Um barco do Nilo passava com os seus remadores e os dois jovens sentiram-se transportados rio abaixo. Atravessaram o estreito de Gibraltar e... deram por eles, em plena Lisboa, na Rua de S. Pedro de Alcântara.
Mal refeitos do susto e da brusquidão dos acontecimentos, foram surpreendidos de novo pela figura de um jovem estranhamente ajanotado que se aproximava. Vestia uma longa sobrecasaca, com a botoeira ornada por um enorme e colorido ramo de flores. Um plastrão imenso era coroado por um colarinho alto. Nos punhos, salientavam-se uns imponentes botões com correntes de ouro e, nas mãos, umas luvas cor de palha. Nas pernas, calças claras, arregaçadas alto, mostravam as meias de seda preta com grandes pintas amarelas; calçava sapatos pretos, envernizados e pontiagudos. Para culminar tudo isto, tinha, no olho direito, um monóculo que o andar fazia cair constantemente e, na cabeça, um chapéu alto de pêlo de seda brilhante.
- Zé Maria! - exclamaram. Porém, este, sem lhes dar atenção, entrou no prédio nº 111.
- Além de nos ter deixado, indecentemente, no deserto, vem nesta figura! - disse Zé.
- Não nos ligou nenhuma! Entramos também ou...?
- Espera, deixou cair uma coisa no chão - Zé correu a apanhar uma folha de um jornal: - A Revolução de Setembro, 13 de Abril, 1870. Traz uma história dele: "A Morte de Jesus". Claro, veio de Jerusalém. Mas... A data está a apagar-se!!! Agora é 1871!
- Zé! - gritou Maria - Vem aí alguém! A sombra, outra vez?... Não é Fradique. É um padre e bem nítido! Pelo sim pelo não, escondamos-nos.
- Meninos, perderam-se? - interrogou-os o sacerdote, antes de terem tido tempo de se esconder.- Estão com ar tão aflito!... O que procuram?
- Um homem. José Maria Eça de Queiroz. Conhece-o? - atreveu-se Zé a perguntar.
- Se conheço!!! E é meu dever avisá-los, como cristão, como padre, que ele é um desavergonhado, um ateu, um herege, um... um...
- Por acaso não tem aí uma chave para nos dar? - atalhou Maria que, ao vê-lo tão furioso, tentou distraí-lo com outra pergunta.
- Não tenho! Mesmo que a tivesse, não vo-la daria. Tão moços e a lidar com gente dessa! Devia ser excomungado, banido! O que ele está a tentar fazer de mim. Eu, o padre Amaro, pároco de Leiria! Santo Deus!... Como esse senhor fala de mim! E nem dá uma oportunidade de me redimir. Antes de dizer tudo o que tem a dizer, e de se decidir definitivamente, podia consultar-me. Mesmo que ele emende ou venha a emendar ou a acrescentar trezentas coisas, fico sempre mal visto. Eu e os outros como eu. Odeia-nos! E à santa religião... Um ateu, é o que ele é! - E, enquanto se afastava agastadíssimo, resmungava frases ininteligíveis.
- Um padre de Leiria? Ora esta, Zé! Porquê Leiria? Conhece o Zé Maria e diz coisas tão estranhas sobre ele. O que fala ou emenda ou ... sei lá o quê!
- Vamos pensar. O que temos de pistas? O jornal que mudou de 1870 para 1871. Deixa ver. Cá está! - Zé entusiasmou-se: - Casino Lisbonense! Lembras-te do Fradique dizer que Eça regressara ao Cenáculo e às "conferências do casino"? Segundo este jornal, o Antero propôs criar "as conferências democráticas... Uma tribuna para a transformação social, moral e política dos povos" etc, etc, "ligar Portugal ao movimento moderno... aos factos que nos rodeiam na Europa... Agitar na opinião pública as grandes questões da Filosofia e da Ciência". Casino Lisbonense! Vamos lá!
- E Leiria? Mas, parece que tens razão, Zé. Repara: mudou o cenário, enquanto conversávamos. Estamos no Chiado e ali fica o Casino Lisbonense! Anuncia uma conferência, "O Realismo como nova expressão da Arte", feita por Eça de Queiroz.
