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domingo, 27 de abril de 2008

A primeira chave

Maria retirou o capacete, os óculos e as luvas: regressara ao gabinete do Dr. Coelho. Este estava sentado num cadeirão, a ler:

- Então? Que te aconteceu? Já estás farta?

- Nem por sombras! Mas... morri - e contou o que se tinha passado até àquela altura.

- Encontraram Laureana, a mulher de Mateus; um casal preto trazido do Brasil pelo avô do Eça, no início dos anos vinte. Em 1822, o Brasil tornou-se independente e ia começar a longa guerra civil, em Portugal...

- Entre liberais e absolutistas, e entre os próprios liberais de partidos diferentes - completou Maria, recordada das palavras do pai de Eça. - A época em que ele viveu deve ter sido uma destas confusões!

- A partir da juventude de Eça, em Portugal houve menos conflitos, embora ele tenha atravessado três reinados - D. Pedro V, D. Luís e D. Carlos. Mas viveu numa época de revoluções, com correntes de pensamento e ideais políticos novos. Despontaram os nacionalismos nas colónias e também na Europa: polacos, checos, húngaros, croatas tentavam sacudir o jugo dos impérios russo e austríaco; a Itália unificava-se, com Garibaldi; a Alemanha, com Bismarck...

- Como há anos, a unificação da Alemanha, com a queda do muro de Berlim. E os checos, os eslovacos, a Bósnia a lutarem pela sua independência... - relacionou Maria.

- A História é uma cadeia, não se divide em caixinhas. No século passado, os factos, as ideias novas, como o socialismo, a luta de classes com Karl Marx, os desejos de liberdade são consequência de acontecimentos e ideias do século anterior. E pensadores do século XIX, como Proudhon Proudhon- um francês - influenciaram muito a geração de Eça. Foi talvez por ser uma época que se revelou feita de utopia, de sonhos não concretizados que, no jornal "Gazeta de Notícias", ele escreveu, em 1891, um artigo chamado "A Decadência do Riso". Era o que estava a ler e vem a propósito do que me contaste sobre Laureana: "Eu ainda me recordo de ter ouvido, na minha infância... a gargalhada, a antiga gargalhada genuína, livre, franca, ressoante, cristalina!... Vinha da alma, abalava todas as vidraças de uma casa, e só pelo seu toque puro, como o do ouro puro, provava a força, a saúde, a paz, a simplicidade, a liberdade!"

- Deve ser a gargalhada da Laureana que ele recorda. Foi espectacular!

- Esse casal da sua infância não só o deve ter influenciado no gosto pelas histórias, como também no carácter extremamente supersticioso e na atracção pelo fantástico e maravilhoso. O povo do Brasil é muito dado às ciências ocultas...

- Ó professor, desculpe interromper, mas posso continuar dentro da história? O Zé está ali, tão absorvido... Já terá encontrado alguma chave?

- Continua a aventura, pois! Ficaria triste e desiludido, aliás, se o não quisesses.

- Mariiaa! Estou aqui! - ouviu esta, mal reiniciou o jogo. Zé descia, ao seu encontro, os degraus da Sé Velha. Reconhecendo Coimbra, Maria surpreendeu-se; sobretudo, quando viu, na mão dele, uma pequena chave.Sé Velha, Coimbra

-Já encontraste uma? Onde? Como?

- Ainda bem que voltaste. Foi lindo! Vou mostrar-te tudo o que se passou e ajudo-te. Olha, em Verdemilho, conheci o Mateus. Vê, além, junto do celeiro. É realmente espectacular a contar as tais histórias francesas! - e a aventura vivida por Zé ia desfilando diante dos olhos de Maria: - Agora, nesta sala, está o professor que o ensinou a ler, o Pe. António Gonçalves Bartolomeu. Fui reencontrá-lo, mais adiante, numa cena gira, em Coimbra. Já contarei. Aqui, saltamos para o Porto, onde o Zé Maria está num Colégio interno. Dos dez anos até aos quinze. Sai em 1861.

