- Ó Zé! - afligiu-se Maria, quando percebeu estar na última fila de uma sala de aulas, cheia de alunos enfiados nos trajos universitários da época, quais vestes eclesiásticas: o cabeção e a batina toda abotoada, sobre um calção, meias e sapatos pretos. Zé fez-lhe sinal para que se calasse e apontou-lhe com o dedo o jovem Eça, sentado logo ali, bem perto deles. Este sorriu e tranquilizou-os:
- Aqui, nas últimas filas, ninguém dá por vocês. Nem sequer, por mim! Aproveito para ler o que gosto: romances e poesia francesa, ou traduções em francês de autores alemães. Mais do que aprender o Direito, que decoro maçudamente a partir desta horrível coisa a que chamamos sebenta, devoro todos os livros dos meus autores preferidos. O ensino destes ajanotados e sórdidos senhores é bolorento, rotineiro e nada mais faz do que dominar pelo terror o pobre académico encolhido na sua batina.
Diante do olhar de Zé e Maria, as aulas sucederam-se a um ritmo alucinante, com o tempo desfolhando páginas do calendário; e as leituras atentas, sempre variadas do Eça-rapaz sentado na última fila, sucediam-se ao mesmo ritmo: Victor Hugo, Musset, Baudelaire, Zola, Goethe, Heine, Hegel, etc, etc.
Por vezes, estas imagens eram intercaladas com outras que, como flashes fotográficos, mostravam grande agitação, nas ruas ou na Universidade, traduzida em manifestações ou reuniões de estudantes a protestar contra regras disciplinares severas, até absurdas, impostas pelas autoridades académicas. O próprio reitor passeava a cavalo, pela cidade, vigiando o comportamento dos estudantes. Muitas vezes, estes eram encarcerados na prisão académica por transgressão aos estatutos impostos. O jovem Eça surgia, aqui e ali, tomando parte nos protestos; no entanto, era mais frequente vê-lo na última fila das aulas, em leituras intermináveis e atentas.
- Reparaste, Maria - exclamou Zé, quando de novo se viram nas escadas da Sé Velha - Ele estava na última fila, como nós. Foi isso que o Dr. Coelho nos quis dizer. Afinal, ele também não gostava de ir à escola! Realmente, para que é que nos serve?
- Ei! Menino! - disse o Eça-fantasma - Não te precipites ou ainda te reconhecerás, retratado por inteiro, nos meus livros, fazendo parte da choldra.
- Segundo o Dr. Coelho, foste um observador crítico da sociedade do teu tempo - lembrou Maria. - Percebo agora muitas afirmações feitas em "O Francesismo".
- Algumas são válidas para nós, quando, à semelhança do que tinhas de fazer com a sebenta, ainda nos mandam decorar coisas sem sentido - justificou-se Zé.
- Pois então aprende a não confundir tudo ou virás a pertencer à cambada de balofos inúteis e ignorantes estúpidos, para quem toda a criação intelectual é daninha. Sobretudo, não sejas preguiçoso e não te desculpes, alegando que o que ensinam é aborrecido ou os professores são maus. Se para mim a Universidade foi uma desilusão, negra e dura, pesando sobre as almas, não desisti, nem me dei por vencido; pelo contrário! A curiosidade de saber sempre mais salvou-me; mas constatei, já velho, que desperdicei muita coisa. Mesmo a literatura portuguesa. Enfim, foram tempos de rapaz e fiz demasiadas noitadas de pândega, copos e loucura. Já o sol raiava e ainda me encontrava, com outros colegas de estúrdia, em grandes passeios pelas margens do Mondego ou pelas ruas de Coimbra. Às vezes, mascarados de poetas, coroa de louros na cabeça, cantávamos à lua... Já era eu crescidinho, quando descobri que o mel existia na realidade; julgava que era apenas um mero ideal usado pelos poetas!...
- Não acredito! - riu-se Zé.
- Pois é verdade. E foi um outro grande escritor português que mo deu a conhecer, no Minho. Quase que aposto que nunca ouviram falar dele: Camilo Castelo Branco.
