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domingo, 27 de abril de 2008

A campainha de «O Mandarim»

A campainha tocou, estridente, desagradável. Era assim, sempre: um som horrível, de proporções gigantescas, próprio para estilhaçar promessas de um bom começo de dia. "Até se deve ouvir na China!..." pensou José, ainda distante do portão da escola de onde provinha o toque da tenebrosa campainha. Esta, indiferente aos sentimentos que despertava ou até provocatória, continuava a soar insistente, como todos os dias, fizesse sol ou fizesse chuva. O rapaz apressou o passo, não porque a vontade a isso o levasse, mas porque pela milionésima manhã ia chegar demasiado tarde. E escutar outro sermão, quase tão sonoro e horrível como a campainha, não fazia parte de um ideal início de dia que deveria ser vivido como deve ser. Do outro lado da rua, aproximava-se Maria, também em passo de corrida e com semelhantes pensamentos. Houve troca de olhares, resmungos de bons-dias e um diálogo breve:

José, filho de Eça José - E se, com este calor infernal, nos baldássemos às aulas? A aula de português é uma seca! Tenho um novo jogo de aventura espectacular... Maria, filha de Eça Maria - Era bom estar em férias!... Dizem-nos que reconheceremos o valor da escola, mais tarde. Uma espécie de moral da história no fim de um livro...


Cúmplices na falta de pontualidade e em tantos outros protestos em relação à escola e ao estudo, ultrapassaram o portão e atravessaram o pátio quase voando.
Entraram ofegantes na sala de aula. Admirados, viram que não era a professora habitual que lá estava, mas um professor, ainda jovem, inteiramente desconhecido.

- "Uma aula de substituição! Bem podíamos ter faltado...", pensaram ambos.

O professor-substituto fitou-os por cima dos óculos apoiados na pontinha do nariz - por pouco não tinha possibilidade de os usar por falta de comprimento do dito nariz - e disfarçou um sorriso perante as tentativas desesperadas dos dois jovens de se tornarem magicamente invisíveis até alcançarem os respectivos lugares. Depois, continuou, como se nada fosse, a ler o livro que tinha nas mãos. E, para maior surpresa de Zé e Maria, estavam todos muito calados, a escutar o que o professor dizia:

- "Estaquei assombrado, diante da página aberta: aquela interrogação «homem mortal, tocarás tu a campainha?» parecia-me faceta, picaresca, e todavia perturbava-me prodigiosamente. Quis ler mais; mas as linhas fugiam, ondeando como cobras assustadas e, no vazio que deixavam, de uma lividez de pergaminho, lá ficava, rebrilhando em negro, a interpelação estranha - "tocarás tu a campainha?" A propósito de campainha... Parece que há aqui quem não goste de certos toques de campainhas...

O professor fixou, finalmente, o olhar nos dois retardatários:

- Vou voltar um pouco atrás para integrar os recém-chegados da última fila. Aliás, é engraçado estarem nesse lugar tal como... Teodoro, de Bordalo PinheiroPara castigo, não digo mais nada... - e interpelou-os: - Posso ter o prazer de saber os nomes dos meus amigos?

Esperando um sermão, os dois responderam a medo, quase em simultâneo:

- José

- Maria

- José... Maria... Curioso! Mesmo muito curioso! - murmurou o professor.

- E o setôr, quem é?

- "Setôr"!? O que é isso? Chamo-me Francisco Coelho e, ou me chamam Senhor Doutor, ou simplesmente professor Francisco - e prosseguiu: - Quando vocês entraram, eu estava a ler passagens de uma obra de Eça de Queiroz, escritor por quem tenho especial predilecção. Era um observador muito inteligente; retratou de tal modo os seus personagens que, ainda hoje, os reencontramos no nosso dia à dia. E divertimo-nos com a ironia e o humor que utilizou como ninguém. Neste livro, José e Maria, é o personagem principal, Teodoro, quem conta a história: -"No fundo da China existe um mandarim mais rico que todos os reis de que a fábula ou a história contam. Dele nada conheces, nem o nome, nem o semblante, nem a seda de que se veste. Para que tu herdes os seus cabedais infindáveis, basta que toques essa campainha, posta a teu lado, sobre um livro. Ele soltará apenas um suspiro, nesses confins da Mongólia. Será então um cadáver: e tu verás a teus pés mais ouro do que pode sonhar a ambição de um avaro. Tu, que me lês e és um homem mortal, tocarás tu a campainha?"

