O discurso continua a fluir tão cativante como sempre e, não fossem os ligeiríssimos lapsos de memória ou a lendária tendência para a dispersão, dir-se-ia imune à passagem dos anos. Falar com Manoel de Oliveira equivale a entrar num tempo que, sendo o nosso, é também imemorial, por saber abarcar com propriedade a juventude e a experiência, sempre entralaçadas pela sabedoria. Das inúmeras homenagens de que tem sido alvo ao Porto de hoje, passando pelas tendências do cinema, de tudo falou com desassombro o único realizador mundial em actividade cujo trabalho remonta ao cinema mudo. Só um tema parece perturbá-lo: o Oscar, a que diz não atribuir importância. Recorda-se de há quanto tempo não tem um dia só para si? Os meus dias são ocupados como os de toda a gente, presumo… Levanto-me da cama e faço o que é necessário. Tudo isso leva tempo e requer algum esforço. Mas disso se poderão queixar todos os seres vivos, até as aves que passam os dias nas árvores em busca de alimento. Refiro-me a um dia em que não esteja a filmar. Já não concebe a sua vida sem essa agitação permanente? É difícil. Ainda agora, na rodagem de "Singularidades duma rapariga loira", temos trabalhado todos os dias, até aos domingos. Durante a filmagem, não penso senão naquilo. Fora disso, tenho que pensar na minha vida particular, que é complexa, como a de toda a gente. Há faxes, emails, telefones a responder… Felizmente, não tenho telemóvel. Caso contrário, passaria a vida agarrado a ele, tal como fazem as restantes pessoas, que não se apercebem de que estão a falar sozinhas. Há um ano, dizia que gostava de comemorar o 100º aniversário num ambiente recatado e próximo da família. No entanto, pela dimensão das comemorações, reconhece que não será fácil que isso venha a acontecer… Não vai ser realmente possível, dada a proporção que a data acabou por tomar. Mas já festejei nos últimos dias o aniversário de casamento. O 68º, para ser mais exacto. Quanto aos meus 100 anos, vou celebrá-los ao lado da minha família cinematográfica, que também é importante. No dia 12, irei comemorar, no Porto, junto da minha verdadeira família. Mas não se sente algo contrariado por ter perdido a dimensão intimista do seu aniversário? Não se fazem 100 anos todos os dias… Constatar o interesse das pessoas acaba por ser muito estimulante. Não há indiferença, o que muito me agrada. Por isso, a satisfação é dupla: chegar a esta idade e verificar também que há muita gente com vontade de congratular-me. Esse clima de festa atenua todos os esforços que fiz ao longo dos anos. Todas essas solicitações não retiram tempo precioso para filmar? A produção preserva-me para que tenha o devido tempo livre. Quando filmo, só penso naquilo e não sou perturbado. É a minha necessidade privada e só isso me dá o devido descanso. O trabalho em equipa é fundamental. Faz-me lembrar a construção de uma catedral: por muito destaque que mereça o arquitecto, a verdade é que sem os pedreiros a obra não é levada a cabo… Como tem visto todos estes tributos de que é alvo? Tudo isto me comove, como não poderia deixar de ser. Sou uma pessoa sensível. Ainda há meses, Serralves organizou uma mostra extraordinária sobre a minha obra. Não posso dizer que haja fadiga ou cansaço. Tudo isto me dá forças, anima-me. As manifestações de apreço que deve receber na rua também não o deixam indiferente. Sim, claro. É frequente isso acontecer, seja em Lisboa, no Porto ou em qualquer outro lugar. Os jornais, a rádio e a televisão são um elemento fundamental para o conhecimento de uma obra. Sem eles, as pessoas não sabem sequer da existência de um filme. Esta fama que me vem aureolando não nasce por acaso: vem da minha presença no espaço público. Tem noção de que muitas dessas manifestações de apreço vêm de pessoas que mal conhecem a sua obra? ... Ou não a conhecem de todo. Basta terem-me visto no jornal e querem que assine um autógrafo ali mesmo na rua. Essa perseguição é estimulante, ainda que me fatigue um pouco. Por que motivo, apesar de ser uma figura estimada de muita gente, as pessoas vão tão pouco ao cinema ver os seus filmes? São humanas, apenas isso. A