- Por acaso já, em minha casa - disse Maria, orgulhosa. - Mas ainda não li nada dele.
- Amigos, aprendam comigo a não recair nos meus erros; formem e cultivem a vossa inteligência com fortes e lentas leituras; tudo o que se deixa de estudar a tempo e horas custa muito a aprender já velho. A aprendizagem deve ser feita nas idades próprias... Felizmente, tive alguns mestres ao longo da vida; além de Joaquim Ramalho e do seu filho, Zé Ramalho Ortigão, que já conheceram, vão ver outros. Escancaremos as portas que cada mestre vai indicando. Não foi um mestre, o professor Coelho, que vos trouxe à porta desta aventura? Pois vamos continuá-la!
- E estamos longe do final, felizmente - lembrou Zé.- Ainda nos faltam chaves...
- E sem chaves, nada feito! Venham! Vou mostrar-lhes como em Coimbra procurei relacionar-me com o mundo. Fui actor no Teatro Académico. E tinha talento...
E, sem mais, Zé Maria começou a declamar poemas de Baudelaire e a representar vários personagens dos seus autores preferidos: Victor Hugo, Shakespeare, Balzac. Os gestos, a expressão do corpo ora provocavam gargalhadas ora a observação atenta de Maria e Zé. E como já o tinham feito uma vez, aplaudiram entusiasmados. Concluída a representação, Eça declarou:
- Tiveram o raro privilégio de assistir a algo que só executava diante dos meus amigos mais íntimos. Mas no Teatro Académico, representei para o público. Aí conheci o escritor Teófilo Braga; foi ele quem me abriu as portas do mundo intelectual e literário.
A conversa prosseguiu pelas ruas de Coimbra até pararem diante de um Teatro.
- Adeus! Vou desaparecer, como de costume, para dar lugar a mim-mesmo-enquanto-rapaz. Irão ver o que me aconteceu na estreia da peça "Os Amigos Íntimos". Tinha então os meus dezoito anos.
Na sala de espectáculo, Maria e Zé riram francamente com o desempenho dele e, sobretudo quando o viram em dificuldades para pronunciar a palavra "solidariedade". Desenvencilhou-se, cantando-a e destacando cada sílaba como se fosse uma escala musical. Era notório e contagioso o seu divertimento no palco. Notório era também como, no jogo cénico de se desmultiplicar em vários personagens, se desinibia. De facto, é a partir desta altura, com cerca de dezoito anos, que Zé e Maria o vão ver, num torvelinho de imagens, mudar de comportamento. Do Eça solitário e reservado na última fila da sala de aulas, surge o Eça sempre rodeado de amigos que lhe irrompiam pelo quarto, enchiam os restaurantes e cafés de Coimbra, em bandos de paródia e fartas comezainas, bem regadas de vinho. No entanto, influenciados pelas correntes de pensamento que povoavam a época dourada da boémia coimbrã, com estas pândegas, os jovens estudantes alternavam vivas discussões sobre Arte e Literatura, nas residências estudantis ou em passeios intermináveis à luz do luar. Viviam-se então, o romantismo, o classicismo, o paganismo, o panteísmo, o satanismo, o positivismo, o evolucionismo, o socialismo e tantos mais ismos.
Eça ia absorvendo tudo, caoticamente, ardentemente: "Cada manhã trazia a sua revelação, como um sol que fosse novo. Era Michelet que surgia, e Hegel e Vico e Proudhon; e Hugo, tornado profeta e justiceiro de reis; e Balzac, com o seu mundo perverso e lânguido; e Goethe, vasto como o universo; e Poe, e Heine e creio que já Darwin e tantos outros... Por cima dos Pirinéus moralmente arrasados... adoptávamos o culto de Garibaldi e da Itália redimida, a violenta compaixão da Polónia retalhada, o amor à Irlanda... pisada pelo saxónico... Ainda recordo o meu deslumbramento quando descobri essa imensa novidade - a Bíblia! Mas a nossa descoberta suprema foi a da Humanidade. ...não houve moço que não planeasse um grande poema para imortalizar a Humanidade..."
- Foi nesta altura que começaste a escrever? - perguntou Maria, interrompendo-o.