E o Dr. Coelho continuou, em tom quase teatral:

- "Imóvel, arrepiado, cravava os olhos ardentes na campainha, pousada pacatamente diante de mim... Foi então que do outro lado da mesa, uma voz insinuante e metálica me disse, no silêncio: -Vamos, Teodoro, meu amigo, estenda a mão, toque a campainha, seja um forte!"

"...Então, não hesitei. E, de mão firme, repeniquei a campainha. Foi talvez, uma ilusão; mas pareceu-me que um sino, de boca tão vasta como o mesmo céu, badalava na escuridão, através do universo, num tom temeroso que decerto foi acordar sóis que faziam nené e planetas pançudos ressonando sobre os seus eixos..."

"Ti Chin-Fu..., um mandarim... ...estava no seu jardim, sossegado, armando, para o lançar no ar, um papagaio de papel... quando o surpreendeu este ti-li-tim da campainha. Agora jaz à beira de um arroio cantante, todo vestido de seda amarela, morto, de pança no ar, sobre a relva verde; e nos braços frios tem o seu papagaio de papel, que parece tão morto como ele..."

O professor fechou o livro devagar, saboreando o interesse despertado:

- Se quiserem saber o resto, leiam o livro. É "O Mandarim", uma história fantástica como muitos de vocês gostam. Caricatura de Bordalo PinheiroFoi feita há mais de um século! Eça de Queiroz nasceu na Póvoa do Varzim, na Praça de Almada, em 25 de Novembro de 1845...

- O mesmo dia em que nasci! - sussurrou Maria para o Zé. - Era Sagitário como eu.

- ...E faleceu, em Paris, em 16 de Agosto de 1900... - acrescentou o Dr. Coelho.

- Olha! O meu dia de anos - quase gritou o Zé, excitadíssimo com as coincidências.

- Posso saber qual é o motivo de tanta algazarra, aí atrás? - perguntou o professor.

Explicadas as razões da algazarra, o Dr. Coelho murmurou outra vez:

- Ainda mais curioso! Então vem a propósito. Vou incumbi-los de um trabalho especial.

E, alheio às reacções dos visados, ameaçados de fazer mais um trabalho para casa, quase sempre penoso, e ainda por cima, extra, o professor prosseguiu:

- Um escritor viverá sempre se encontrarmos na sua obra algo que nos interessa. O essencial é, portanto, lê-lo. Contudo, e cito Maria Amália Vaz de Carvalho...

- Olha, Maria! O nome de uma escola em Lisboa!... - murmurou Zé.

- Esta autora, que o conheceu - continuou o professor, imperturbável - dizia que Eça de Queiroz não podia ser julgado somente pelos livros que deixou. As suas qualidades deviam ser avaliadas conhecendo não só o escritor mas também o homem. Assim, gostaria que o José e a Maria, que, entre outras coincidências, também partilham, com o escritor, o nome próprio - José Maria - ficassem encarregados de no-lo dar a conhecer nas próximas semanas. Talvez então, passem a querer chegar às aulas ao som da campainha, peça chave neste livro, interessados em saber mais coisas para além do interesse que têm, como imagino, por novos jogos de computador.

Esta última frase foi uma aberta para grande alarido: não faltaram jogos por comentar, nomes das mais recentes aquisições, modos de ultrapassar dificuldades...

- Pschiu! Calados! - Seria o tom usado ou outra razão inexplicável que os fez obedecer de boa-vontade, ao contrário do que sucedia tantas vezes com frases semelhantes?

