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sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Doenças subclínicas da tireóide

Controvérsias sobre a relação entre causa e efeito nas disfunções tireoideanas subclínicas aquecem discussão a respeito da necessidade de rastreamento populacional e tratamento dos casos encontrados

Por Louise Henrique


Quase 3.500 anos depois de descritas pela primeira vez, as doenças da tireóide continuam produzindo controvérsia entre os médicos. Mas, ao contrário do que relatam os documentos hindus e chineses, de 1500 a.C., sobre bócios do pescoço tratados com algas e esponjas, a discussão hoje gira em torno da melhor abordagem para tratar pacientes que ainda nem apresentaram os sintomas. A polêmica começou em 1967 quando o médico e pesquisador belga, Paul Bastenie, evidenciou uma nova situação clínica na qual a dosagem de hormônios tireoideanos no sangue
era normal, mas os níveis de TSH, o hormônio estimulador da tireóide, estavam aumentados. Denominada de hipotireoidismo subclínico, essa condição, ao lado do hipertireoidismo subclínico, descrito em 1976 por Ernst Gemsenjäger, tem sido alvo de crescente discussão. O principal objetivo dos pesquisadores é determinar se essas manifestações
subclínicas teriam as mesmas repercussões sistêmicas do hipotireoidismo e hipertireoidismo francos, como dislipidemia, aterosclerose, infarto e fibrilação atrial. A glândula tireóide produz dois hormônios semelhantes e responsáveis por estimular o metabolismo celular, a tiroxina (T4) e a triiodotironina (T3). A síntese e a liberação desses hormônios são reguladas pelo hormônio estimulante da tireóide (TSH) secretado na porção anterior da hipófise. Se ocorrer eventualmente uma queda nos níveis de T3 e T4, a hipófise eleva imediatamente a produção de TSH para estimular a produção desses hormônios, os quais, aumentados, inibem a liberação de mais TSH, pelo mecanismo de feedback. No hipotireoidismo subclínico, tal aumento é constante, denotando que a tireóide daquele paciente precisa de mais estímulo para manter a produção normal de hormônios. No hipertireoidismo, os baixos níveis de TSH evidenciam que uma pequena quantidade de estímulo provoca uma resposta exagerada da tireóide.


Rastreamento desnecessário


O diagnóstico das doenças subclínicas da tireóide é baseado em exame laboratorial das alterações (veja quadro Definição e Classificação). A prevalência do hipotireoidismo pode atingir 20% das mulheres acima de 74 anos, segundo dados do National Institute of Health, a agência nacional de saúde dos Estados Unidos. As causas do hipotireoidismo subclínico são as mesmas do hipotireoidismo franco, incluindo, entre outras, a deficiência de iodo, o uso de medicamentos (amiodarona, lítio) e a tireoidite de Hashimoto.

Annals of Internal Medicine, de que o hipotireoidismo subclínico está associado à aterosclerose e ao infarto agudo do miocárdio sustentam a hipótese de que seria necessário o rastreamento populacional e o tratamento dos casos encontrados a fim de reduzir tal risco cardiovascular. E é aí que ganha fôlego a controvérsia.
O pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), Dr. Rodrigo Olmos, afirma que estudos subseqüentes sobre o assunto não confirmaram esses achados. "A maior parte dos resultados é conflitante. Eles dependem
muito do tipo de estudo realizado e da população avaliada", afirma. Olmos explica que a prevalência de hipotireoidismo subclínico é, em geral, maior entre pacientes que também apresentam alta incidência de hipertensão, diabetes e dislipidemia, daí
a importância de os estudos que pretendem estabelecer uma relação de causa e efeito envolvendo disfunções tireoideanas subclínicas serem bem desenhados
para que esses fatores de risco cardiovascular já conhecidos não confundam os resultados.















O pesquisador fez uma revisão extensa da literatura internacional sobre o assunto para sua tese de doutorado e chegou à conclusão de que a maioria dos estudos que demonstraram uma associação positiva entre hipotireoidismo subclínico e doenças cardiovasculares contém erros metodológicos que tornam seus resultados mais suscetíveis a viés e, portanto, menos confiáveis. Os principais fatores de confusão encontrados foram o uso de modelos transversais, que analisam a população no momento estudado apenas, sem um seguimento ao longo do tempo, e a inclusão de pacientes com diagnóstico prévio de hipotireoidismo ou sintomáticos, ou seja, não representativos da população com hipotireoidismo subclínico. "Por definição, o rastreamento visa encontrar pacientes assintomáticos, mas que estão sob maior risco de desenvolverem uma doença.