- Não! Isto que ouviste, escrevi uns trinta anos depois. Tudo se baralhava na minha mente, o desejo criativo irrompia, irresistível, mas indefinido ainda. Quereria transformar em pintura, em música tudo isso? Ou em poesia? Sempre gostei de fazer versos! Nunca fui muito longe com eles... mas enfim! - e declamou: - "Com um intenso poder de idealização, revestíamos todos os entes, os mais triviais, de beleza ou de grandeza, de poesia ou de terror, no desejo inconsciente de que a realidade correspondesse ao nosso sonho".
- Maria, vês uma sombra? - segredou Zé.
- Tens razão! Parece alguém que nos espera. Terá uma chave para nos dar?
- Porque estão a falar tão baixinho? - perguntou Eça.
- É que, no meio de tudo o que vimos, de tanta borga e... tortilha...a que assistimos...
- Tertúlia, Zé! T-e-r-t-ú-l-i-a - riu-se Eça - É o que nós chamávamos aos nossos encontros de discussão de ideias... Mas, diz-me: o que te inquieta?
- Está ali alguém! Parece esperar por... - Zé não teve tempo de prosseguir; Eça cortou-lhe a frase, apontando outra imagem:
- Pschiu! Olhem! Um encontro memorável que tive com uma pessoa que me apontou muitas portas: o socialismo, a luta de classes, Comte, o positivismo, Hegel, que sei eu! Abriu-me o caminho para a Humanidade! O homem, "o santo Antero de Quental", como lhe chamei e escrevi mais tarde: ..."numa noite macia de Abril ou Maio, atravessando lentamente com as minhas sebentas na algibeira, o Largo da Feira" - como agora, convosco - "avistei sobre as escadarias da Sé Nova, romanticamente batidas pela lua, um homem, de pé, que improvisava... um bardo dos tempos novos, despertando almas, enunciando verdades... cantava o Céu, o Infinito, os mundos que rolam carregados de humanidades, a luz suprema habitada pela ideia pura..."
Uma figura, cuja face resplandecia à luz do luar emoldurada por densa cabeleira loura arruivada e por uma barba ruiva frisada, surgiu diante deles. Eça exultava:
- Relatei esta cena num artigo editado em livro, em 1909, "Notas Contemporâneas": "O braço inspirado mergulhava nas alturas como para as revolver. A capa, apenas presa por uma ponta, rojava para trás, largamente, negra nas lajes brancas, em pregas de imagem. E, sentados nos degraus da igreja, outros homens, embuçados, sombras imóveis sobre as cantarias claras, escutavam, em silêncio e enlevo, como discípulos".
Zé e Maria quiseram aproximar-se, mas a imagem recuou, recuou, até desaparecer.
De súbito, sentiram-se transportar para um outro espaço, já não iluminado pela lua, mas por um sol fraco a tentar romper um véu de nevoeiro, estranho e irreal. Dois vultos, envoltos em luz e sombra, combatiam, espada em punho, com violência.
- É o Ramalho Ortigão e o Antero de Quental! - reconheceu-os Maria.
- Um duelo! - entusiasmou-se Zé. - Olha, Ramalho caiu ferido no pulso. Vamos ter com eles! Talvez fosse de Antero a sombra que vimos. A 2ª chave...
- Cuidado! - gritou Maria, vendo a espada que Antero arremessou para longe. Passou a milímetros da cabeça de Zé, empurrado a tempo pela amiga.
Os jovens viram a espada ir de encontro ao peito de Eça. Correram para ele:
- A espada atingiu-te! Estás ferido?
- Qual espada? Não estive presente neste duelo. Passou-se no Porto, no início de 66. Mas tive conhecimento dele - e, no rosto do fantasma, viram uma lágrima viva a cair.
- Foi um episódio lamentável que muito me magoou. Apesar das coisas tresloucadas que fiz na minha juventude, sempre foram coisas sem violência que posso considerar inocentes. Mas isto... Além de ter sido entre dois amigos que muito prezei e só por causa de uma polémica em que se esgadanharam duas literaturas rivais...
- Foi a "Questão Coimbrã"? - perguntou Maria.
