acompanharam os interrogatórios com interesse. Em vários momentos, elaboraram perguntas – repassadas por escrito ao juiz – para ser feitas aos réus. Ao final, responderam às doze questões formuladas pelo juiz Fossen. As relativas a Nardoni foram: 1) Existiu a esganadura que contribuiu para a morte de Isabella Nardoni? 2) Isabella foi jogada da janela do 6º andar do Edifício London, provocando sua morte? 3) Alexandre omitiu-se quando deveria, por dever legal, proteger a filha? 4) Foi Alexandre quem jogou Isabella pela janela? 5) O jurado absolve o réu? 6) Existem qualificadores para o crime, no caso, o meio cruel, uso de recurso que dificultou a defesa da vítima, e com o intuito de assegurar impunidade de outro crime? 7) Houve alteração da cena do crime para enganar as autoridades?

Em relação a Anna Carolina Jatobá, além das duas primeiras questões e da última, foram feitas as seguintes: 3) Anna Carolina Jatobá colaborou com a morte de Isabella ao aderir a toda a ação? 4) O jurado absolve a ré?

Ao contrário do juiz, obrigatoriamente técnico, os jurados do tribunal do júri – "juízes leigos" – não são obrigados a desprezar a emoção na hora de decidir nem a fundamentar suas posições. Para chegarem ao seu veredicto, o único compromisso deve ser com a própria consciência. No Brasil, o tribunal do júri é a instância responsável pelo julgamento dos crimes dolosos contra a vida: homicídio, infanticídio, indução ou auxílio ao suicídio e prática de aborto, mais as tentativas frustradas de cometer os mesmos delitos. A ideia por trás desse critério é que, ao contrário dos crimes contra o patrimônio, por exemplo, os que atentam contra a vida podem ser mais facilmente cometidos por pessoas que não são bandidos "profissionais". Dessa forma, entende o direito, é justo que sua conduta seja avaliada por iguais – cidadãos que, por viverem sob as mesmas regras e códigos sociais do réu, conseguiriam entender melhor suas motivações, paixões e emoções. Tarefa que não seria desempenhada a contento por um magistrado, forçosamente pautado pela letra fria da lei. Se oferece vantagens incontestáveis, a dinâmica do tribunal do júri tem seus riscos também. Como o de resultar na absolvição, ou quase isso, até mesmo de réus confessos. O julgamento de Doca Street, de 1979, três anos após o crime, mostrou como o resultado de um júri pode ser determinado não pela culpa ou inocência do réu, mas pela moral vigente no período – à qual, nesse caso, se aliou uma defesa ardorosa. Assassino confesso da socialite Ângela Diniz, com quem vivia, o playboy Doca Street foi defendido pelo criminalista Evandro Lins e Silva, que anunciava (não pela primeira vez) ser aquele seu último júri. Sem quase se referir aos autos, o criminalista descreveu seu cliente como um "mancebo bonito e trabalhador", cuja honra teria sido pisoteada pela "Vênus lasciva" e "devassa" (Ângela Diniz), que, entre outras iniquidades, teria tentado acomodar na cama do casal uma beldade do sexo feminino que ela havia conhecido na praia. A apaixonada exposição de Lins e Silva contaminou não apenas os jurados, mas até mesmo um dos assistentes da acusação, que chegou a pespegar um beijo de admiração no criminalista. Ao final, Doca Street foi condenado a uma pena irrisória: dois anos em regime aberto. Mas em 1981, no julgamento do recurso impetrado pela acusação, já sem Lins e Silva, recebeu condenação bem maior, de quinze anos. Em outro caso, de menor repercussão, um homem que confessou ter matado a mulher em Itapacerica da Serra, em São Paulo, acabou absolvido depois que o criminalista Tales Castelo Branco, seu defensor, pediu que os onze filhos do réu se postassem diante da porta do fórum. Nas últimas palavras que dirigiu aos jurados, não mencionou culpa ou inocência. Disse apenas: "Ao decidir, senhores jurados, lembrem-se de que este homem tem onze filhos". Por unanimidade, o júri absolveu um réu confesso.