Entretanto, como não temos dados definitivos de que o hipotireoidismo subclínico realmente ofereça algum risco para seus portadores, não há justificativa para um rastreamento populacional", conclui a livre-docente pela FMUSP e orientadora
da tese de Olmos, Dra. Isabela Benseñor. Quanto à necessidade de tratamento dos pacientes com hipotireoidismo subclínico já diagnosticado, os vários estudos de intervenção realizados apresentaram resultados controversos. Em primeiro
lugar porque o tratamento com hormônio tireoideano não é isento de riscos. A alteração da dosagem de TSH obtida com a administração de determinada dose de levotiroxina é extremamente variável de pessoa para pessoa e muitos pacientes
acabam, assim, supertratados, desenvolvendo ao fim hipertireoidismo subclínico que discutiremos adiante.

Em segundo lugar, nenhum estudo conseguiu comprovar que o tratamento melhora os parâmetros cardiovasculares supostamente associados ao hipotireoidismo subclínico ou tem impacto sobre a mortalidade dos indivíduos estudados. "As conseqüências das doenças subclínicas da tireóide são mínimas, portanto, não aconselhamos o tratamento de pacientes com níveis limítrofes de TSH (entre 4,5 e 10 mUI/L)", concluíram Martin Surks e demais autores de uma revisão sistemática da literatura, publicada em 2004 no The Journal of the American Medical Association (JAMA). De acordo com os autores, o tratamento poderia ser justificado apenas em pacientes com TSH maior que 10 mUI/L, por prevenir a progressão da disfunção tireoideana subclínica para o hipotireoidismo franco, que pode ocorrer em cerca de 5% desses casos. Outro fator de risco é a presença de autoanticorpos contra a tireóide, de antiperoxidase e de antitireoglobulina.

Tais parâmetros poderiam ser considerados como fatores a favor do tratamento. Preconiza-se por fim o tratamento de pacientes grávidas, pois, segundo algumas evidências, o hipotireoidismo subclínico pode estar associado ao desenvolvimento de insuficiência tireoideana no feto, fator responsável por atraso neuropsicológico. Embora não existam estudos de intervenção com o uso de levotiroxina em grávidas, especialistas acreditam que os benefícios superam os riscos do tratamento nesta população específica.


O outro lado da moeda


O hipertireoidismo subclínico apresenta prevalência menor, cerca de 1,5%, em mulheres acima de 60 anos. É interessante notar que a etiologia comum desses casos é o uso de uma dose excessiva de levotiroxina no tratamento do hipotireoidismo. Tais casos, porém, não se enquadram na controvérsia sobre a necessidade de rastreamento e tratamento porque são pacientes já diagnosticadas e seu tratamento e acompanhamento devem ser realizados periodicamente. Quanto às causas endógenas do hipotireoidismo subclínico, as mais freqüentes são a doença de Graves e os nódulos funcionantes da tireóide. Apesar do menor número de estudos sobre tal condição, são mais sólidas as evidências de associação entre o TSH abaixo de 0,1 mUI/L e maior incidência de fibrilação atrial, segundo Mark Helfand1.

Esta é mais uma situação em que o tratamento é indicado, independentemente da certeza sobre se ele irá reduzir a incidência de fibrilação atrial ou influenciar a mortalidade, em virtude das conseqüências potencialmente graves dessa arritmia
na população idosa. A maioria dos pacientes, no entanto, apresenta níveis de TSH entre 0,1 e 0,45 mUI/L e não há registro da mesma associação com fibrilação atrial ou com qualquer outra com condição pesquisada, tais como osteoporose, sintomas
psiquiátricos e disfunções cardíacas entre tais casos. Nananda Col e colegas defenderam, em artigo publicado no JAMA2, que em pacientes com mais de
60 anos que já apresentem alguma alteração cardíaca ou de densidade óssea também seria prudente o tratamento do hipertireoidismo subclínico, visando
eliminar mais um fator de risco desfavorável, mas esse ponto de vista não é universal.















Resumindo, as doenças subclínicas da tireóide, apesar de prevalentes, não justificam o rastreamento populacional ou tratamento de casos encontrados ao acaso. Com base nos dados atuais, só devem ser tratados os pacientes com indicações específicas (veja quadro Quando considerar o tratamento). Vale ressaltar ainda a diferença entre rastreamento realizado em indivíduos assintomáticos na comunidade e busca ativa de casos. "Há uma grande diferença no significado de um TSH alterado em um indivíduo totalmente assintomático e um TSH alterado em um indivíduo com sintomas inespecíficos, como obstipação intestinal, dores crônicas ou desânimo", escreve o Dr. Rodrigo Olmos em sua tese. No segundo caso, a solicitação de exames laboratoriais de função tireoideana visa o diagnóstico de uma condição clínica manifesta e não o rastreamento de doença subclínica. Neste caso, é válido lembrar que elas apresentam uma gama variável de manifestações e nem todo esse espectro merece ser tratado.

Referências:

1. Helfand M. Screening for subclinical thyroid dysfunction in non-pregnant adults: a summary of the evidence for the U.S. Preventive Services Task Force, Ann Intern Med 2004;140(2):128-41. 2. Surks MI et al. Subclinical thyroid disease. Scientific review and guidelines for diagnosis and management. JAMA 2004;291(2):228-38.

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