- Onde ouviste falar nisso? - perguntou Zé, espantadíssimo.
- Foi a minha avó. Mas não sei muito bem o que aconteceu...
- Perguntem depois ao vosso professor. Foi complicada e eu próprio não a vivi muito por dentro; mas ela iria reflectir-se na nossa geração de intelectuais. Não foi só esta contenda a que assistiram que me entristeceu. Foi a recordação de Antero e da violência que exerceu sobre si próprio: pôs termo à vida, nove anos antes da minha morte.
- Desculpa ter-me entusiasmado com o duelo, mas no nosso tempo há muitas imagens de violência e habituamo-nos a gostar de vê-las... - disse Zé, um pouco envergonhado.
- É pena... muita pena. Não aprendeste nada com "O Mandarim"? - Eça mudou de tom e disse: - O Antero era um homem extraordinário, um refulgente espelho de sinceridade e rectidão... heroicamente íntegro. Adorei-o por isso. Mas éramos muito diferentes. Ele era um poeta angustiado com problemas metafísicos, sem conseguir adaptar-se à vida, sem lhe encontrar o sentido. Eu revelei-me um prosador, romancista crítico e demolidor de uma sociedade cujos erros pretendi realçar até ao absurdo para assim desvendar as virtudes. Também sofri amargura e descrença, mas mantive despertos o humor e o gosto infantil pela vida. Lembro os bons momentos... de brincar com os meus filhos nos cavalinhos de roda, nas festas dos colégios...
- Nos passeios de bicicleta, no Bosque de Bolonha - rematou Zé.
- Não é então o Antero que tem outra chave do teu cofre? - atalhou Maria.
- Olhem, lá está a sombra que temos visto! - exclamou Zé. - Não a vês como nós?
- Havia muitas fantasmas em Coimbra - replicou Eça. - Venham conhecer o meu amigo João Penha. Ele vos contará o que ouvimos à porta da Sé Velha, um episódio vivido no último ano do curso. Foi no convívio com ele e com outros escritores, como Guerra Junqueiro, um pequenitates todo janota, que descobri o que iria fazer de mim.
Bruscamente, transportados de novo para a noite da Coimbra, viram-se junto de uma casa, sobranceira ao Mondego. :
- Zé! Maria! Subam! - ouviram. O jovem Eça, agora com vinte anos de idade, aguardava-os no patamar do 2º andar, onde João Penha aparecia no umbral de uma porta. De monóculo, aparentava ser mais velho do que Zé Maria.
- Outra vez a conversar com um fantasma? - perguntou.- E tem o teu nome? Curioso!
- Não é um. São dois! Dois moços que, calcula tu, menino, depois de eu morrer, vão querer conhecer-me! - respondeu Eça, numa risada.
O outro, divertido com mais esta excentricidade do amigo, escancarou a porta, deixando-o entrar com os seus fantasmas: - Esqueceste-te de verificar se entraste com o pé direito - disse-lhe, vendo-o hesitar, voltar atrás e entrar de novo.
- Com essas coisas não se brinca! - respondeu Eça, muito sério.
- Ao contrário do que quase toda a gente supõe - riu-se João Penha - és um visionário, romântico e sentimental, tendo um horror profundo por tudo quanto é prosaico, isto é, pela vida comum e real como ela é. Aplica-se a ti o mesmo que ao escritor de mistério e do fantástico, Edgar Allan Poe: incapaz de encarar a vida, edificas castelos de sonho e fantasia... Temendo a morte, vives com ela a todo o momento. A febre de viver, eis tudo o que conheces da vida... - E indiferente à presença dos dois jovens companheiros de Eça, que pareceu não ver ou efectivamente não viu, convidou:
- Vieste mesmo a tempo. Estava a acabar de me arranjar. Estou cheio de fome. Vamos banquetear-nos no "Castela" e depois... para a estúrdia, como de costume.
Num gesto elegante, pôs uma flor na lapela e, depois de se ver ao espelho, deu-se por satisfeito. Sem mais cerimónias, arrastou consigo Eça, que ainda disse:
- Então... e os meus dois amigos?