- O Zé Maria? Já o tratas assim? De facto, conhecêmo-lo desde miúdo!

- E agora tem a nossa idade. Vou mostrar-te uma coisa aqui nesta casa. Cuidado, não entres ainda na sala! Está lá um sujeito sentado a uma secretária e temos de nos esconder dele; é um político do partido progressista, José Luciano de Castro. Esconde-te atrás da porta, depressa! Boa! Vês? Está a entrar o Dr. Queiroz. Pela conversa percebi que eram colaboradores num jornal. Mas esta parte é bestial! Escuta!

- "O José Maria dá-me cuidado" - disse o Dr. Queiroz .- "O pequeno não se aplica nos estudos. Ainda por cima, imaginas o que fui encontrar numa gaveta? Isto!"

Nas mãos, tinha uma resma de folhas de papel almaço, cobertas, a preto e vermelho, por uma escrita infantil, embora com traços da letra que eles já conheciam.

- "Versos?!" - espantou-se o interpelado que começou a lê-los. Algum tempo depois, disse: - "Não desgostei desta versalhada. O rapaz tem jeito! Deixa-o escrever!"

- Espectacular! - entusiasmou-se Maria. - E não conseguiste guardar estes versos?

- Isso é que foi pena! Mas, agora, repara! Ali! Vês? Rua de Germalde, no Porto. No nosso tempo chama-se Largo da Lapa. Está aqui um mapa actualizado, que apanhei entretanto. O prof. Coelho pensou em tudo! Vamos entrar no Colégio de Nª Sra. da Lapa, onde está o Zé Maria. O Dr. Queiroz também vive aqui no Porto. É Juiz.

- Ah! Então ele passa a conviver mais com os pais, com certeza - observou Maria.

- Calcula que estuda coisas estranhas, para além de Física e de História: Lógica, Retórica, Filosofia Racional, Direito Natural, Latim, eu sei lá. E Francês, obviamente. E nisso ele é mesmo bom, pois tem um professor muita bom...

- Zé! Um professor muito bom! Se Eça te ouve... E se formos nós a escrever a sua biografia temos de saber usar um português correcto. É uma grande responsabilidade!

- Tens razão, desculpa! Mas, dizia eu, esse professor, Joaquim Ramalho, é pai de um grande amigo do Zé Maria. Chama-se José Ramalho Ortigão e é um bocado mais velho do que ele. Costuma até ajudá-lo a estudar. Vais conhecê-lo.

- Ramalho Ortigão... A minha avó falou-me dele. Era escritor também.

Zé guiava Maria pelos corredores e pátios do colégio, esquivando-se, aqui e além, desta ou daquela figura que passava. Entraram numa sala. Sentados a uma mesa, a conversar, estavam Eça-adolescente e Zé Ramalho Ortigão.Ramalho Ortigão, caricatura de Bordalo Pinheiro Rodeados de livros, este último folheava-os e lia-os, discutindo depois com o amigo.

- Parece um professor com um aluno... - observou Maria.

- Folgo em reencontrar-te, Maria. Deixaste-me em Verdemilho há 4 ou 5 anos... Mas dizes bem. Este é, e será, para além do seu pai, um dos meus mestres e um amigo para o resto da vida. Ah! É verdade! Foi a ele que disse aquela frase sobre ser a minha história igual à de Andorra. Aliás até lhe pedi que fosse ele a contá-la... "Qualquer coisa de curto, seco, sóbrio", se bem me lembro das palavras que então lhe escrevi... ou escreverei!? É o problema de quem se torna fantasma, por vossa culpa, ao toque de uma campainha... Campainha, aliás, que também ainda não inventei. Que confusão! Parece que agora tenho 14 anos, portanto usemos o tempo gramatical certo, o futuro. Assim, quando um editor meu vier a pedir a minha biografia a um literato da capital, vou ficar gelado e pedirei socorro ao Zé Ortigão...

