- Uff, Zé, estás aí! Escapámos por pouco! - desabafou Maria, meia tonta e sentindo o corpo a ser todo sacudido - Mas... Onde estamos? Para onde vamos? - perguntou ao jovem Eça que, substituindo de novo o seu fantasma, estava sentado ao lado deles, dentro da diligência que seguia a galope.
- Apanhei-os a tempo, hem, meninos?! Não podem deixar de assistir à minha chegada a Lisboa, neste verão de 1866.
- Ah! - exclamou Zé - Com o canudo debaixo do braço, disseste adeus ao Mondego.
- Com o canudo e os meus fantasmas...
- Os teus fantasmas também somos nós? - perguntou Maria - Como disseste a Penha?
- Não sou eu um fantasma, para vocês? Por que não considerar-vos fantasmas como os que me assombraram em Coimbra, tão importantes para o início da minha carreira de escritor? O fantasma da Sé Velha, por exemplo. Pois, agora, tenho vinte anos. Vou começar uma nova etapa da vida. E quero mostrar-vos onde. Aqui! - disse, apontando o prédio nº 26, do Rossio, o coração da cidade de Lisboa, onde a diligência acabava de parar. - Venho para casa dos meus pais. O meu pai é magistrado em Lisboa.
- Boa! - exclamou Maria. - Vais viver com os teus pais e festejar os vinte e um anos...
- Subamos ao 4º andar! - propôs ele.
Escondidos sob a ampla capa de Eça, que assim ocultava "alguns dos seus fantasmas" dos olhos dos familiares, Zé e Maria entraram em casa.
- Eis o meu quarto - disse em tom declamado, fazendo uma pirueta desengonçada. - Além, desta janela que dá para a R. do Príncipe, vou começar a ver desfilar Lisboa. E depois, a "Baixa" pombalina, o Chiado, os cafés, as tertúlias, e muito mais, meninos! O que Lisboa me trará, só o futuro o dirá - concluiu, cantarolando e rindo.
Encantados, Maria e Zé observaram o pequeno quarto, com uma mesa no centro e uma estante de livros.
E as imagens, ou páginas de manuscritos, iam começar a desfilar, sob o olhar atento dos dois jovens, tal como Lisboa desfilava aos olhos de Zé Maria.
Viram-no sério e compenetrado iniciar a carreira de advogado, no Supremo Tribunal de Lisboa. Mas no nº 26, no quarto do Rossio, ou no nº 26 da Travessa da Parreirinha, na redacção da Gazeta de Portugal, perto do Teatro de S. Carlos, páginas e páginas iam-se acumulando e tomavam a forma da letra impressa das publicações. A máscara de seriedade com que cumpria as funções de advogado depressa cai: a carreira de advocacia é relegada para plano secundário.
Um dia, na redacção da Gazeta, José e Maria viram entrar um outro jovem, de compleição física quase oposta à de Eça. Era Jaime Batalha Reis. Estudante do Colégio Alemão e seguindo a área científica, das Ciências Naturais, tinha também o espírito livre e o gosto pela conversação. Reavivando em Zé Maria a maneira de ser boémia, exaltada, repleta da imaginação rocambolesca desenvolvida em Coimbra, tornou-se, assim, no seu companheiro inseparável. Horas a fio, discutiam e especulavam sobre os mais variados temas, as mais variadas leituras. Batalha Reis enriquecia o imaginário de Eça com os autores, a mitologia e o fantástico germânicos, lidos no original e não nas traduções francesas. A vida retomava, assim, o ritmo frenético que tinha tido em Coimbra, mas agora era intercalada com longas horas de criação literária. As intermináveis discussões reacendiam-se, noite dentro; as visões fantásticas ressurgiam, de madrugada, na Mouraria, em Alfama ou nas encostas do Castelo de S. Jorge. Onde estavam apenas "varredores municipais que esperavam, encostados às suas vassoura, a hora de se dispersarem pela cidade", viam gigantes de grossas lanças e seres sobrenaturais. No jogo de sombras das ruas de Lisboa, viam eles "as casas sem luz" que os olhavam com "o aspecto calmo e sinistro dos rostos idiotas".