- São muito novos para ir onde vamos! - disse Penha. - Eles desenvencilham-se sem ti.
Eça limitou-se a rir e a acenar a Maria e a Zé com um "até à vista!"
- Bonito! - exclamou ela. - E agora?
- Bem... pelo menos o amigo dele não nos pôs fora de acção. Vamos em busca de pistas, como fizemos em casa do Zé Maria.
- Tens razão. Disse-nos que o João Penha nos contaria uma história e afinal... Será que também é escritor? Eles já são tantos!
- Olha! Há, nestas estantes, milhares de livros: Dante, Ariosto, Shakespeare, Balzac, Victor Hugo. O que eles liam! Tanta coisa... Começo a sentir-me envergonhado.
- Na secretária, Zé! Manuscritos! Mas não há nada de Eça de Queiroz. Têm, na margem, notas escritas. Parecem ser correcções de outra pessoa... Já sei! Aqui estão folhas com a mesma letra das anotações e assinadas por João Penha. "Rimas", "Por Montes e Vales"... João Penha também é escritor.
- Olha, Maria, cá está! Este, "Por Montes e Vales", conta que, uma noite, ao passar junto à porta da Sé Velha, Eça disse, em tom declamado - e Zé começou a ler: "Foi por esta porta que D. Sancho I... - De súbito interrompeu a frase e colou o ouvido à porta. Escutou um pouco e vimos que, com a mão trémula, nos chamava. A lua iluminava de soslaio a massa negra do templo e na torre sinistra uma coruja piava. Nesse momento sentimos pela espinha dorsal o arrepio das coisas sobrenaturais. Com o passo hesitante, abeirámo-nos da porta fatal e, colocando aí, a nosso turno, os ouvidos, sentimo-nos presos de um mistério que nos fez humedecer as frontes com os calafrios do supremo horror. Ouviam-se lá dentro uns passos precipitados que pareciam de alguém que fugia sobre um tabuado oco. Esses passos ora se afastavam, ora se aproximavam, e, quando o ente perseguido passava junto à porta, ouvia-se como que um arfar de um peito ansiado..."
- Que horror, Zé. Mete medo!
- É extraordinário! Espera, ainda não acabou. Diz ainda que o próprio João Penha gritou - E Zé, em tom soturno, continuou: "É Satanás que persegue uma jovem defunta! Não há ninguém que a salve! Só Deus! Fujamos!... ...Eça, trémulo e enfiado, parou: - Voltemos!... Tentemos salvar aquela pobre criança..." Olha, Maria, mais adiante Eça inventa uma história: " E quem será ela? Talvez a D. Mécia Fufes de Anaia que, em 1371, morreu de amor no mosteiro de Santa Clara, e que seu pai..."
- Cala-te! - murmurou Maria. - Está alguém no corredor! A sombra...
- A que temos visto? Andará a perseguir-nos? É melhor escondermo-nos!
De um pulo, enfiaram-se debaixo da secretária. Atentos, ouviram, a porta da sala ranger. No contra-luz do candeeiro, viram uma sombra aproximar-se da secretária. Escutaram um ruído de papéis sobre as suas cabeças. Por fim, viram a sombra afastar-se. A porta rangeu de novo e reinou o silêncio. Receosos, esperaram uns bons minutos sem sequer respirar. Lentamente, Zé pôs a cabeça de fora e disse:
- Vem, Maria. Levemos estas folhas do Penha e tentemos descobrir quem esteve aqui.
Cautelosos, saíram da sala. Ao fundo do corredor, uma porta fechava-se. Correram para lá. De ouvido à escuta, perceberam que alguém descia a escada. Colados à parede, seguiram-no. Já na rua, um vulto, envolto numa capa, afastava-se.
Zé, enchendo-se de coragem, gritou:
- Quem está aí? Quem és?
Ouviram-no responder à medida que se distanciava:
- Nã ã oo se e e i aa iiin d aa... Ta a a al vee ez Jo ããã ooo d aa E e e e g aa aa...