Claudio Gatti
HOMENAGEM
Na semana passada, o túmulo de Isabella foi visitado por dezenas de pessoas que jamais viram a menina, mas, mesmo assim, choraram a sua morte


Alexandre Fogassa


Quando o povo decide

Tribunais de júri que entraram para a história criminal brasileira

Doca Street
Em 1976, Doca Street confessou ter matado com quatro tiros no rosto a socialite Ângela Diniz, com quem vivia. No julgamento, o advogado Evandro Lins e Silva alegou defesa da honra – a vítima apresentaria comportamento "devasso" e teria tentado forçar o réu a "admitir outros parceiros" na cama do casal. Doca Street foi condenado a dois anos de prisão em regime aberto, o que foi considerado uma vitória da defesa. A memorável performance de Lins e Silva mesmerizou jurados e os milhões de ouvintes que acompanharam a sua transmissão pelo rádio. Num segundo julgamento, sem Lins e Silva, Doca Street foi condenado a quinze anos de prisão (cumpriu apenas cinco)

Dorinha Duval
A atriz admitiu ter matado o cineasta Paulo Sérgio Alcântara, seu marido, em 1980, com três tiros. Segundo a defesa, o crime ocorreu depois de Alcântara, dezesseis anos mais novo que Dorinha, ter dito não se sentir mais atraído por "uma velha" e, em seguida, tê-la agredido. No primeiro júri, a atriz foi condenada, por 7 votos a zero, a um ano e meio de prisão. No segundo e definitivo, a condenação foi de seis anos de prisão em regime semiaberto. Ambas as decisões foram consideradas uma vitória da defesa, já que Dorinha era ré confessa

Guilherme de Pádua e Paula Thomaz
Em 1992, a atriz Daniella Perez foi morta com dezesseis facadas, aos 22 anos de idade. Os acusados eram o ator Guilherme de Pádua, com quem ela contracenava na ocasião na novela De Corpo e Alma, e Paula Thomaz, mulher de Pádua. Paula teria tramado o crime por ciúme de Daniella. Ambos foram condenados, a dezenove e dezoito anos de prisão. As decisões foram consideradas uma vitória da promotoria.


Francisco de Assis Pereira
Conhecido como "Maníaco do Parque", o motoboy Francisco de Assis Pereira matou nove mulheres no Parque do Estado, em 1998. Num primeiro julgamento, foi condenado a 121 anos de prisão. Mais tarde, foi condenado a mais dezesseis anos pelo assassinato da comerciária Rosa Alves Neta. Nesse júri, por 5 votos a 2, os jurados consideraram que ele deveria ser julgado normalmente, já que tinha plena consciência de seus atos. Ele também foi condenado a outros 145 anos pelo assassinato de mais seis mulheres. Foi um exemplo de derrota esmagadora da defesa


Suzane Von Richthofen
O júri que julgou o caso de Suzane Von Richthofen, Daniel e Cristian Cravinhos, em 2002, considerou que os três foram culpados pelas mortes de Manfred e Marísia von Richthofen, pais de Suzane. Os três eram réus confessos e afirmaram ter planejado o crime porque os pais eram contra o namoro de Suzane e Daniel. Ambos foram condenados a 39 anos de reclusão. Cristian pegou 38. Os três continuam presos na cidade de Tremembé


Antonio Pimenta Neves
Em 2000, o jornalista Antônio Pimenta Neves, então diretor de redação do jornal O Estado de S.Paulo, matou a jornalista Sandra Gomide com dois disparos pelas costas. Pimenta não se conformava com o fato de que ela , 31 anos mais jovem do que ele, havia rompido o namoro entre os dois. O jornalista confessou o crime à polícia. Julgado seis anos depois, foi considerado culpado pelo homicídio, por 7 votos a zero, e condenado a dezenove anos. Pimenta recorre do resultado em liberdade









Culpados! -

Anna Carolina Jatobá e Alexandre Nardoni ouviram a sentença de condenação à 00h29 do sábado 27. Por que eles mataram Isabella?