- Então, Zé e Maria, dêem-me uma semana para preparar umas coisas que eu cá sei e daqui a oito dias, venham ao meu gabinete - rabiscou uma morada num papel que lhes entregou, recomendando: - Sejam pontuais! Prometo-lhes uma aventura inesquecível, como a do Teodoro. Só espero que a experiência tenha para vocês um significado muito diferente do que teve para ele, mas igualmente fantástica.

Uma semana mais tarde, José e Maria entraram na sala de trabalho do Dr. Francisco Coelho, atulhada, até ao tecto, de livros e papéis. Catita!...

- Então? Já leram "O Mandarim"? - perguntou-lhes.

- Eu já! - respondeu Maria. - A minha avó emprestou-me o livro.

- E eu também. Na Net.

- Claro, evidente. No computador! - riu o professor que, entretanto, captara o olhar cobiçoso dos dois amigos sobre os computadores alinhados numa mesa junto à parede:

- Também gosto de os utilizar e desvendar. Mas antes de mais, quero mostrar-lhes isto - e apontou-lhes uns livros de aspecto antiquíssimo. Agarrou neles e manejou-os como preciosidades: nas capas, figurava o nome de Eça de Queiroz.

- As suas obras. Alguns destes livros são primeiras edições! Como este: "Os Contos".

- Mas é uma edição de 1902!?! - espantou-se Zé - Se morreu em 1900...

- Há manuscritos descobertos só depois da morte dele. Alguns foram editados pelos filhos. Eça foi um dos nossos escritores que mais obras escreveu. Aqui entre nós, estou sempre à espera de ver surgir um inédito qualquer. E é a propósito da descoberta de um inédito que quero pôr-vos a trabalhar: encontrem a sua autobiografia. Dizem que não a terá feito pois, segundo palavras dele, "um homem de letras que não escreve as suas memórias tem realmente direito a que outros lhas não escrevam"... Autocaricatura

- Então não há nenhum manuscrito, com certeza! - afirmou Zé.

- Certezas têm os ignorantes. Procurem-na! E, se não a escreveu, escrevam-na vocês!

- Ó setôr... desculpe, Senhor Doutor... Não tenho jeito para escrever...- protestou Zé.

- Eu gosto, mas às vezes faltam-me as palavras correctas - disse Maria.

- Mesmo assim, tu já escrevestes algumas histórias... Agora eu!... - volveu Zé.

- Meu caro amigo! - exclamou o Dr. Coelho. E corrigiu: - Tu já ESCREVESTE! Cuidado com a gramática, Zé. Se estudasses melhor o português... "A minha Pátria é a língua portuguesa", diz Fernando Pessoa, outro grande escritor. E se, já agora, lesses mais, verias como um bom livro nos faz rir e chorar, pensar e sentir. Mas não quero complicar-te a vida. Vocês os dois têm ao dispor estes computadores.

- Ah! Bom! - ripostou Zé, mais aliviado.

- Não sou contra eles - sorriu o professor - Se os soubermos usar, abrem muitas portas. Temos é de querer abri-las! Tu, Zé, abriste a porta ao Mandarim, através da Internet. Terão agora mais possibilidades ainda. Usem isto - e mostrou-lhes capacetes, óculos, luvas e todo um arsenal de fios e ligações a sofisticados aparelhos.

Espantados e maravilhados, exclamaram:

- Mas isto é... é realidade virtual!

- Sabem o que fazer?

- O meu pai ensinou-me e eu ensinei à Maria. Claro que achamos que sabemos o que fazer!

- Então, achem o que vos pedi. Mas, sobretudo, pensem! Pensem sobre e como o vão achar. Já está tudo preparado e à vossa espera. O resto é convosco.

O Dr. Francisco Coelho saiu da sala. E em cada ecrã, desenhou-se, reluzente, uma campainha, poisada sobre um livro de capa vermelho escuro onde se lia, em letras de ouro, JOSÉ MARIA EÇA DE QUEIROZ. Os dois jovens equiparam-se.
Eça ao centro (?)

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