Maria olhou para o seu companheiro. Este, porém, despediu-se rapidamente com um "até à próxima". Maria fez o mesmo.

- Não se passou mais nada aqui? - perguntou ainda, admirada.

- Sim. Zé Maria fez os exames finais no verão de 1861, para depois seguir para Coimbra e iniciar aí os estudos jurídicos, na Universidade... Universidade de Coimbra

- Mas... e a chave? Esta conversa sobre a história dele não serviu de pista?

- Calma! Vamos para a Quinta de Santo Ovídio. É a casa do Conde de Rezende, pai de outros dois grandes amigos dele para toda a vida, Luís e Manuel. Também os conheceu no Colégio da Lapa e Zé Maria vem à quinta muitas vezes. Olha, é além! E o sítio onde estamos chama-se, no nosso tempo, segundo o mapa do professor, Praça da República.
Aproximavam-se agora de uma casa enorme, coberta de trepadeiras. José passara o portão da quinta já conhecedor do caminho e, seguido por Maria, entrou em casa sem cerimónias. Avançaram pelos corredores, atravessaram uma sala, esperaram que um criado passasse e encontraram-se, por fim, no salão de jantar.

À mesa, numa alegre algazarra, estavam o Eça-jovem, Ramalho Ortigão e dois rapazes, Luís e Manuel Rezende. Celebravam a ida de Eça para Coimbra. O calendário trazido de Neuilly assinalava Setembro de 1861.

Maria quis falar com eles, mas Zé apressava-a. Eça ainda lhe acenou, piscando um olho. Zé, porém, puxou-a e fê-la entrar num pequeno oratório:

- Quero mostrar-te onde descobri a chave, graças aos três amigos dele.

- Ah! Bem me quis parecer que o Zé Ramalho Ortigão era uma pista.

- E tiveste um bom palpite! Mas não foi só o Ramalho que me deu a pista. Foram também o Manuel e o Luís Rezende. Pela conversa dos três, percebi que este oratório tem a ver com algo importante que se irá passar aqui, anos mais tarde. Olha, Maria! No altar, sobre esse livro, estava a chave. Só não consegui abrir o livro, nem trazê-lo. Quinta de S. Ovídio

- O que será? Estou cheia de curiosidade.

-Também eu. Mas voltemos a Coimbra. Lembras-te do professor de Verdemilho, o Pe. Gonçalves Bartolomeu? Foi lá celebrar com o Zé Maria a entrada dele na Universidade. E como? Com uma pratalhada de arroz doce, num restaurante, o "Paço do Conde"!

- Que guloso!

- Nem calculas quanto! Adora comer e em grandes quantidades. E continua naquela magreza! Põe todos boquiabertos com as montanhas de peixe frito que come.

- Peixe frito?! Onde? Também pode ser um bom bacalhau de cebolada. Qualquer verdadeiro prato português me abre o apetite. Então se for nas "tias Camelas!"...

Quem assim lhes falava era Eça-fantasma, que reaparecia junto deles, nos degraus da Sé Velha, local da reentrada de Maria nesta aventura.

- Tias Camelas?! - espantou-se ela.

- Não calculas como lá se comia bem. Vocês estão a fazer recordar-me o que vivi, até Julho de 1866, data em que saí de Coimbra, com o "canudo"... Hahahaha

- "Com a minha carta de bacharel, num canudo" - cortou Zé, lendo "O Francesismo"- "trepei enfim para o alto da diligência, dizendo adeus às veigas do Mondego."

- Ora esta! Também leram isso? Faço bem em confiar-vos a minha história! E vão saber o que foi para mim "esta encantada e quase fantástica Coimbra... Vivia então numa grande actividade, ou antes, num grande tumulto mental". Escrevi isto anos depois - rematou todo contente. - Os choques que se deram na minha cabeça, a luta entre a gente real e os meus fantasmas... Mergulhemos, pois, nas minhas memórias!

Entusiasmado, declamou:

"A galope, a galope, ó Fantasia! Plantemos uma tenda em cada estrela."

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