Antonio Carlos Prado

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A repórter Rachel Costa, que esteve presente no Fórum de Santana durante os cinco dias do julgamento do casal Nardoni, comenta o caso

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A repórter Rachel Costa fala sobre as dificuldades enfrentadas pela imprensa na cobertura do julgamento do casal Nardoni

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Aos 29 minutos da madrugada do sábado 27, o juiz Maurício Fossen, que presidiu o júri do casal Alexandre Nardoni e Anna Carolina Trota Jatobá, anunciou a decisão dos sete jurados que compuseram o conselho de sentença ao longo dos cinco dias de julgamento. Eles foram considerados “culpados” pelo brutal assassinato em São Paulo da garotinha Isabella, 5 anos, na noite de 29 de março de 2008 – ela era filha de Alexandre e enteada de Anna Carolina. Com voz firme e ritmada, olhando de frente para o casal, o juiz Fossen quantificou a pena: Alexandre foi condenado a 31 anos, um mês e dez dias de prisão e Anna Carolina, a 26 anos e oito meses. Eles terão ainda de cumprir oito meses de detenção, aí em regime semi-aberto, por fraude processual – ou seja, os jurados entenderam que, além de matar Isabella, o casal procurou dificultar as investigações alterando a cena desse crime que, por sua crueldade, mobilizou a opinião pública como jamais se vira.

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COMEMORAÇÃO
Na madrugada de sábado, em frente ao Fórum, multidão festeja a condenação do casal

Um silêncio sepulcral tomou conta da sala enquanto Fossen lia a sentença. Alexandre e Anna estavam algemados e, em alguns momentos, ele mordeu os lábios e levou as mãos aos olhos e nariz. Ela permaneceu impassível. Só choraram à 0h40 quando a sentença foi concluída, selando os seus destinos. Na primeira fileira de poltronas do plenário, os pais de Alexandre, Antonio e Aparecida Nardoni, mantiveram os olhos baixos enquanto ouviam o juiz. Atrás deles permaneceu o pai de Anna, Alexandre Jatobá. Na quarta fileira estavam os avós maternos de Isabella, José e Rosa Oliveira, ao lado da novelista Gloria Perez. Logo após a condenação, um policial advertiu a família para que contivesse a sua vontade de comemorar: “Aguenta mais um pouco”. A mãe, Ana Carolina Oliveira, que permaneceu em casa por causa de uma crise de stress aguda, soube do veredicto por meio de uma mensagem de celular enviada pela advogada Cristina Christo, assistente da acusação.

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VIGÍLIA
Atos para pedir Justiça reuniram pessoas de todas as idades

Na rua, diante do Fórum de Santana na zona norte de São Paulo, cerca de 300 pessoas comemoraram a decisão da Justiça com rojões e ao som do “Tema da Vitória”, música consagrada nas conquistas de Ayrton Senna. Quando as viaturas que transportavam o casal saíram do Fórum em direção à cidade paulista de Tremembé, onde eles cumprirão suas penas, a multidão investiu contra os carros aos gritos de “condenados, condenados”. Em seguida, passou a clamar por “Cembranelli, Cembranelli”, homenageando assim o promotor Francisco Cembranelli, que acusou o casal. “O júri não é uma ciência exata, mas o resultado mostrou que eu estava certo”, disse ele. A Polícia Militar teve de recorrer ao gás pimenta para conter os manifestantes.

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A condenação (contra a qual o advogado Roberto Podval já recorreu) atende à expectativa da maioria da população brasileira. Ainda assim, o caso Isabella deixa acesa uma inquietação. Alexandre e Anna personificam o espanto, a revolta, a perplexidade, o ódio e o desejo de fazer justiça com as próprias mãos de uma sociedade que há dois anos se põe a perguntar: como pode um pai, seja ele quem for, matar a própria filha? Tal perplexidade é um fato, mas é fato também que as pessoas e as circunstâncias não se dividem cartesianamente, segundo unanimidade da literatura psicológica e psiquiátrica, em “santas ou diabas, eternamente certas ou eternamente erradas” – ou, valendo-se aqui de uma informalidade bem brasileira, não se separam em “sangue bom e sangue ruim”. Alexandre e Anna Carolina não se submeteram a nenhuma avaliação psiquiátrica após a morte de Isabella (passaram apenas pelo exame toxicológico no Instituto Médico Legal de São Paulo), até porque os advogados de defesa jamais seguiram a linha de que os réus poderiam ser portadores de distúrbios mentais (doença) ou transtornos de personalidade (característica mais comportamental). A rigor, quando a população fica justificadamente indignada como se viu ao longo da semana, pontualmente na porta do Fórum de Santana, e de forma mais pulverizada, durante os últimos 24 meses em todo o Brasil, o que ela busca é uma explicação e uma motivação para o crime. “Eu até preferiria que eles fossem inocentes porque ninguém quer imaginar que um pai possa matar a filha”, dizia na noite da sexta-feira 26, diante do Fórum, a trabalhadora autônoma Desirrée Espin. “Meu Deus, qual o motivo desse crime?”