E na Travessa do Guarda-Mor, no Bairro Alto, em casa de Jaime, numa escrivaninha alta, igual à de Neuilly, Eça escrevia, escrevia, encantado talvez com a abundância das ideias que lhe ocorriam.
Zé e Maria viam-no encher páginas e páginas, ou escutavam-no, deslumbrados, quando ele parava para lhes ler em voz alta os contos que ia criando. Ria, ora alegre ora diabólico, fazia vozes apropriadas. Utilizava todo o corpo, gesticulava, punha-se em bicos de pés, saltitava. Um salto mais ousado e quando parecia ir cair no chão desamparado, a imagem imobilizou-se.
De repente, transformou-se no Eça-fantasma, com um livro na mão:
- Naturalmente era convosco que Jaime dizia que me via falar - e apontou para o livro: - "Prosas Bárbaras", assim se chamaram mais tarde estes contos. "Todas estas coisas se parecem com sonhos. Mas o que é o sonho? O que são as visões? São as atitudes fantásticas e desmanchadas que a sombra dá à verdade." Como escritor, evoluí para outros estilos de escrita, tornei-me num crítico severo. Para comigo mesmo e para com os outros. Mas, vejam o que Batalha escreveu sobre mim nesta introdução, feita em Setembro de 1903. Como constataram, a minha escrita era fluente e plena de imagens. E ele pormenoriza: "A luz de um candeeiro de petróleo... feria-lhe a vista; de modo que, a fim de concentrar a claridade sobre o papel em que escrevia..., prolongava do seu lado, o abat-jour, com longas tiras de papel. Não podia suportar poeira nas mãos e erguia-se amiúde da mesa para - interrompendo a composição, mas recitando em voz alta as frases já escritas - vir cuidadosamente, lavar as pontas dos dedos... ...uma vez embebido nas suas criações, não falava, não escutava, não atendia coisa alguma - ...passeando pela casa, muito curvo, dando passadas altas e largas, fazendo gestos de dialogar com alguém invisível..." Seriam vocês? - deu uma gargalhada, no seu riso franco e inconfundível, e continuou: - Vejam! Diz que no café Martinho, nas livrarias, como a Bertrand, nos círculos intelectuais, os meus escritos eram comentados entre gargalhadas e espanto pela extravagância e a novidade da escrita. Como ninguém me conhecia, até julgaram que o meu nome era um pseudónimo! Não falemos do ambiente irritado ou escandalizado que provocava a minha palavra impressa e vamos ver como fui abandonando esse estilo de escrita. Igualmente se diz nesta introdução "morreu a fantasia. São fúteis todas as ilusões. Reina o cálculo demonstrável".
- Não me digas que começaste a escrever coisas chat... desculpa - emendou o Zé, rapidamente - coisas muito sérias...
- Então "O Mandarim"? E os contos que lemos? Não vimos escrevê-los - disse Maria.
- Calma! Lá voltarei às minhas visões fantásticas. Mas agora, vejam! - com um gesto espalhafatoso, fez aparecer a figura sinistra de um monstro, própria de filmes de ficção:
- É o "Positivismo Científico"! A idade científica irrompeu, portas adentro, no meu tempo. Começou a dizer-se, e eu também, que a literatura já não devia ser a procura da beleza pela beleza, a busca da forma, mas devia mergulhar na realidade, para ser intérprete e impulsionadora das aspirações da Humanidade. A literatura, a arte devia ser cientificada! E o que veio a acontecer? Olhem a pobre e gentil donzela, a Imaginação. O monstro raptou-a. Reparem: fechou o Homem num laboratório com outra mulher. A fria e calculista Razão. Resultado: o Homem começou a aborrecer-se monumentalmente e a suspirar por aquela outra companheira tão alegre, tão inventiva, tão cheia de graça e de luminosos ímpetos... que lhe apontava para os céus da poesia e da metafísica, onde ambos tinham tentado voos tão deslumbrantes.