Humanidade nidifica-se com qualquer gesto que sublime a sua própria humanidade. Por exemplo, não sei nada de ciência, mas admirei sempre o Einstein. Quanto mais não fosse, por achar que o universo é o corpo de Deus. A Câmara do Porto anunciou que vai entregar-lhe as Chaves da Cidade. Há algum sentimento especial por ser a mais alta distinção da sua cidade? Nada me foi perguntado e, nessas circunstâncias, não faz sentido receber o prémio. Os meus problemas com os Câmara do Porto remontam aos três presidentes mais recentes, mas o actual último tem sido o pior e agravou ainda mais a situação. A Câmara só existe enquanto representação dos cidadãos e o actual presidente não representa grande coisa. Não vai aceitar, portanto. Não vou receber coisa nenhuma porque, como disse, não fui consultado. Só tive conhecimento quando o assunto chegou aos jornais. Tenho recebido tantas provocações e ofensas que não faz sentido agora que a Câmara queira fazer um aproveitamento da ocasião para homenagear-me. Contradiz o comportamento dos representantes da autarquia para comigo ao longo dos anos. Tenho um grande amor à cidade e aos portuenses, pois trata-se da terra onde nasci, vivo e provavelmente irei morrer. Se fossem os portuenses a atribuir-me o galardão, seria diferente. Está desiludido com o folhetim da Casa-Museu? Estou, isso sim, cada vez mais desinteressado, porque não procuro benesses. Repito: só faria sentido se fosse espontâneo, o que não é o caso. Olhando para o seu percurso, vemos que não é um nostálgico, mas, ao olhar para o estado do Porto, sente saudades dos outros tempos? Assumo que sou muito nostálgico em relação ao Porto de antigamente. Sofro muito. A cidade tem vindo a perder cada vez mais as suas características. Até o Bolhão querem fazer desaparecer para lá criar um supermercado. É inconcebível. Tudo isto na ânsia de ganhar dinheiro. É pura gulodice. Sou do tempo dos pequenos comerciantes que se espalhavam pela cidade e as senhoras iam de loja em loja escolher tecidos. A Agustina dizia que essa proximidade substituia o psicólogo ou o padre, pois dava segurança psicológica. Agora, está tudo concentrado em grandes superfícies com ar viciado. Compras, cinema, refeições… tudo é feito lá. A vida decorre toda ali, tornando-se artificial. Com isto, a Baixa fica cada vez mais desertificada. Pensa muito no passado? A melancolia que por vezes me assalta faz-me pensar muito no passado. Recordo-me, por exemplo, da última reunião de família que fizemos. Só do lado do meu pai estavam 75 primos direitos! Pois bem: hoje, não tenho um amigo daquele tempo. Desapareceu tudo. Toda a gente se perde. Com a cidade também acontece isso. Para a gente nova, que nunca conheceu outro tempo, tudo isto é impensável. Lembro-me que a cidade festejava cada novo prédio que se fazia, tão raro era. Hoje, não há um cinema. Um só. Tudo isto acontece na terra que acolheu a primeira exibição cinematográfica em Portugal, um ano depois da invenção dos irmãos Lumière, com o filme sobre a saída do pessoal operário da Camisaria Confiança . Não há muitas coisas que saiba, mas há uma acerca da qual tenho a certeza: a juventude é o melhor período da nossa vida. É aí que as nossas convicções são mais fortes e estamos dispostos a defendê-las contra tudo e contra todos. As certezas de ontem transformaram-se nas dúvidas de hoje. A perda dos que nos são próximos é mesmo o pior que a passagem dos anos traz? Nós somos um bicho sentimental. Além de perdermos esses amigos, nós próprios perdemos a juventude, um momento único. Só nos apercebemos de quão felizes fomos quando esses momentos passam e a juventude também já pertence ao passado. Afirmou que, hoje, as suas dúvidas são superiores às certezas. Não acha, no entanto, que a experiência nos torna mais confiantes e seguros? A experiência que tenho é do tempo da experiência. Vejamos um exemplo: compramos um computador e, mal tivemos ainda tempo de trabalhar com ele, quando já um novo modelo entra no mercado. Para mim, esse problema nem se põe, porque não sei trabalhar com computadores, nem quero. A minha ambição é trabalhar da forma mais simples possível. O