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Os olhos por trás do grampo Como o agente Francisco Ambrósio do Nascimento, da Abin, coordenou na Polícia Federal a equipe que fez a escuta de 18 senadores, 26 deputados, ministros do governo e das mais altas autoridades do Judiciário Por MINO PEDROSA E HUGO MARQUES
Francisco Ambrósio do Nascimento, um ex-agente do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI), é o espião que coordenou a atuação de um grupo de agentes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) na Operação Satiagraha, da Polícia Federal. A pedido do delegado Protógenes Queiroz, responsável pelas investigações contra o grupo do banqueiro Daniel Dantas, Ambrósio se instalou no começo do ano em uma sala no Máscara Negra, como é conhecido o edifício-sede da PF em Brasília. Tornou-se uma espécie de braço direito do delegado, funcionando como elo entre Protógenes e os agentes operacionais da Abin, cedidos à Satiagraha. Foi da sala situada bem em frente ao gabinete do diretor da Divisão de Inteligência, delegado Daniel Lorenz, que o espião coordenou os trabalhos que resultaram em milhares de horas de diálogos telefônicos gravados, centenas de filmagens e diversos monitoramentos que compõem as entranhas da Satiagraha. Muitas das escutas extrapolaram as autorizações legais da Justiça. Numa delas, gravou-se uma conversa telefônica do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, com o senador Demóstenes Torres (DEM-GO). A partir daí, o arsenal clandestino da Satiagraha desencadeou uma crise institucional entre os Três Poderes da República. E o espião passou a última semana esquivando-se nas sombras de Brasília. Ele sabe que deverá ser chamado a depor no Congresso, no Ministério Público e na própria PF. Nessa hora, certamente será pressionado a revelar como, quando, por que e por ordem de quem sua equipe monitorou e promoveu escutas telefônicas e ambientais envolvendo autoridades do Executivo, Legislativo e Judiciário.
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Apesar de o QG desses agentes da Abin ocupar um espaço privilegiado no Máscara Negra, nem o diretor de Inteligência nem o diretor-geral, Luiz Fernando Corrêa, sabiam das missões confiadas ou da autonomia concedida ao espião. Para entrar no prédio e nos computadores da PF sem deixar rastros, Ambrósio usava crachá e senhas de outra pessoa, uma funcionária. Os caminhos percorridos por esse crachá e por essa senha já começaram a serem rastreados numa investigação da Polícia Federal. A pedido do presidente do Senado, Garibaldi Alves (PMDB-RN), o caso também será acompanhado por representantes do Congresso e do Judiciário.
Na linguagem dos porões, o que eles vão descobrir é nitroglicerina pura. Segundo arapongas revelaram à ISTOÉ, a operação gravou conversas e monitorou os passos de 18 senadores, 26 deputados, do secretário-geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, da ministra Dilma Rousseff, de ministros do STF e do STJ, advogados, lobistas e inúmeros jornalistas. "O Protógenes tem em mãos um arsenal que destrói o governo passado, o atual e o próximo", revelou Ambrósio a um amigo. Como tudo que é feito clandestinamente, não se sabe o que, na frase do espião, é fato, bravata ou ameaça.
Mas é justamente porque os poderes não podem funcionar sob a insegurança das escutas telefônicas que o governo precisa urgentemente esclarecer o caso. Dois delegados, William Morad e Rômulo Berredo, foram designados para conduzir esse inquérito. Na semana passada, ambos foram apresentados ao ministro Gilmar Mendes. O ministro da Justiça, Tarso Genro, anunciou que, além de colher depoimentos, a primeira etapa da investigação irá realizar perícia nos equipamentos de escuta telefônica da PF e da Abin para tentar encontrar a origem de alguns grampos. Não será tarefa das mais fáceis.
INVESTIGAÇÕES O diretor da PF, Luiz Fernando (acima à esq.), apresenta a Gilmar Mendes os delegados que irão apurar os grampos irregulares. A pedido de Garibaldi Alves (abaixo), o caso será acompanhado pelo Congresso e pelo Judiciário |
Boa parte das conversas telefônicas gravadas pela equipe de Ambrósio foi feita a partir do Guardião, software capaz de monitorar centenas de telefones simultaneamente, mas que depende da participação das companhias telefônicas para ser operado. O equipamento permite que qualquer pessoa que faça contato com alguém cujo telefone esteja grampeado possa também virar alvo da escuta. Basta um simples comando do araponga de plantão e a cooperação da companhia telefônica. Essa facilidade de se grampear um novo número a partir da ligação recebida por outro telefone tem sido fundamental para a polícia e a Justiça desmontarem organizações criminosas complexas ligadas ao tráfico de drogas, ao contrabando, à pedofilia ou a crimes cibernéticos. Mas a montagem da grande rede da grampolândia revela a tênue fronteira da legalidade, e, tal qual uma CPI, no uso do Guardião sabe-se como a investigação começa, mas não se sabe até onde chegará.