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EMOÇÃO
Logo após a sentença, Ana Carolina, a mãe, aparece chorando; multidão protesta e ataca o carro dos condenados

Nada é mais revoltante, nada incomoda mais e, de acordo com especialistas, “deixa as pessoas mais inseguras” do que um crime bárbaro sem motivo. A ausência de razão, no entanto, é apenas aparente. Em casos como o dos algozes de Isabella, todos os motivos – ou a falta deles – têm de ser colhidos no campo da psicologia e da psiquiatria. “Tem de haver alguma loucura envolvida nesse episódio. Ninguém atira uma criança pela janela sem uma psicopatologia”, diz um dos mais conceituados psiquiatras forenses da América Latina, Guido Arturo Palomba. “Falando em tese, porque não examinei o casal, o homem e a mulher em questão podem ser portadores de déficit cognitivo (retardo na compreensão da realidade) e de disritmia cerebral que leva a um estreitamento de consciência, também conhecido como estado crepuscular.”

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Traduzindo as palavras do especialista, no “estado crepuscular” o indivíduo por ele acometido age de forma “robotizada” (as mulheres costumam dizer “parece que estou anestesiada” no chamado “crepúsculo do histerismo”) e nessas condições pode matar, apagando depois da memória o ato cometido ou lembrando dele apenas de modo fragmentado. Mas aí o estrago já está feito. Tal estado cai do céu? Não. É gerado por funcionamentos comprometidos de neurônios e neurotransmissores (impulsos elétricos e seus correspondentes químicos no cérebro). Hoje se sabe, de acordo com as mais modernas teorias dos EUA, Inglaterra, Finlândia e Canadá, que tais disfunções ainda estão presentes no “transtorno da personalidade antissocial” – também conhecido como “loucura sem delírio, “psicopatia” ou “epilepsia condutopática” (importante: não se está afirmando aqui que epilépticos são perigosos ou, necessariamente, eventuais ou potenciais agentes de violência).

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Assim, na linha de raciocínio de Palomba, Anna Carolina e Alexandre teriam tais transtornos. A epilepsia é a enfermidade que se conhece há mais tempo no universo da psiquiatria, remontando aos tempos da Grécia Antiga, e é a única que não mudou de nome ao longo da história da medicina. A palavra significa “aquilo que abate por cima”, porque os povos primitivos acreditavam que era “o demônio que se apoderava da cabeça das pessoas e elas se tornavam possuídas”. Atualmente, é indiscutível que a epilepsia está ligada às ondas elétricas do cérebro e, no caso de um “curto-circuito”, o disjuntor, digamos assim, pode cair: trata-se aí da forma mais conhecida dessa doença neurológica, na qual o indivíduo cai e se contorce. Há, no entanto, a epilepsia que se manifesta de forma comportamental, que leva a um profundo estreitamento da consciência (como se um véu descesse sobre os olhos), com perda da capacidade de crítica e julgamento. Ou seja: devido a problemas neurológicos, a pessoa pode cometer um ato extremo.

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DUELO
Podval(abaixo), da defesa, já recorreu da sentença e Cembranelli diz que resultado provou que ele estava certo

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Anna Carolina Jatobá e Alexandre Nardoni ouviram a sentença de condenação à 00h29 do sábado 27. Por que eles mataram Isabella?

Antonio Carlos Prado

“Da parte de Alexandre há uma certa frieza. Já Anna Carolina me parece instável e impulsiva. Isabella foi jogada pela janela como simulação de uma morte acidental e isso pode revelar traços psicopáticos. Mas discordo do diagnóstico de epilepsia condutopática”, diz o psiquiatra forense e professor da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre José Taborda. Atitudes anteriores de Alexandre podem ilustrar um quadro de frieza e impulsividade. Segundo seus próprios familiares, ele teria, em meio a discussões, deixado quase bobamente um de seus filhos cair, de seu colo, ao chão. Em outra ocasião, numa loja de departamentos, apanhou esse mesmo filho por um dos braços, descreveu um meio círculo com o corpo dele no ar e o atirou no carrinho de compras. Tudo explosão. Sempre de momento. Nada premeditado, mas mesmo assim apontando para aquilo que se caracteriza como “baixa tolerância à frustração” e “temperamento irritadiço”. “Às vezes o ser humano se perde. Nem sempre somos donos das nossas reações, embora sejamos sempre responsáveis por elas”, diz o professor de criminologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro Pedro Paulo Bicalho.