Ao som da voz de Eça, Zé e a Maria vêem o que ele vai relatando:
- Mas o Homem, um dia, arromba a porta do laboratório e corre para os braços da Imaginação, com quem larga a vaguear de novo pelas maravilhosas regiões do sonho, da lenda, do mito e do símbolo.
Depois, voltando à sua voz natural, disse:
- Posso dizer que foi isto que me aconteceu... mais ou menos, claro! Porque, apesar de tudo, nunca abandonei a donzela Imaginação. Só que me debati muito tempo entre a poesia e a prosa. Como artista, admirava a forma, a beleza das imagens abstractas, o irreal; era o que me inspirava. E o que há de melhor para o transmitir, pensava eu, senão a poesia? Sobretudo quando absorvia tudo o que lia, de forma caótica e sofria as influências livrescas mais desencontradas; inebriado pelas sombras do sonho, não atendia à realidade, ao concreto. Por fim, descobri não ser a poesia o meu dom e, ao mesmo tempo, aprendi a ver a vida à minha volta. Mas os escritos que passei a fazer não são chatos, menino! Em prosa, soube ligar as duas coisas: a Razão e a Imaginação. E como podia eu perder a enorme vontade de rir e de brincar que tenho?
- Humor e ironia... - disse Maria.
- Infiltrei-os nas histórias baseadas na observação da vida real que me preocupava e exasperava. O "Realismo" e o "Naturalismo" irão influenciar-me. Mais tarde voltei ao sonho e enevoei-me no fantástico e no maravilhoso mas com outro amadurecimento. Não perdi nada: transformei-me. Vão ver! Ou já viram. Nos contos que leram e em "O Mandarim", bem diferentes das "Prosas Bárbaras"! Vão é observar o que me fez evoluir. E a vossa sombra, ou a minha, ou a nossa... ( lembram-se dela?) deixa de ser a imagem transmitida pela palavra escrita com o carácter vago de sonho, ou de visão, para tomar formas de gente concreta, definida. Lisboa foi um manancial para a caricatura: políticos, burgueses, intelectuais pançudos, barrigas inchadas de lugares-comuns, vaidade e idiotia. Era vê-los, no Chiado, na "Baixa", ou nos corredores do Tribunal da Boa-Hora. Mas não nos precipitemos. Vamos para Évora!
Apesar de já habituados aos saltos bruscos e variados que o seu guia os fazia dar, José e Maria não deixavam de se surpreender:
- Évora...?!? Então não foi Lisboa que...?
A frase não chegou a ser concluída: Évora apresentava-se diante deles, templo de Diana e tudo. 6 de Janeiro de 1867 mostrava o calendário de Neuilly e o bi-semanário Distrito de Évora, o primeiro que saía a ostentar o nome de José Maria Eça de Queiroz como Director. E assim foi, até 25 de Agosto desse ano.
- É bestial! Não só és o Director, como fazes o resto sozinho! - espantou-se Zé, vendo Eça, de vinte e um anos, desdobrar-se nas actividades necessárias para editar um jornal.
- Um actor habitua-se a múltiplos personagens - riu ele. - Viram-me com a máscara do advogado, agora tenho a do jornalista, editor, administrador, etc...
- Engraçado - notou Maria - nestes artigos, "Correspondência do Reino", escreves duas secções: uma, "Do nosso correspondente político" e outra, " Do nosso correspondente literário". Tu fazes os dois papéis - e leu: - "Agora vou por estas ruas apinhadas de gente, indolentemente, estudando os tipos como um verdadeiro ocioso, rindo-me dos penteados femininos, vendo os livros novos, ouvindo as dissertações políticas, a graça dolorosa e insípida dos novos folhetinistas, mas olhando sobretudo para o Sol, para o ar puro"... Escreves como se estivesses em Lisboa!