No caso dos excessos cometidos na Satiagraha, os espiões de Ambrósio também promoveram gravações a partir de maletas que tanto podem diagnosticar a presença de grampos como captar conversas telefônicas quando colocadas a até 100 metros de um dos interlocutores. Esse tipo de equipamento permite que as conversas sejam interceptadas, independentemente da participação das companhias telefônicas. A PF dispõe do Guardião e a Abin dessas maletas, como foi revelado na última semana pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim, embora legalmente a agência de inteligência não tenha a prerrogativa de promover escutas telefônicas.
Os arapongas comandados por Ambrósio chegaram a alguns senadores, como Demóstenes Torres e Heráclito Fortes, a partir do monitoramento ilegal feito contra a repórter Andréa Michael, da Folha de S. Paulo. Foi ela quem primeiro revelou que havia a Operação Satiagraha, o que irritou o delegado Protógenes. Ele chegou a pedir sua prisão temporária, negada pela Justiça, sob a alegação de que ela estaria favorecendo a defesa de Daniel Dantas. Os agentes da Abin gravaram em vídeo um diálogo da jornalista com fontes da área de informações. No diálogo, eles debatem as investigações contra Dantas. No curso do monitoramento à repórter, foi grampeada uma ligação dela para o senador Demóstenes. "Não existe nenhuma autorização para o monitoramento de meus telefones ou de minhas conversas", lembra a jornalista. "Nunca tratei de nenhum assunto do Daniel Dantas, mas a repórter Andréa Michael conversa comigo em busca de notícias, como muitos outros jornalistas", diz Demóstenes.
A partir do monitoramento da jornalista, os espiões da Abin passaram a acompanhar o senador. Ele acabou também sendo gravado. Na Polícia Federal, suspeita-se que esteja aí a origem da gravação do diálogo do senador com o ministro Gilmar Mendes. Isso, no entanto, não exclui a possibilidade de que outras formas de monitoramento tenham sido praticadas contra autoridades do STF, do Superior Tribunal de Justiça e do Congresso. O senador Heráclito Fortes, por exemplo, que nunca escondeu ter boas relações com o banqueiro Dantas, chegou a ter seus passos seguidos pela equipe de Ambrósio no Rio de Janeiro.
Agentes ouvidos por ISTOÉ confirmam o que as autoridades suspeitam: a liberdade com que os espiões trabalharam, sem prestar contas à Justiça ou a superiores, levou a Satiagraha a descambar para uma grande teia de escutas e filmagens que nada tinham a ver com o objetivo inicial. Como bem lembrou o espião Ambrósio a um amigo, Protógenes tem em suas mãos muita coisa que não está no inquérito da Satiagraha. Existem casos inimagináveis, como seguir um senador pelas ruas do Rio de Janeiro, mas há também outros casos menos estrondosos. Os arapongas contam, por exemplo, que a advogada Carolina Louzada, de Brasília, que trabalha em centenas de processos com tramitação no STJ, foi grampeada. Na conversa, teria antecipado a decisão que seria tomada por um dos ministros da Casa. Até a sexta-feira 5, o STJ não havia sido comunicado oficialmente sobre o caso. Procurada por ISTOÉ, a advogada afirmou que não tinha conhecimento do grampo. "Estou chocada com tudo isso. Sou mais uma vítima nessa história", disse Carolina. Ela afirmou que de fato faz parte de um escritório que tem diversas causas no STJ, mas que em poucas ações é parte direta. "Jamais em minha vida prometi facilidades em ações junto ao STJ. Pelo contrário. Não tenho contato em gabinetes dos ministros e nunca tive facilidade alguma", afirma.
A presença dos espiões liderados por Ambrósio no centro das investigações contra Daniel Dantas é o resultado de divergências internas da própria PF. Protógenes já deixou claro que não confia em seu chefe, o delegado Luiz Fernando Corrêa. Quando Corrêa assumiu a direção-geral da PF, em setembro de 2007, Protógenes já comandava as investigações da Satiagraha a pedido do delegado Paulo Lacerda, ex-diretor da Polícia Federal e atual diretor afastado da Abin. Na troca de comando, Lacerda fez um único pedido ao sucessor: conservar o delegado por ele escolhido à frente da Satiagraha e lhe dar carta branca para solicitar todos os recursos materiais e humanos que fossem necessários para as investigações. O pedido não foi aceito.