Quando se predispunham a entrar no Casino, alguém os deteve. Deram um pulo, mas logo verificaram ser Zé Maria:
- Deixem o tema da conferência para estudar mais tarde... Meninos, estão a sair-se muito bem. São merecedores...
- Pois olha que tu não! Pregaste-nos uma partida - censurou Maria.
- Ainda por cima, vimos-te naquela figura, de meias às pintas, e tu nem nos ligaste! Onde foste? O que queria dizer aquele padre que encontrámos? Onde vais...?
- Pschiu! Eu avisei de que isto seria um desafio. E até agora, estou muito contente por ter confiado em vocês. Mas vamos por partes: depois da minha viagem ao Oriente, também me apeteceu experimentar ser um janota, como aqueles senhores que encheram os hotéis de luxo das mil e uma noites árabes... Sempre gostei muito de vestir bem. E excentricidades eram comigo!.... - disse, soltando a sua alegre gargalhada - Quando regressei, em 70, recomecei a frequentar a nova casa de Batalha Reis, a S. Pedro de Alcântara, onde me viram nessa figura; ele e Antero passaram a reunir aí o Cenáculo, enriquecido, entretanto, com novos elementos: o nosso historiador e meu grande amigo para o resto da vida, Oliveira Martins, por exemplo. E sabem quem mais? O Zé Ramalho Ortigão. E juntando o crítico com espírito de artista que este era, com o artista de espírito crítico que eu fui, escrevemos juntos crónicas sobre a vida portuguesa: As Farpas, "jornal de luta, mordente, revolucionário, a pilhéria, a ironia, o ferro em brasa, o chicote", como eu descrevi, numa carta, ao meu amigo João Penha.
- Outro janota, como tu dizes - riu-se Maria.
- De arromba! Mas, continuando: Ramalho e eu imaginámos outra obra para abalar a apatia chinesa dos lisboetas: "O Mistério da Estrada de Sintra". Íamos historiando um misterioso rapto, no Diário de Notícias, como se fosse um facto verdadeiro. E escrevemos com estilo de livro policial. Sublime! Até desmascararmos a brincadeira...
- E Leiria? E o padre?
- Ah! Leiria... Pois bem: resolvi seguir a carreira diplomática. Aí têm o que acabei por fazer até ao dia em que me viram pela primeira vez, ou seja, o último da minha vida terrena! Como advogado, fui uma miséria, já sabem... Ora para ser diplomata, convinha ter um lugar na administração e fui nomeado, em Julho de 70, administrador do concelho de Leiria. A páginas tantas, no exacto sentido do termo, dei por mim a fazer "O Mistério da Estrada de Sintra", "As Farpas" e... não só! Absorvendo os costumes risonhos e risíveis e os tipos curiosos das gentes de uma cidade da província, comecei a redigir "O Crime do Padre Amaro".
- Foi então o Pe. Amaro que nós encontrámos. Uma das concretizações da nossa, da tua sombra de Coimbra - compreendeu Maria. - Um personagem teu.
- Muito zangado! Queixou-se que escrevias, rescrevias sempre para dizer mal dele e aconselhou a não nos darmos contigo - disse Zé.- Afirma que o odeias e à religião.
- Quanto à reescrita, é certo. Levei anos a refazer o romance. Foi publicado na Revista Ocidental, de Oliveira Martins, em 75, contra a minha vontade, depois em livro, em 76, e, de novo, em 80. Sempre emendado e re-emendado. Até acrescentei personagens! À medida que evoluía, as minhas obras acompanhavam-me... Antero, que não gostou da primeira versão, numa carta que me enviou, concordou com as minhas emendas: "Não é realismo nem naturalismo, é a verdade, a natureza humana... aquela pobre gente não merece ódio, nem desprezo... é uma boa gente... vítimas da confusão moral do meio em que nasceram...sem entenderem mais... sem a menor transcendência... A Arte é sempre serena, tolerante, magnânima..." Não ataco a religião ou os padres, mas a hipocrisia; aquilo é apenas uma intriga de clérigos e de beatas tramada e murmurada à sombra de uma velha Sé de província portuguesa...