- E também és comentador político - espantou-se Zé. - Nunca te vi especializado nisso!
- Disse-vos que me ia modificar. Reina D. Luís e o partido da fusão. Ou da confusão? Sabem o que é? Eu também não sabia, começo a aprender agora. Juntaram-se os partidos "Regenerador" e "Histórico"... Aprendam isso na escola. O que acontece é que nesta cidade, de tradições jornalísticas, só há, de momento, um jornal: A Folha do Sul. Ora este é praticamente pertença do governo e, como tal, deturpa os factos para servir os interesses dos políticos no poder. Mas a democracia alastra no país e a verdade tem de ser dita! Aprendi, com Antero, a amar a verdade. Por isso aceitei este trabalho.
Zé e Maria viam Eça a trabalhar duramente, com disciplina pela primeira vez, e a preocupar-se com os factos do quotidiano, a escrever sobre política estrangeira, agricultura, comércio e indústria. As capacidades críticas do escritor eram aplicadas e desenvolvidas no real e no concreto.
- "Meus amigos, é com verdadeira alegria que me acho neste canto que a política me deixa.... Lugar do espectáculo para assistir às últimas agonias do pensamento em Portugal... Homem que fizeste tu do pensamento?... Que fizeste tu da alma?... E os que quiserem viver e tiverem a alma grande, bela e heróica... têm de se baixar à estatura burguesa e mercantil dos cérebros modernos..."
O modo irónico utilizado em cada artigo acentuava a contundência; os seus alvos, ou quem em defesa destes acorria, como era o caso de A Folha do Sul, acusavam o toque e reagiam com violência. Oito meses, com tumultuosas acções e reacções de parte a parte, passaram depressa para Maria e Zé. Mas para Zé Maria foi uma experiência essencial para as futuras escolhas, como artista e como homem.
Um dia, surpreende os dois jovens, exclamando:
- Sabem que mais? Estou farto de ser comentador político, de me envolver directamente na luta política! Voltemos à Travessa do Guarda-Mor. Chega de realidade!
Mas a realidade entrara-lhe definitivamente no espírito. Maria e Zé viam-no já olhar com outros olhos para o que mais de perto o rodeava. Lisboa tornara-se num dos alvos preferidos: "Lisboa... não quer alumiar para não lutar, não quer pensar para não sofrer... nem cria, nem inicia, vai... Encostar-se ao Chiado! - isto significa ter a fina flor da graça, a vivacidade conceituosa e costumes despedaçados. Estar no Martinho - revela inspiração, divindade interior, lirismo e poesia crítica. Ó Lisboa, tu não tens caracteres, tens esquinas!"
O jovem Eça, de regresso a Lisboa, trazia consigo parte da bagagem do futuro autor do romance irónico e demolidor da sociedade portuguesa.
Maria e José, persistentes na busca da terceira chave do cofre de ferro, novos saltos vão dar. O fantasma do homem insaciável e irrequieto, amante de longas conversas onde abundavam as novidades que chegavam de além Pirinéus, não os fazia parar. Saltavam de episódio para episódio, onde se misturava o criador de sombras, lírico e poeta, com o crítico e prosador do concreto, cheio de ironia e de irresistível sentido de humor. Noite alta, arrastava-os para a Travessa do Guarda-Mor. E na casa de Jaime Batalha Reis, viam-no, jovem de novo, gritar ao amigo:
- Sou eu, eu e os meus abutres! Vimos cear, devorando cadáveres!
Outras vezes, ouviam-no exclamar, num rompante:
- Estamos-nos tornando impressos... Precisamos de um banho de vida prática! - e corria, com Jaime, a ouvir o relato de outro amigo, sobre viagens pelo sertão de Angola, diante de um suculento bacalhau com batatas, regado com vinho de Colares.