que me importa são as ideias e a sua transposição. Em suma, a sabedoria deriva da experiência e, como esta já não existe, não há sabedoria. Ao fim de tantos anos e tantos filmes, a rodagem agora é quase mecânica ou o processo criativo é sempre árduo? É a diferença entre o artesanato e a indústria. Esta cria um modelo e repete-o mil vezes. Já o artesanato nunca se repete. Mesmo quando é igual, há diferenças. É nesta categoria que vejo o cinema enquanto expressão artística. Com as características actuais do mercado cinematográfico… Não gosto da palavra "mercado". Indústria cinematográfica. Não há indústria cinematográfica. Essa é a da repetição, que faz as mesmas telenovelas vezes sem conta. Os filmes de arte não se repetem. Como disse: são uma característica do artesanato. Uma coisa é a expressão, que faz parte da arte, seja literatura, teatro, etc, outra é a indústria. Para mim, indústria é a dos laboratórios, das películas, dos vídeos. Isso é técnica, ciência; outra coisa bem distinta é a arte. No entanto, a técnica pode ajudar a arte. Para os pintores, a indústria faz as telas e as tintas, mas não pinta. O que pinta é a expressão e isso não é indústria, nem tem por fim ganhar dinheiro. Isso é deturpação. Que nome dá, então, às grandes produções de Hollywood? Acabam por ser indústria e por isso mesmo é que são maus. O próprio Francis Ford Coppola escreveu recentemente contra isso, opondo-se aos filmes que nem dão tempo para pensar. Já conseguiu que o Ministério da Cultura prolongasse o apoio aos seus filmes para lá da data prevista, ou seja, os 100 anos? Estou certo de que o ministério irá apoiar-me e aos demais. Mas fazer filmes para ganhar dinheiro é deturpar a arte. Explorar um actor ou uma vedeta até ao fim, como foi o caso da Marilyn Monroe, parece-me algo obsceno. Depois, há outro problema: essa indústria produz muito lixo e, com tanto lixo atómico, não sabe, depois, onde há-de colocá-lo. Confirma que "O estranho caso de Angélica" vai ser o próximo filme? Não vai ser, é. Não tenho é garantias de que vai ser concretizado. Aguardo pela ajuda do ministério, como tem acontecido. O apoio do Estado garante apenas metade da verba. A restante procuro angariá-la. Estou confiante. Quando se faz um filme, põe-se em movimento uma equipa completa, ou seja, dá-se trabalho a muita gente, além dos laboratórios. Ainda hoje se tiram cópias do "Douro, faina fluvial", feito em 1931! A verdade é que oEstado ganha dinheiro com os filmes que apoia, até pelos impostos que cobra. E ganha nomeada também: os filmes correm Mundo e dão nomeada ao país. Custa-lhe muito esse trabalho burocrático? Acho horrível! Se fosse milionário, fazia o que queria. Mas nunca fui rico. Mesmo quando fiz filmes sozinho, em cinco ocasiões, nunca perdi dinheiro. Pelo menos, cobria as despesas. Agora, com o actual sistema de distribuição, o controlo do filme foge às nossas mãos. Veja-se o que acontece com a poderosa Lusomundo… Tem más relações com essa empresa? Eu não! Eles é que têm más relações comigo. Muito más mesmo… Com tantos prémios já recebidos, quase só lhe falta o Oscar de consagração. Não fale nisso, porque é fatal. Hollywood premeia, em geral, filmes comerciais. Para mim, é muito mais importante ter recebido o Prémio Kurosawa, em São Francisco, por exemplo. Não percebo essa obsessão generalizada com o Oscar. Quando há a entrega desses prémios, todos os jornais do Mundo publicam o assunto na primeira página com destaque, mas se o prémio for italiano ou francês não merece mais do que umas linhas no interior do jornal. (exaltado) Por que é que os jornalistas enaltecem estupidamente um prémio e esquecem todos os outros?2008-12-11
foto Bruno Simões Castanheira/JN Falar com Manoel de Oliveira equivale a entrar num tempo que, sendo o nosso, é também imemorial
quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009
"Tributos deixam-me comovido"
Manoel de Oliveira confessa-se profundamente sensibilizadocom a dimensão internacional das comemorações do seu centenário
SÉRGIO ALMEIDA
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CULTURA
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