- O Amaro queixou-se de que não lhe deste oportunidade de se modificar - disse Maria.
- Claro! O objectivo neste tipo de romances é mostrar, até às últimas consequências, aonde nos pode levar uma sociedade ignorante e medrosa.
- Então ainda vamos para Leiria? E as conferências?- perguntou Zé.
- Quanto a Leiria, fartei-me! Uma terra melancólica, sem um livro, sem um dito, sem uma conversa, um paradoxo, uma teoria, um satanismo - cercado de regedores e devorado por candidatos a políticos... Por minha parte, só devorava jornais para ler as notícias da guerra franco-prussiana, o desastre e abdicação de Napoleão III... Um palhaço, coitado! Em 71, a derrota francesa veio propiciar a instalação de um estado revolucionário em Paris, a Comuna. Os socialistas, apoiados nos operários, opuseram-se à Assembleia Nacional. Durou pouco mais de dois meses, de Março a Maio, mas foi uma época de euforia revolucionária... Eu voltei para Lisboa em Junho desse ano. Quanto à Conferências, calculem, foram proibidas! O ministro do Reino, chefe do governo, Marquês de Ávila e Bolama, alegou que atacávamos a religião e o Estado! Devia ter medo que a revolução cá chegasse...
- Então, a democracia?
- Pois, pois... Saltaram por cima da Carta Constitucional. Preferiam ver no Casino as mulheres despidas cantando cantigas obscenas e imundas, em vez do estudo, o pensamento, a crítica, a história, a literatura, considerados incompatíveis com a moral!
- Deram-te pano para mangas para " As Farpas" - observou Zé.
- O que se segue agora? A tua carreira diplomática? Os teus livros? - perguntou Maria.
- Já lá vamos! Entretanto, os meus amigos do Cenáculo enveredaram pela agitação política, revolucionária. Eu não. Durante esta fase, em que abandonei a arte pela arte e passei a empenhar-me na revolução cultural, dei prioridade à literatura com uma missão social e pedagógica; mas não era um revolucionário, como já vos disse, aliás. Por isso...
- Olha! - exclamaram os dois jovens - Santo Ovídio, no Porto! Voltaste para aqui?
- Por uns tempos, com Luís de Rezende...Pobre amigo! Estava a passar dificuldades e começou a meter-se na bebida... Deixou-se levar... Depois soube que tinha morrido, estava eu em Inglaterra, em 1875...
- Vamos para Inglaterra agora!? - perguntou Zé, vendo desaparecer a quinta de Santo Ovídio. - Estes saltos não acabam...
- Zé! Estamos em Lisboa, na Calçada dos Caetanos.
- Deixa-me ver o calendário. Olha, Maria, 1872! Mas... o Zé Maria?!?
- Desapareceu? Ah, não! Está ali. Vivo e novo outra vez. Quem está com ele?
- É melhor não nos mostrarmos - disse Zé, vendo-o com um estranho em animada conversa.
- João Burnay, meu amigo e vizinho, ora viva! - ouviram. Ramalho Ortigão saía de casa e dirigia-se aos dois conversadores - Vai dar ao Zé Maria mais um banho...?
- Um banho de vida prática - riram-se Maria e Zé recordados das palavras de Eça a Batalha Reis, tempos atrás. E continuaram a escutar Ramalho Ortigão:
- Sabe que ele disse, uma vez, que na terra da sua infância se plantavam saladas? E enfureceu o escritor Alexandre Herculano quando, numa novela, colocou Vila Real no Minho! Tanta leitura que fez, tanta aprendizagem que não fez na altura certa! Como poderia ser alguém se não se esforçasse a sério?
- É fácil cedermos à tentação de não nos esforçarmos... Tomo nota - reagiu Zé.
- Deixa-te de conversas e escuta-os! - sussurrou Maria. - Vê se percebes para onde devemos ir. Estamos sem pistas. O Zé Ramalho já deu a 1ª chave; ele e os irmãos Rezende. Só não percebo porquê os Rezende... O Luís vai morrer em 75, o Manuel...
- E a sombra que nos deu a 2ª chave, embora se tenha vindo a concretizar nos personagens dele, disse-nos um nome que não sabemos qual é - lembrou Zé.