Imagem a imagem, novamente na Travessa do Guarda-Mor, surgiam também outros jovens intelectuais; madrugada fora, embrenhavam-se em violentas discussões sobre arte, política, filosofia, literatura e tudo o mais de que se lembravam.
- Zé! - gritou Maria - Olha, a sombra! Está a começar a tornar-se mais nítida...
- Mas ainda não se percebe bem. Cuidado, Maria! Vem direita a nós!
- Não fujam - ouviram a voz bem conhecida do fantasma-Eça.- Quero apresentar-vos o grande, o ilustre, o célebre poeta, Carlos Fradique Mendes.
Junto de Zé Maria, ou quase sobreposto a ele, estava outra figura. Parecia um duplo, uma fotografia tremida. Eram dois corpos: um nítido, outro esbatido, enevoado.
- És tu?!? - admiraram-se.
- Já sei! - exclamou Maria - É um personagem inventado por ti.
- Mas não percebo - disse Zé. - O Teodoro de "O Mandarim", além de nítido, não és tu.
- Acertaram os dois! Lembram-se das últimas imagens, cheias de gente nova, em casa de Batalha Reis? Pois bem, meninos, aquilo era o "Cenáculo", a "comunidade de patuscadas e de ideias". E sabem quem a nós se veio juntar, em 68? O meu amigo de Coimbra, Antero de Quental. Foramos até aí quatro ou cinco demónios, cheios de incoerência e turbulência. Antero, apóstolo do socialismo, veio reavivar-nos o estudo reflectido de Proudhon, pregador do trabalho e da virtude. Converteu-nos a uma vida mais alta e fecunda. E eu, levado pelo ardor juvenil, recebendo os ecos da luta pela liberdade que corriam na Europa, logo me proclamei revolucionário, socialista e ateu!
- Não me digas que começaste a entrar na luta política outra vez e acabaste em pançudo ministro, em vez de escritor esquelético e trangalhadança... - disse Zé.
- Que disparate, menino! Mas recordam-se do que vos disse, sobre o "Positivismo Científico", antes do salto para Évora? Pois foi nesta época que o encontrei e me dividi! Entre o realismo, o naturalismo das novas tendências e o lirismo romântico e abstracto. O prosador, que em Évora descobri ser, encontrou-se com o amador de poeta, amante do fantástico que eu era. E criei, com Antero e Jaime, o Fradique. Em nome dele, escrevi a poesia que não ousava fazer como Eça de Queiroz. Voltado para a realidade, não abandonara o gosto pelo imaginário lírico. E diverti-me! Muita gente acreditou que ele existia realmente! Mas não é ainda um personagem de romance como os que criei depois. A minha caminhada para os imaginar ainda não tinha sido bastante.
- Então não é ele que nos indica onde está a terceira chave? - perguntou Zé.
- Oh! Para a 3ª chave também o vosso caminho é longo. Como é a definitiva, o desafio que vos propus complica-se. Venham daí comigo e surpreendam-se!
- As pirâmides de Gisé! - gritou Maria, desequilibrando-se nas bossas de um camelo.
- Grande partida vos preguei! - disse Eça entre as gargalhadas a que já os habituara: - Mas ter feito esta viagem também foi surpreendente para mim. Sonhava viajar. E foi o que fiz. Eis-me no Egipto, com o meu amigo Luís de Rezende, a pretexto da inauguração do Canal de Suez, em 17 de Novembro deste ano de 1869. Olhem bem para tudo.
Cairo, Mênfis, Heliópolis, o Nilo, o deserto egípcio, Alexandria... E as paisagens do Egipto passaram diante dos olhos de Maria e Zé e de Zé Maria, cheias de contrastes: a água abundante do Nilo, a areia seca do deserto; as cidades de agora, atulhadas de gente nos bazares coloridos, as cidades de outrora, vazias, silenciosas; a vida presente na multidão, a morte presente nos túmulos dos faraós; a noite dos festejos, cheia de luz, aguardando os grandes senhores do mundo, a noite da gente anónima, dos bairros árabes, de ruas tortuosas e escuras. E cheiros e sons e silêncios, interrompidos por melopeias nostálgicas, entranhavam-se nos sentidos dos visitantes.