No final do ano passado, Protógenes começou a ficar sem recursos para continuar a apuração e interpretou que seus novos superiores estariam empenhados em evitar que o cerco a Dantas fosse fechado. Traçou, então, uma estratégia ousada. Pediu que seus próprios telefones fossem grampeados. Sempre que queria reunir elementos contra Luiz Fernando Corrêa e Daniel Lorenz, telefonava-lhes reivindicando apoio para as operações da Satiagraha e, legalmente (estava registrando sua própria conversa), gravava os diálogos em que os recursos eram negados. Com essas gravações, poderia tornar publica a qualquer momento sua versão de que o comando da PF estaria agindo de maneira a proteger Dantas.
A relação entre Protógenes e seus chefes degringolou de vez no início do ano, quando, depois de cobrar insistentemente um relatório das ações da Satiagraha, Lorenz recebeu do subordinado uma solitária lauda de papel ofício com apenas seis tópicos que não diziam nada. Depois disso, o chefe da Divisão de Inteligência decidiu checar de perto as atividades de Protógenes no Máscara Negra e ali reconheceu Márcio Seltz, um agente da Abin com quem trabalhara em outras operações. Lorenz interpelou Seltz:
O que você está fazendo aqui?, quis saber o delegado.
Trabalho para o Protógenes, respondeu secamente o agente da Abin.
Quem autorizava o ingresso de Seltz no prédio da PF era alguém que se identificava como Moisés Andrade e atendia o ramal interno na sala de Protógenes. Agora, a Polícia Federal quer saber quem é Moisés Andrade, uma vez que esse nome não consta no quadro de funcionários.
Na semana passada, depois que os grampos ilegais promovidos sob suas barbas ganharam contornos de crise institucional, Lorenz fez um mea-culpa ante o diretor Corrêa. "Naquele momento eu deveria ter relatado em ofício a presença de pelo menos um homem da Abin dentro da Polícia Federal e exigido seu afastamento das investigações", lamentou Lorenz. Quando descobriu a presença de Seltz no Máscara Negra, Lorenz disse a Protógenes que era inaceitável ver espiões da Abin circulando na sede da PF e ameaçou tirar de suas mãos o controle da Satiagraha. Protógenes contra-atacou dizendo que tinha gravações de conversas suas tanto com Lorenz como com o diretor Corrêa e que se elas vazassem "ficaria chato". Protógenes, então, seguiu no comando da Satiagraha, mas deixou a sede da Polícia Federal, transferindo-se para um conjunto de salas comerciais no Setor Sudoeste, bairro de classe média de Brasília, e viu minguarem as verbas de investigações.
VÍTIMAS Da "Máscara Negra", sede da PF, agentes da Abin comandaram operações para seguir o senador Heráclito Fortes (acima) no Rio e gravar as conversas telefônicas de Demóstenes Torres (à esq.) |
Com a medida, o diretor da Divisão de Inteligência conseguiu tirar os arapongas da Abin de dentro da sede da PF, mas não evitou que suas atividades continuassem em outro QG, ainda ao lado de Protógenes. Lorenz, então, viajou a São Paulo para uma conversa reservada com o juiz Fausto De Sanctis, cujas decisões davam garantia legal aos atos de Protógenes e a alguns dos grampos e monitoramentos promovidos pela equipe do espião Ambrósio. Lorenz pediu ao juiz que encerrasse as autorizações dadas à equipe da Satiagraha. As autorizações, contudo, continuaram a ser dadas. Lorenz está convencido de que Protógenes ficou sabendo de suas intenções no mesmo dia em que esteve com o juiz. Na manhã da sexta-feira 5, o magistrado afirmou que não irá se manifestar sobre o episódio. "Acho uma atitude responsável da revista estar me procurando, mas no momento não vou comentar nada a esse respeito", disse o juiz Fausto De Sanctis à ISTOÉ. O delegado Protógenes tem afirmado que tudo o que fez está legalizado e registrado no inquérito da Satiagraha.
Lorenz e Corrêa, apesar de ocuparem os mais altos cargos da Polícia Federal, jamais oficializaram a suspeita de que arbitrariedades estariam sendo cometidas pelas equipes de Protógenes e do espião Ambrósio. Mas, desde o mês de maio, ambos tiveram a certeza de que os grampos ilegais estavam espalhados por todo o País. A convicção se deu quando Protógenes entregou a Lorenz um ofício solicitando uma maleta para fazer grampos a distância. Para quê a maleta, se Protógenes já tinha à sua disposição o sistema Guardião, que grava as escutas autorizadas pelo juiz? O pedido foi negado. "Eu sabia que o Protógenes não precisava da maleta, pois a operação já estava terminando", justificou o diretor da Divisão de Inteligência.