- Pois é verdade, amigo João - ouviram. Era Ramalho quem falava ainda: - Zé Maria, para além de artista e escritor, está na vida diplomática. Colocado em Havana, tem feito um bom trabalho. Felizmente, não é outro inútil burocrata, politiqueiro, conselheiro...
- Como esse que aí vem! - exclamou Eça.
Maria e Zé voltaram-se para ver quem chegava. Quando, de novo, olharam para o local onde os três amigos conversavam, já lá não estava ninguém.
- O que eles disseram foi uma pista - afirmou Zé, sem se dar por vencido - Anda! - E avançou para o homem que subia a rua: - Bom-dia, senhor...
- Conselheiro, prezado amigo. Acácio de nome. Não me reconheceis? Bom, é natural, é natural. Com os trajes que envergais, não sereis meu patrício. E tão mancebo ainda!
- Patrício?! Mancebo?! - segredou Maria, perdida de riso.
À pompa e circunstância do tom, o conselheiro Acácio aliava o gesto estudado e esforçava-se por parecer imponente. "Era alto, magro, vestido todo de preto, com o pescoço entalado num colarinho direito. O rosto aguçado no queixo ia-se alargando até à calva, vasta e polida, um pouco amolgada no alto; tingia os cabelos, que de uma orelha a outra lhe faziam colar por trás da nuca - e aquele preto lustroso dava, pelo contraste, mais brilho à calva; mas não tingia o bigode: tinha-o grisalho, farto, caído aos cantos da boca. Era muito pálido; nunca tirava as lunetas escuras. Tinha uma covinha no queixo e as orelhas grandes muito despegadas do crânio".
- Senhor Conselheiro Acácio - disse Zé, acentuando as sílabas e a esforçar-se para não se rir - V. Exa. conhece o famoso artista José Maria Eça de Queiroz?
- Ora então não havia de ter o sublime privilégio de o conhecer. Toca divinamente!
- Toca?!? Homessa, como diria a minha avó! Ele é escritor! - exclamou Maria.
- Pois, com toda a evidência! - proferiu logo o conselheiro - Eu sei perfeitamente e vós sabeis que eu sei e eu sei que vós sabeis que eu sei... Quando digo toca, quero significar com isso que a finura do seu estilo é tão musical como um cântico laudatório às virtudes pátrias e ao grande civismo dos nossos patrícios. Ainda no outro dia, veio cumprimentar Sua Excelência, o Senhor Ministro e a mim...
- Viu-o? Onde? - perguntou Zé, farto de tanta conversa.
- Creio que Sua Excelência, o Senhor Cônsul, se encontra agora a prestar os seus serviços à Pátria, em Bristol, na velha Albion, a nossa mais ancestral aliada.
- Onde??? Essa velha magistral aliada mora onde?
- Ó Zé! Ele refere-se à Inglaterra. Bristol é uma cidade da Inglaterra.
- É a nossa pista! Zé Maria e Ramalho Ortigão falaram na carreira diplomática. E o Eça disse-nos que estava em Inglaterra quando morreu o amigo Luís. Temos de ir para lá...
- Espera, Zé. A morte do amigo foi em 1875. Ainda há pouco estávamos em 72... O senhor tem a certeza que ele está nesse sítio que nos disse? - perguntou Maria a Acácio.
- Minha prezada amiga - exclamou o conselheiro, fungando um pouco de rapé - Eu nunca tenho dúvidas! E mais, afirmo que é a primeira vez que ele lá está pela segunda vez. Podeis estar certa disso, pois raramente me engano. Tenho até na minha posse dois bilhetes para ir ter com ele, à velha Álbion! Infelizmente os meus que fazeres impedem-me de sair agora desta bela cidade, a Lisboa de granito e mármore, como dizia o...
- Obrigada! - gritou Zé, tirando-lhe, rápido, os bilhetes exibidos como prova de tanta certeza. E os dois correram rua fora, ainda a ouvir os gritos do conselheiro Acácio:
- Polícia!!! Mandarei abrir um inquérito a este acto indigno! Seguirá os trâmites legais até às últimas consequências. A responsabilidade será apurada, doa a quem doer...