- Esses livrinhos que trazes, o que são? - perguntou Zé, curioso, vendo Eça, com cerca de vinte e quatro anos, tirá-los constantemente dos bolsos.
- Estás a tomar notas de tudo. Já reparei - disse Maria.
- Faço o relato das paisagens, das gentes, das emoções colhidas. Observo o passado, no grande cemitério que foi o planalto de Gisé ou todo o Egipto faraónico, mas também observo o presente: o desfilar da gente importante das poderosas nações ocidentais, tomando de assalto os povos de África. E não só! Todo o outro mundo, até ao Extremo Oriente, irá estar ao seu dispor para ser colonizado e explorado. Tanta evolução ideológica, tanta invenção científica... e tanta pança a encher-se... Eu próprio fiz as minhas figuras de menino de boas famílias. "Pensei em ser califa, dormir em divãs de cetim, envolvido nos aromas dos aloés e no perfume das rosas!... Comeria coisas delicadas e picantes, mandaria abrir o ventre aos meus escravos para ver atitudes estranhas, degolaria escravas abissínias para sentir o calor do sangue das mulheres ardentes do Nilo, ornaria de pérolas os meus cães, esqueceria o meu povo e mandaria precipitar no Nilo todos os corpos que não fossem divinamente belos!" Revolucionário, ateu e socialista, proclamei-me eu! Que trambolhão espantoso!
- Ora! - riu-se Maria. - Escreveste liberdades poéticas. Dignas, possivelmente, do poeta que inventaste, Carlos Fradique Mendes.
- Pois verão mais algumas liberdades minhas! - E, numa cambalhota, desapareceu.
- Fenomenal!- gritou Zé - E agora? Sozinhos e perdidos no deserto!...
- Bonito! Só areia! E o Nilo lá longe... Se foi nesta altura que entrou na nova fase que referiu, achas que ficou zangado por ter relembrado Fradique Mendes?
- Ouvi dizer o meu nome? Ouvi mal? - o duplo desfocado de Eça estava junto deles. - Porque se espantam? Também estive no Egipto com ele. Gostava de ser califa, comer coisas delicadas e picantes, mandar degolar...
- Escravos e escravas... Já sabemos! Bem nos queria parecer - disseram os dois, rindo. - Mas... e agora? Resolves este problema? O Eça deixou-nos aqui.
- Como a mim. Seguiu outro caminho. Despediu-se do romantismo deste maravilhoso museu e partiu para o Sinai, Palestina, Jerusalém, Mar Morto, Jericó, o Calvário... Todos esses lugares da História despertar-lhe-ão a preocupação sobre a vida e o destino do Homem. Foi estudar Cristo e a sua morte, como um historiador de religiões. Crítico e cientista. Realística e naturalisticamente. Mas o Zé Maria é o Zé Maria! E nesta altura, com 25 anos, está prostrado, sozinho entre mil peregrinos, diante do túmulo de Jesus. O transcendente, o sobrenatural nunca deixará de ser um mistério para ele. Separámo-nos agora, porém manteremos sempre o fio de simpatia que nos uniu. Ver-nos-ão juntos de novo. Por ora, voltará ao Cenáculo e às Conferências do Casino, o realista!
- Casino... quê? Realista?! Nunca ouvimos falar desse casino. Então o que fazemos?!?
- "Em nome de Alá que vos leve!" - ouviram...
domingo, 27 de abril de 2008
Em busca da terceira chave - de «Lisboa» ao «Egipto», passando pelo «Distrito de Évora»
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José Maria Eça de Queiroz
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