Nada mais se ouviu. Maria e Zé ainda correram até à esquina mais próxima. Um lampião alumiava a rua deserta. Foi então que um som metálico de qualquer coisa a cair no chão os sobressaltou: à luz mortiça do candeeiro, viram uma chave. Pequena, igual à outra que Zé tinha guardada. Maria apanhou-a. O amigo olhava, desconcertado, ora para a chave, ora para as folhas de papel que trouxera consigo de casa de Penha:
- Maria, estas folhas não estavam lá antes! E foi de dentro delas que caiu a chave. Foi o homem-sombra que as lá pôs. E... vê!
Na primeira página, estava escrito: "MEMÓRIAS DE UM ÁTOMO".
Parecendo um subtítulo, numa letra talvez diferente, embora fosse difícil de o afirmar com precisão, lia-se: "Uma autobiografia?"
- O resto das páginas... Estão todas em branco! - exclamou Zé, desconsolado.
- Este subtítulo... É a letra do Eça! E o título? Também será? - interrogou-se Maria.
- E o homem-sombra? Qual foi o nome que disse? João?! Eça?!
- João? Só se fosse o João Penha... Mas, Eça? Ou era Ega? Não tenho a certeza. Mas ele próprio também parecia não ter. Que estranho! E agora?
Uma grande algazarra interrompeu-os. Um grupo de jovens subia a rua, entoando dolentes baladas intercaladas com declamações poéticas em que identificaram a voz de Eça. Ao lado dele, vinha João Penha com um ramo de violetas na mão. Num gesto ritual, deu-as a cheirar a Zé Maria. Com um salto repentino para trás, este gritou:
- Isso não se faz!!! Isso não se faz!!! - De uma palidez excessiva, todo ele tremia e balbuciava, à beira de desfalecer:
-Colheste as flores no cemitério. Estão impregnadas de átomos dos corpos dos mortos!
Maria e Zé entreolharam-se e exclamaram: - Memórias de um átomo!
- Ó Zé, recordas-te que ele disse que possuíamos os átomos dele...? E por isso decidiu dar-nos as chaves do cofre com a sua biografia? Seremos a reencarnação dele? Tê-lo-emos feito reviver ou seremos nós a lembrar-nos...? Sinto conhecê-lo cada vez mais...
- Onde é que aprendeste essas coisas? Estás a ficar maluca! Lembra-te de que ainda nos falta saber muito sobre a vida dele. Até esta altura, ainda nem começou a escrever. Parece-me que o facto de termos lido algumas das suas obras é que lhe deu vida.
- Talvez. Quem sabe!...
- Talvez. Quem sabe!... - ouviram. - "Place à l'atome saint! Place au rayonnement de l'âme universelle!" Ou traduzindo, mais ou menos, o que disse Victor Hugo, "Lugar ao santo átomo! Lugar ao irradiar da alma universal!" - era Eça que estava, de novo, junto deles, na sua forma fantasmagórica. Tudo à volta se esfumara. E ele prosseguiu:
- Ao contrário do que dizes, Zé, ainda em Coimbra, em Março de 1866, comecei a escrever. Sobre o amor e a morte, claro! Chamei-lhes "Notas Marginais" e foram editadas na "Gazeta de Portugal", em Lisboa. Quem sabe se não partilhamos todos a mesma alma cósmica, ou, melhor ainda, se há uma alma diferente no corpo gerado pela Natureza, seja homem, árvore, gota de água ou grão de terra. E esse "corpo revive e dissipa-se na matéria enorme", como disse num dos folhetins publicados de Outubro desse ano até Dezembro do ano seguinte, na "Gazeta". Num, chamado "Memórias de uma Forca", cito "As Memórias de um Átomo", tema muito atraente então e a que voltei mais tarde. A sombra que encontraram vai começar a revelar-se-vos. Como a mim. É a sombra dos meus escritos que irá sendo clarificada nos personagens que inventei. Ainda temos muito que andar. A evolução que fiz... Cuidado! - gritou.
Uma diligência aproximava-se a galope.
domingo, 27 de abril de 2008
A segunda chave - «Notas Marginais» no Mondêgo
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EÇA DE QUEIROZ,
IMAGENS,
José Maria Eça de Queiroz
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