- Pois, pois - ria Maria, ainda a correr para se escapar ao conselheiro. - Tanto disparate! É com certeza um personagem de Eça. Imortal! Bem dizia o professor Coelho... No nosso tempo também há gente desta. Se eu escrevesse à Zé Maria...
- Um barco no Tejo! - gritou Zé, correndo à frente dela. - Vamos para Inglaterra...
- Tu acreditaste nele? Olha que não sei. Vê a data no... - Maria não acabou a frase: o amigo, depois de mostrar os bilhetes a um homem junto da escada de acesso ao paquete, subia resoluto para bordo. Tentou chamá-lo, mas ele nem a ouviu, tendo entrado no barco. E ela correu para alcançar a escada, já a ser retirada.
O navio iniciou viagem, depressa deixando Lisboa para trás. Maria foi à procura de Zé, evitando, aqui e além, esbarrar com um tripulante ou outro passageiro a bordo.
- Zé! - chamou Maria, baixinho, quando o encontrou a espreitar por uma vigia onde se via a ponte de comando. - Estás certo que vamos bem? O Ramalho falou em Havana...
- Mas o outro disse... - objectou Zé.
De súbito, os motores deixaram de se ouvir e o navio imobilizou-se.
- O que aconteceu? Parámos?! Estamos no alto mar!...
- Bem me queria parecer, Zé, que não era de fiar no conselheiro Acácio. E agora?
- Temos de entrar no posto de comando. Toca aquela sineta para ver se conseguimos distrair o homem que lá está dentro.
Maria obedeceu. Como Zé previra, o piloto saiu da cabina e eles esgueiraram-se lá para dentro. Trancaram a porta para inspeccionar a sala. A primeira coisa que viram foi um mapa marcando a rota para o porto hulheiro inglês, Newcastle-on-Tyne.
- Nada indica Bristol. Vê a data no calendário de Neuilly, Zé.
- 1878! O que se passa, Maria? Perdemos pelo menos seis anos da vida dele! Por isso o barco parou. Não é ainda altura de lá irmos. Como vamos voltar para trás?
- Olha, Zé, está ali uma chave! Mas não é igual às nossas...
- Há um cofre nesta parede. Experimenta abri-lo, Maria.
A chave entrou, ouviu-se um clique e o cofre abriu-se. Lá dentro, estava um papel escrito com a letra corredia de Eça: "Encontraram o conselheiro Acácio, está visto. Pois aprendam a não confiar na choldra! Que lhes fique de emenda. Como, porém, quero facilitar-lhes a vida, e merecem, em conluio com o vosso mestre, aqui lhes deixo uma coisa... Reconhecê-la-ão. É do vosso tempo, um avanço espectacular! No meu tempo, ainda a electricidade era quase uma promessa. O Porto, quando lá estive em 98, não me pareceu, no entanto, mais feliz ou mais alegre com a luz eléctrica. Bem queria que os avanços científicos servissem a todos e não aumentassem as diferenças. Mas avancem vocês e perdoem-me o anacronismo."
- Ana... quê?
- Anacronismo, Zé. Atribuir a uma época o que pertence a outra. O que será?
- Ali ao fundo! Uma cassete de vídeo, Maria!
Ao tirá-la, o cofre afastou-se da parede e mostrou uma TV e um leitor de vídeo.
- O que vão ver passou-se em 1872, em Cádis - ouviram, quando o vídeo começou a trabalhar. Era a voz do professor Coelho que acompanhava as imagens de uma praça e da fachada de um Hotel. - Alberto de Oliveira, também escritor e diplomata, soube desta história extraordinária, ainda antes de conhecer Eça pessoalmente. Zé Maria esteve aqui, a caminho de Havana, onde ia exercer o primeiro consulado. Agora vejam o que ele fez, quando soube não ter possibilidade de tomar banho no hotel.
O vulto esgrouviado do escritor aparecia, na recepção, de chinelos e roupão colorido, toalhas, sabonete e uma esponja enorme nas mãos. Sem mais cerimónias, saiu para a rua, atravessou a praça perante o pasmo das pessoas que por ali andavam e foi até à casa de banhos públicos situada do outro lado. Pouco depois, viram-no de regresso, na mesma figura, embora com o ar consolado de quem tomara um banho delicioso, sempre indiferente aos risos, aos ahs! e ohs! dos transeuntes.