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A ciência abrange diversas teorias para uma mesma psicopatologia. Não fosse assim, ela estagnaria – ainda mais no complexo terreno da mente humana. Se os poetas alardeiam que “o coração é terra que ninguém conhece”, e Alexandre e Anna Carolina costumavam repetir essa máxima romântica em seus momentos de reconciliação após as infindáveis brigas em decorrência de um ciúme doentio, digamos que os cientistas poderiam pragmaticamente afirmar que “a cabeça é terra que não se cessa de conhecer”. Assim, novas teorias sobre psicopatia indicam que assassinos com esse transtorno de personalidade são criaturas que não conseguiram condicionar em seus cérebros a ansiedade. Em outras palavras: o psicopata, por exemplo, não tem medo da polícia, mas não porque não tema a punição. É, isso sim, porque ele não sente o desconforto da ansiedade que antecede a perspectiva da punição.

Esses indivíduos, porque não padecem com essa ansiedade, são frios, não têm empatia (não se colocam no lugar do outro) e são capazes de premeditar o ato cruel – premeditação que não existiu no caso de Alexandre e da madrasta. Sem falso moralismo, sem hipocrisia, e olhos nos olhos com a própria consciência, qual pai ou mãe já não se irritou com o berreiro de um filho? Anna Carolina andava irritada com o choro contínuo de seu filho menor. “Existem diversos perfis de pessoas que matam crianças e diversas causas para o homicídio infantil. Uma das mais comuns, por incrível que pareça, é pai ou mãe que não toleram choro infantil”, diz uma psicóloga do Rio Grande do Sul que pede para não ser identificada. A irritação de qualquer ser humano é processada na região do cérebro conhecida como sistema límbico. É modulada pelo córtex pré-frontal que “pondera pela razão” uma resposta proporcional ao estímulo irritativo – é como se essa parte do cérebro nos alertasse a todo momento até onde podemos ir nessa resposta emocional dentro de um comportamento que se espera de seres humanos que convivem em sociedade. Tanto Anna Carolina quanto Alexandre, poucos dias antes da morte de Isabella, tinham consultado psiquiatras e saído dos consultórios com receitas de antidepressivos e ansiolíticos nas mãos. Compraram o medicamento, mas não o tomaram. Ela andava mesmo se queixando da rotina que limitava sua vida aos cuidados exaustivos que tinha de ter com três crianças, e ele vivia à época bastante estressado com mazelas familiares. “Nenhum ser humano está imune a expressar uma resposta impulsiva, ter uma explosão pontual e desproporcional”, diz o neuropsicólogo e coordenador do Núcleo Forense do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, Antonio de Pádua Serafim.

Se a perplexidade e a revolta da população brasileira se dá não apenas pela barbaridade do crime mas também pela aparente falta de motivação para a morte da inocente Isabella, a tese da acusação, de que tudo se deu devido ao exacerbado ciúme que Alexandre e Anna Carolina sentiam um do outro, ganhou cada vez mais espaço. Como todos os sentimentos humanos, também o ciúme, no campo da psiquiatria, tem um continuum – ou seja, gradações. Qualquer que seja a escala na qual ele se enquadre, essa desnorteante emoção, no entanto, está longe de ser “o perfume do amor”, como cantou o poeta Vinícius de Moraes, e se localiza muito mais próxima de um “mórbido estado de psicopatologia” como a definiu Sigmund Freud. Alexandre possuía tal ciúme doentio a ponto de controlar a quilometragem do carro de Anna Carolina para saber se ela utilizava o veículo apenas para levar e apanhar as crianças na escola, como era a sua ordem. E, assumidamente, é “mulherengo”. Anna, por sua vez, não o traía, mas insinuava seduções para lhe plantar o ciúme na alma e não se imaginava “vivendo sem ele”, numa simbiose na qual os indivíduos se despersonalizam. Isabella, involuntariamente, era o símbolo concreto da presença da ex-mulher de Alexandre. “Se o sujeito acredita que é impossível viver sem sua esposa e tem uma filha que ameaça essa relação, ele pode matar a filha para não perder a mulher. Por mais horror que nos cause, isso é um fato psiquiátrico”, diz Miguel Chalub, psiquiatra forense do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro. Se de fato foi esse o motivo que levou à morte de Isabella, Alexandre e Anna perderam a menina e também se perderam um do outro. Pelas próximas décadas, com ou sem ciúme, não se verão e só conversarão por cartas, cada um em sua cela nas penitenciárias onde permanecerão encarcerados na cidade de Tremembé.