O descontrole sobre as ações do grupo de Protógenes e do espião Ambrósio ajudam a embasar as desconfianças daqueles que acusam a PF de trabalhar com fins políticos. A PF e os agentes da Abin conseguiram gravar ilegalmente senadores, deputados, ministros e autoridades do Judiciário. No entanto, se mostraram incapazes de cumprir uma determinação do STF que mandou monitorar as conversas telefônicas do exsecretário nacional do PT Romênio Pereira, suspeito de participar de um esquema que desviou do Orçamento da União R$ 700 milhões dos cofres públicos, como revelou ISTOÉ há três semanas. Em carta dirigida ao STF, a Polícia Federal alegou não dispor de recursos técnicos para promover a escuta telefônica do petista.
Embora afirme que seus agentes não tiveram participação oficial na Satiagraha, a direção da Abin tem conhecimento de que uma equipe liderada pelo espião Ambrósio estava atuando sob o comando de Protógenes. Paulo Lacerda, diretor afastado da Abin, revelou a amigos que foi procurado pelo delegado no final do ano passado, dias depois de assumir o comando da agência. "Estou sozinho", reclamou Protógenes a seu antigo protetor. "Estão tirando os meios da operação lá na Polícia Federal." Segundo revelou Lacerda, foi o próprio Protógenes quem solicitou uma reunião dele, Lacerda, com Corrêa.
"Avisei ao doutor Luiz Fernando Corrêa que a investigação do Daniel Dantas tinha um potencial explosivo", disse o diretor afastado da Abin em conversas reservadas. "O Protógenes ressuscitou a operação com a ajuda da Abin." Protógenes também afirmou a Lacerda que Lorenz sabia dos detalhes do trabalho dos espiões da Abin. Nas conversas com amigos, Lacerda assegura que o atual diretor da PF foi nomeado pelo ministro Tarso Genro para brecar investigações que poderiam atingir algumas alas do PT. Segundo ele, na lista de operações que deveriam ser abortadas estava a Satiagraha.
Ao mostrar a zona de ilegalidade por onde trafegam os agentes da Abin, a crise instalada com a confirmação da escuta clandestina de parlamentares e membros da mais alta corte de Justiça do País provocou reações indignadas de toda a sociedade. Na CPI do Grampo, há a disposição de se buscar uma nova legislação que seja capaz de efetivamente impedir o abuso dos arapongas e o uso irregular das interceptações para atender a interesses escusos.
O presidente da CPI, deputado Marcelo Itagiba (PMDB-RJ), antecipou à ISTOÉ que vai apresentar um projeto para endurecer a legislação. Um "código nacional de interceptação telefônica", disse Itagiba. O artigo número um dessa nova proposta é uma pena pesada para interceptação ilegal, em torno de quatro anos de reclusão. A comissão também vai sugerir a punição de agentes públicos que "vazam" escutas telefônicas.
Itagiba pretende propor um capítulo especial sobre a comercialização e fiscalização de equipamentos de escuta, nos mesmos moldes do que acontece nos Estados Unidos. Lá, nenhum equipamento pode ser vendido sem a chancela do governo. No Brasil, a idéia é deixar o controle com a Agência Nacional de Telecomunicações, a Anatel. O parlamentar apóia a iniciativa do Conselho Nacional de Justiça de uniformizar os processos para autorização de escuta telefônica. "A CPI mostrou que os preceitos constitucionais não estão sendo observados", diz Itagiba. Também no Ministério da Justiça elabora-se um projeto para disciplinar o uso do grampo telefônico. A proposta do governo é que os espiões da Abin sejam espionados por um grupo de observadores eleitos para isso. Trata-se de uma proposta que tem o aval do senador Demóstenes Torres, vítima do grampo que deflagrou a crise. Na quinta-feira 4, ele prestou depoimento de mais de duas horas ao delegado William Morad e no final do encontro propôs a criação de um núcleo formado por sete pessoas para monitorar, dentro da Abin, todas as atividades dos arapongas.
É certo que a implantação de um estado policialesco incapaz de assegurar o sigilo das comunicações é algo que deve ser rechaçado. Não cabem, porém, as críticas apaixonadas - que sustentam o fim de qualquer grampo ou até mesmo a extinção de todos os serviços de inteligência - nem as motivadas por razões políticas que pretendem se valer do condenável grampo contra o presidente do STF para dar vazão a pendengas partidárias. Há que se considerar que, quando usadas de forma regular, transparente e sob o rígido controle do Judiciário, as escutas telefônicas têm se mostrado uma extraordinária ferramenta de combate ao crime organizado, como tráfico de drogas, lavagem de dinheiro e até casos de pedofilia.
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