- Que tal? Gostaram? - perguntou o professor. - Ora bem: Eça chegou a Cuba, colónia espanhola, em Dezembro de 1872. Logo se embrenhou nos problemas graves dos emigrantes chineses saídos de Macau, postos sob protecção do consulado de Portugal.
- Os desgraçados eram tratados como inferiores aos cães - ouviram dizer Zé Maria, ao mesmo tempo que as imagens, a par das paisagens luxuriantes da ilha, lhes mostravam uma multidão de miseráveis, corpos esqueléticos, rostos vincados pelo sofrimento. Explorados, mal alimentados, sovados pelos ricos e poderosos fazendeiros, dependiam de mil e um subterfúgios que lhes impedia a legalização para obter trabalho com um mínimo de condições. Barracões enormes, mais parecidos com os barracões dos campos de concentração, albergavam (aprisionavam?) milhares de chineses.
- Parecem escravos - disse Maria.
- Olha o Eça, Maria! Só escreve cartas e relatórios para o Governo português, para as autoridades locais ou para Madrid. E os livros? Terá deixado de os escrever?
- Conseguem imaginar-me, meninos? - Era a voz dele: - Durante cinco meses não fiz outra coisa. Só papelada oficial e burocracia. Logrei aliviar o sofrimento de alguns, mas foram apenas migalhas no meio de tanta desgraça. Lutava contra os interesses de gente poderosa. Odiei Havana. Longe da arte e portanto da serenidade e do contentamento, confesso que vivia com saudades do Rossio! Por fim, quando se aproximou o tempo do calor tórrido e das chuvas tropicais que me faziam muito mal à saúde, obtive férias nos Estados Unidos e Canadá. Experiência maravilhosa! Tive encontros inesquecíveis.
- Ahn! Ahn! Aqui houve coisa! Será desta que ele casa, Zé? Já tem quase trinta anos...
Mas Eça não esclareceu Maria sobre isso e continuava:
- Tive um trabalhão em convencer os zelosos funcionários alfandegários de Nova York de que as minhas gravatas eram para uso pessoal. Caramba, não levava assim tantas!
- Pois não! - riram-se os dois, ao ver na mala uma grande profusão de gravatas de seda.
- E melhor do que tudo: escrevi um conto, o que já não fazia há muito tempo: "Singularidades de uma rapariga loira".
- Uma rapariga loira... Mmm! Houve romance...
- Pschiu, Maria, deixa ouvir!
- Tem um nome giro, como vocês diriam, hem? - prosseguia Zé Maria: - Foi publicado no Diário de Notícias. Regressei a Havana em Novembro. E sabem o que recomecei? "O Crime do Pe. Amaro". De volta a Portugal, em Junho de 74, continuei-o, enquanto escrevia temas bem diferentes, para o Ministro dos Negócios Estrangeiros, sobre a emigração moderna. Entretanto pedi nova colocação. Fui então para Inglaterra.
- Bristol, finalmente! - exclamou Zé.
- A 6 de Janeiro de 75, cheguei ao foco do socialismo inglês. Era desagradável, o foco!
E contra o que esperava Zé, não era Bristol que aparecia no ecrã, mas Newcastle-on-Tyne, o porto de hulha que tinham visto no mapa ao entrarem na sala.
- Que horror! Ele tem razão - concordava Maria à medida que via a cidade descrita por Zé Maria, "de tijolo negro, meio afogada em lama, com espessa atmosfera de fumo penetrada de um frio húmido, habitada por 150.000 operários descontentes, mal pagos e azedados e por 50.000 patrões lúgubres e horrivelmente ricos".
- Olha, Maria, lá vai ele. Está mais velho! Aquela deve ser a casa onde vive. Numa cidade tão feia, até é agradável. Tem muita relva ao pé...
- Pôs-se a escrever. São cartas, muitas cartas! Algumas dirigem-se a Ramalho Ortigão. E queixa-se: "Há um ano que não converso". Já passou um ano, Zé? Olha a data! Não, passaram dois: esta carta é de 1877! Deve ser horrível, com o feitio dele... Adora as tertúlias e as conversas com os amigos. Bem diz que é "dilacerante"!