Por dentro do julgamento (O diário de quem assistiu a tudo)

Primeiro dia
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Início: 14h17
Término: 21h45

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Primeiro dia de um dos julgamentos mais importantes do País. No banco dos réus, Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, acusados de ter matado a menina Isabella em março de 2008. Na porta do Fórum de Santana, em São Paulo, mais de 50 pessoas, entre estudantes de direito e curiosos, formavam uma longa fila desde as 4h30. Todos na expectativa de assistir ao júri, marcado para às 13h. Os trabalhos só começaram às 14h07. Sucedeu-se uma cansativa parte burocrática e a formação do conselho de sentença, com o sorteio dos sete jurados que decidiriam o destino dos réus. Público e júri receberam a primeira testemunha às 19h30, a mãe de Isabella, Ana Carolina de Oliveira. Ela chorou quatro vezes ao relembrar a morte da filha e comoveu a todos. Mas Ana nem imaginava a desagradável surpresa que lhe esperava: a pedido do advogado de defesa do casal, Roberto Podval, ela não foi liberada após o testemunho e teve de permanecer incomunicável até a manhã da quinta-feira 25, sem poder assistir ao julgamento.

Segundo dia
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Início: 10h15
Término: 19h30

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Trunfo anunciado pela promotoria, as duas maquetes do edifício London amanheceram no plenário na terça-feira. Uma reproduzia em escala todo o prédio, com seus acessos de entrada e áreas comuns. Outra mostrava a planta do apartamento dos Nardoni. Foi em torno das reproduções do edifício que a delegada Renata Pontes deu seu testemunho e reafirmou a convicção de que o casal era o responsável pela morte de Isabella. Pela tarde, dois depoimentos que mais pareceram miniaulas sobre investigações periciais. Primeiro, o médico-legista Paulo Tieppo fez somar às maquetes outro recurso: a exibição de fotos da autópsia. Um júri atento assistiu a imagens do coração, do pulmão e da região da garganta da menina, acompanhadas pela explicação detalhada de Tieppo – tão minuciosa que muitas vezes escapava à compreensão de um leigo. Em seguida, um dos maiores especialistas em manchas de sangue do País, o perito Luiz Eduardo Dorea, desvendou ao júri como os peritos interpretam a cena do crime a partir das gotas de sangue encontradas. Após um primeiro dia de emoção, tinham início os tão aguardados debates técnico-científicos acerca do caso.

Terceiro dia
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Início: 10h15
Término: 19h15
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À defesa, o terceiro dia era a possibilidade de pôr em xeque a interpretação da perícia para as provas científicas. À promotoria, a oportunidade de confirmar a tese de que os Nardoni eram os responsáveis pela morte de Isabella. No centro das atenções, a perita do Instituto Criminal Rosângela Monteiro, responsável pelos laudos do caso e protagonista do depoimento mais longo dos cinco dias de julgamento. Foram cinco horas e 13 minutos, recheadas por alusões aos métodos periciais usados durante as investigações. Não houve na sala quem não saísse inteirado sobre o uso dos reagentes Bluestar e Hexagon (indicados para a detecção de sangue nas cenas de crime) ou das luzes forenses (lanternas especiais que permitem a visualização de impressões digitais). Aos termos técnicos, acumulavam-se as informações: se por um lado Rosângela afirmou que foi mesmo Alexandre quem jogou Isabella pela janela, por outro admitiu não ter comprovação de sangue da menina na fralda nem nas roupas do casal. A munição para o debate final estava dada. As outras duas testemunhas ouvidas na quarta-feira ficaram como coadjuvantes.