- Olha o que escreve agora: "As minhas relações são pessoas perfeitamente idiotas que nunca leram um livro, que não suspeitam sequer que eu o faça e que pensam que o único produto da inteligência humana é o Times". Extraordinário!
- Lá está outra vez a aperfeiçoar o "Pe Amaro", Zé. E crónicas chamadas... Claro: "Cartas de Inglaterra", para um jornal do Porto, A Actualidade.
- Maria, está a descrever o Conselheiro Acácio. Igualzinho ao que conhecemos!
No ecrã, desenhava-se a figura de Acácio e uma página do Diário de Notícias, de Outubro de 77, reproduzia um excerto de uma obra intitulada "Um chá de família".
- Um novo romance, com o figurão que encontraram - disse Eça. - E mudei o nome do livro. Chamei-lhe "O Primo Basílio". É sobre a hipocrisia das famílias da pequena burguesia. Mas não estou contente com esta obra. É falsa, ridícula, afectada, disforme, piegas e papoilosa, isto é: tendo a propriedade da papoila - sonolificente.
- Que disparate! Não acredito.
Como resposta à observação de Maria, as imagens mostraram o livro recém-editado, em Fevereiro de 78, a esgotar rapidamente os três mil exemplares da primeira tiragem. Depois, apareceram páginas de jornais e revistas com esplêndidas críticas:
- Uma crítica de Teófilo Braga! Zé, é o escritor de Coimbra, do Teatro Académico.
- Segundo diz, "nas literaturas europeias não há romance que se lhe avantage". Boa!
A imagem do professor Coelho apareceu entretanto e esclareceu:
- Ele estava com medo, depois do insucesso da 1ª edição de "O Crime do Pe. Amaro".
- Claro! Saiu contra a vontade dele - objectou Maria. - E, na época, criticar os padres...
Zé Maria, de novo no écran, continuava com a sua escrita. Os títulos somavam-se: "A Tragédia da Rua das Flores", "O Conde Abranhos", "Alves & Compª", etc. Pouco a pouco, porém, o escritor transformava-se num homem muito cansado e triste.
- Estou sob a influência do desalento - disse-lhes, às tantas. - Tenho estado a preparar um conjunto de pequenas novelas a que chamei "Cenas da Vida Real" ou "Cenas Portuguesas". Mas... não sei... Um artista não pode trabalhar longe do meio em que está a sua matéria artística. Não posso pintar Portugal em Newcastle. Para escrever qualquer página, qualquer linha, tenho de fazer dois violentos esforços: desprender-me inteiramente da impressão que me dá a sociedade que me cerca e evocar, por um retesamento da reminiscência, a sociedade que está longe... Ainda por cima, estou sem dinheiro! Os meus rendimentos são inferiores às minhas dívidas. Já não me resta coragem para entender os desgostos dos meus personagens quando tenho de os observar através da espessura dos meus. Sinto o que devo fazer, mas não o sei fazer. Mereceria auxílio como cônsul e artista. Farto-me de o pedir para Lisboa e... nada!
E, num desabafo de quem não pode conter por mais tempo o desespero, disse:
- Sinto-me só e desamparado. Não tenho família nem paixão, limito-me a comer e a fazer prosa. O meu cabelo embranquece... Estou com trinta e dois anos e tenho corrido tanto pelo descampado da sentimentalidade... Precisava de uma mulher que quando eu começasse a chorar pela lua, ma prometesse - até eu a esquecer...
Os dois viram-no meter numa gaveta, páginas e páginas de obras por acabar.
- Reparaste, Maria, uma das novelas tinha o nome "A Capital". Deve ser sobre Lisboa. De facto, está tão longe há tanto tempo. Não me digas que desistiu de escrever....
- E está tão sozinho e triste... Eu bem dizia que já tinha idade para se casar!
Nesse instante, a cassete parou.
- Não pode ser! - e como se ele o pudesse ouvir, Zé gritou: - Não te deixes ir abaixo!
- Temos de ir ter com ele! Como vamos conseguir, Zé?