Quarto dia
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Início: 10h45
Término: 20h50
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Finalmente, o depoimento do casal Nardoni. Primeiro ele, depois ela. O clima é quente, tanto na temperatura quanto na tensão. No plenário, o choro se espalhava, vindo das famílias, de jurados, da plateia e até de uma das policiais. dona Cida, mãe de Alexandre, vai pela primeira vez ao julgamento do filho. Emociona-se tanto ao vê-lo que, aos prantos, sai antes mesmo do início do inquérito. Pouco depois, no mesmo Fórum, emoção parecida era sentida por outra mãe, dona Rosa, ao reencontrar a filha, Ana de Oliveira – cerrada na sala das testemunhas desde o início do julgamento. E mesmo Alexandre, tido como pouco emotivo, tem os olhos marejados e a voz embargada ao relatar o momento em que viu a filha estirada no gramado do edifício London e, posteriormente, a imagem da menina no saco preto do necrotério, esperando identificação. Durante a tarde, falando baixo e chorando muito, é a vez de Anna Carolina Jatobá. Novas lágrimas. O clímax é quando ela, também mãe, se lamenta por não estar acompanhando a vida de seus filhos, Pietro e Cauã. Paira sobre o plenário a incômoda sensação da dúvida: será que foram eles?

Quinto dia
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Início: 10h26
Término: 00h45 do sábado 27
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Após três dias de depoimentos das testemunhas, um dia de inquérito com os réus e oito horas e cinco minutos de debates entre o promotor e o advogado de defesa, foi a vez de os jurados decidirem pela culpa ou pela inocência do casal. Mediante as evidências postas pelo promotor Francisco Cembranelli, surgia a dúvida sugerida pelo advogado Roberto Podval. E se Cembranelli usava o perfil psicológico da ré para justificar o crime (provocado pelo destempero de Anna Carolina Jatobá), Podval apostava na justificativa sociológica para a liberação (alegando que um comportamento conturbado não seria sinônimo de um criminoso cruel, capaz de esganar e atirar uma criancinha do alto de um prédio). À 0h29, o Brasil tinha a resposta para a difícil decisão tomada pelos jurados. Frente a frente com o juiz, os réus ouviram a sentença: foram considerados culpados pelos crimes de homicídio triplamente qualificado e de fraude processual. Na madrugada do dia 27 de março, aos gritos da multidão reunida em frente ao Fórum, encerrava-se o julgamento do casal Nardoni, dois dias antes do segundo ano de aniversário da morte da menina Isabella.

OUTROS CASOS CHOCANTES

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VIOLÊNCIA
Suzane matou os pais. Neves, a namorada. Alexandre jogou o filho contra um carro

Era fevereiro de 2003. Em Campinas (SP), o casal Alexandre e Sara Alvarenga protagonizou uma cena chocante: depois de bater o automóvel da família em outro carro, Alexandre arremessou o filho, de 1 ano, contra o para-brisa do veículo. A irmã, então com 6 anos, foi arrastada até o parque ao lado. A mãe passou a bater sua cabeça contra uma árvore e só parou depois de ser contida por várias pessoas. Dois anos depois, Alexandre e Sara foram absolvidos pela Justiça com o argumento de que teriam sofrido um surto psicótico. Suzane Von Richthofen fez o inverso. Ajudou a matar os pais, Manfred e Marísia, em 2002, em São Paulo. Não teve surto. Ao contrário, planejou o crime com a ajuda dos irmãos Daniel e Christian Cravinhos. Daniel era seu namorado. Outros crimes chocaram, por motivos diferentes. Em 2000, o jornalista Antônio Pimenta Neves matou a namorada, Sandra Gomide, em Ibiúna, em São Paulo. Ele confessou o crime e alegou que o motivo foi o fim do relacionamento entre os dois. Ele foi condenado a pena máxima, mas recursos judiciais lhe permitem ficar em liberdade. Vinte e quatro anos antes, Doca Street matou a socialite Ângela Diniz, com quatro tiros, no Rio de Janeiro. O assassinato aconteceu depois de uma discussão com Ângela, por ciúme. Doca foi condenado. Passou 15 anos na prisão.





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26/10/2008 free counters