Foi então que a porta da sala, apesar de trancada por eles, se abriu. E entrou uma "figura esgrouviada e seca, os pêlos do bigode arrebitados sob o nariz adunco, um quadrado de vidro entalado no olho direito... uma mecha frisada na testa".
- Como estão Vossas Altezas? - perguntou o recém-chegado, numa voz prazenteira.
- Zé Maria?! - interrogaram-se os dois, vendo alguém que parecia ser e não ser Eça.
- Pela vestimenta estranha que traz até pode ser - disse Zé, reparando nas luvas amarelo canário, uma gravata de cetim com uma ferradura de opalas, polainas de casimira, sapatos pontiagudos de verniz; o corpo estava envolto num casacão, uma "sumptuosa peliça de príncipe russo, agasalho de trenó e de neve, ampla, longa, com alamares trespassados à Brandeburgo, e pondo-lhe em torno do pescoço esganiçado e dos pulsos de tísico uma rica e fofa espessura de peles de marta".
- João da Ega, meus amigos, estudante de Direito em Coimbra, escritor de uma epopeia em prosa, " Memórias de um Átomo", ateu feroz, positivista, satanista e anti-burguês!
- Ah! João da Ega, o nome que ouvimos em Coimbra, Zé!
- Foi a primeira sombra que vimos. És parecido com ele - disse Zé ao recém-chegado.
- Eu diria que és uma mistura de Zé Maria e de João Penha - observou Maria.
- Ele inventou-te agora? Então não desistiu de escrever! - esperançou-se Zé.
- Encontrou a inspiração em si próprio e no amigo, louco como ele? Foi isso não foi?- Não se entusiasmem. Ele está numa crise!... Interrompeu uma série de obras. Com título e tudo. E não se decide: agora ou pensa em mim, ou em Artur Corvelo, também estudante de Coimbra, amigo de um tal Damião que o ajuda a estudar Proudhon...
- Como ele mesmo e Antero?
- Sei lá! Não estou dentro da cabeça dele. Ou melhor: estou dentro da cabeça dele mas não da de outros personagens que ele cria. O Artur pertence a uma história diferente embora também tenha a ver com o ambiente da capital...
- Ah! Era isso: "A Capital"! - relacionou Zé. - Então e tu? O que está a acontecer agora?
- Imaginou-me, mas temo que não venha a acabar-me... Como pode acontecer à minha autobiografia, "Memórias de um Átomo".
- Que estava na cabeça dele, já em Coimbra - lembrou-se Maria.
- Calculo! Mas se não me acaba a mim, nem ao meu amigo Carlos, da família dos Maias... Se quer dar largas à sua maneira de ser, fantasista e sonhadora, que o faça, mas que não nos deixe incompletos, a morrer, amarelos, dentro de uma gaveta ou de um cofre qualquer. Abafa-se lá dentro!
- A propósito de cofre, não tens outra chave?
- Nem para mim. Caramba, está um calor! Esta peliça é pesada! - desembaraçou-se da opulenta peliça e mostrou o tronco nu, apenas com o peitilho de uma camisa.
- O quê? Tu não trazes nada por baixo? Nem um colete? - espantou-se Maria.
- Curioso! Mais ou menos isso dirá o meu amigo Carlos da Maia... se o nosso autor assim o quiser - riu João Ega. - Bom sinal! Talvez sejam capazes de o levar a dizer mais frases dessas para que acabe o nosso romance. Vamos, desembarquem! Chegámos a um país com melhor clima do que a Inglaterra húmida e enevoada.
- Chegámos? Onde? O barco está parad... - Zé calou-se. Através da vigia do navio, viu o porto de Lisboa. - Maria, voltámos! Em que data estamos? Deixa ver... Oh, 1880!
- Então... e Newcastle? E Bristol? O que se passa, Ega? João da Ega, onde estás?
Maria e Zé bem olharam à sua volta, mas este tinha desaparecido.
domingo, 27 de abril de 2008
Amaro, Acácio, Ega e Comp.ª - Quem guarda a terceira chave
Marcadores:
EÇA DE QUEIROZ,
IMAGENS,
José Maria Eça de Queiroz
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário