AINDA PORTUGAL QUE COMPREENDE-SE NA SAUDADE.
Aí está, o grande Eça olhando para sua musa, acredito eu, aquela que sussurrou em seus ouvidos a urgência de juntar as palavras para que seus iguais pudessem ver-se um pouco mais além dos próprios umbigos.É preciso que se diga que herdamos de Portugal muito mais do que a língua e os paladares. Herdamos também a violenta falta de auto-estima que faz com que cuspamos não só na própria imagem, mas também em qualquer outra que nos dimensione a pequenez . Eça, a exemplo de Saramago, dia desses ainda, foi duramente atacado por alguns de seus pares, porque expunha os intestinos de uma sociedade que vivia de aparências e falsos valores. Eça reagia. Reproduzo, a seguir, uma carta que Eça de Queirós escreveu a Fialho de Almeida que tinha destroçado o romance “ Os Maias“ numa crítica para jornal onde escrevia.
Carta de Eça de Queirós para Fialho de Almeida
“Os franceses falam muito do espalhafato que faz Satanás, quando o mergulham dans un bénitier. Eu nunca assisti a esta escandalosa afronta feita ao venerável pai da mentira; nem você também, suponho eu. No entanto imagina você bem como Belzebu berrará e escoucinhará, ao sentir o contato untuoso do detestado líquido. Pois, querido amigo, assim eu escoucinhei e berrei, enquanto você, com mão dura e forte, me estava mergulhando na água benta da sua crônica sobre “Os Maias”.
Você concordará que esta analogia é rigorosa. Eu, com efeito, represento para você sa-tanás, o pai de toda a falsidade. Eu sou aquele mafarrico que escolhe, para personagens do seu livro, não sei que janotas petulantes e estrangeirados, em vez de dar, nessas pági-nas, o lugar preeminente ao Marquês da Foz, aos empreiteiros das obras do porto de Lisboa, aos rapazes beneméritos que foram premiados na escola; aos construtores do bairro Estefánia, ao Conselho de Estado, etc. etc. Eu sou aquele porco sujo que pretende que as mulheres de Lisboa têm amantes, e que, nos jantares de sociedade, em vez de discutirem Hegel, o positivismo, e a psicologia (sic) das religiões, falam de criadas e de cabeleireiros! Eu sou aquele gênio da maledicência, que afirma que os esplendores da Avenida são talvez inferiores aos da Via-Ápia, e que a sociedade que a freqüenta não é talvez nem a mais culta nem a mais original do universo, etc., etc., por aí além.
Por outro lado a sua crônica, meu caro Fialho, é uma bela pia de mármore, cheia a trasbordar de água benta da virtude, do Patriotismo, e da fé em Lisboa como capital da civilização. E, portanto, o que você fez, com a sua costumada veemência, foi plonger le diable dans un bénitier. Daí os berros e os couces.
Couces e berros, sobretudo de espanto. Porque enfim, eu tudo podia esperar do seu espírito, tão impressionável e ardente, menos essa atitude de pudicícia ofendida e de magoado patriotismo. O que era com efeito de esperar, dada a sua índole e os seus escritos, era que você criticasse o livreco, sob o ponto de vista do próprio livreco; e que, como legionário da mesma legião, ocupado também neste belo trabalho da literatura contemporânea, que consiste em fazer o inquérito experimental das sociedades, me cen-surasse só por os meus golpes não serem bem destros, nem bem certeiros, nem bem úteis, nem bem claros, nem bem eficazes. Mas vê-lo de repente surgir no campo inimigo, com uma sobrecasaca séria de conselheiro de Estado, gritando — “Em Lisboa não se deve tocar! Tudo aqui é puro, belo, e grande! Vergonha ao maldizente que ouse rir da cidade incomparável, perfectissima Urbs!” — eis o que verdadeiramente me assombrou! Por que tão singular mudança? Ó Fialho, foi você eleito diretor-geral de um Banco? É você o inspirador de um sindicato? Recebeu você, das mãos do monarca, a grã-cruz de São Tiago? Esta você diretor-geral de uma grande repartição do Estado? Que interesse supremo o fez aliar-se ao Conselheiro Acácio? Está você, por acaso, apaixonado pela mulher de Acácio, e finge-se assim pudico, ordeiro e patriota, para lisonjear o benemérito e cornudo homem... Sapristi, je crois que j’ai touché juste! Nessa sua crônica sobre “Os Maias”, Fialho, há uma mulher!! Se assim é, (e estou certo que é assim) como você deve ter sofrido, pobre amigo! Conheço essa situação, é medonha!... É ela ao menos bonita, e cochonne?
Sério, sério — a sua crônica, escrita com a sua costumada verve, espantou-me. Que você fizesse ao calhamaço um enterrement de primeira classe, bem está! O grosso cartapácio, com mil bombas, fervilha de defeitos! As duas próprias cenas que você incondicionalmente louva, estão bem longe de me agradar! Mas que você fizesse a vista grossa sobre esses defeitos, para se lançar sobre mim com indizível fúria e acusar-me de falta de respeito pelas nossas virtudes, pela nossa elevação moral, pela grandeza da nos-sa civilização, e pelo esplendor de Lisboa como capital — é forte! Cousa espantosa ver o meu velho e rebelde Fialho repetir, quase ipsis verbis, um grande rasgo patriótico do Tomás Ribeiro, há anos, nas Câmaras, declarando “traidores os que faziam, em escritos públicos, a crítica dos nossos costumes”! O Ramalho fez, sobre essa saída do lírico da Judia, um artigo extraordinário nas Farpas.
Esta carta já vai longa. E não me alargo por isso mais, além deste ponto de vista da sua crônica, — que foi o que me impressionou. Havia, porém, nela, ainda outros detalhes, que eu desejaria discutir com você, violentamente. Assim, diz você que os meus perso-nagens são copiados uns dos outros. Mas, querido amigo, numa obra que pretende ser a reprodução de uma sociedade uniforme, nivelada, chata, sem relevo, e sem saliências, (como a nossa incontestavelmente é) — como queria você, a menos que eu falseasse a pintura, que os meus tipos tivessem o destaque, a dessemelhança, a forte e crespa individualidade, a possante e destacante pessoalidade, que podem ter, e têm, os tipos de uma vigorosa civilização como a de Paris ou de Londres? Você distingue os homens de Lisboa uns dos outros? Você, nos rapazes do Chiado, acha outras diferenças que não sejam o nome e o feitio do nariz? Em Portugal há só um homem — que é sempre o mesmo ou sob a forma de dândi, ou de padre, ou de amanuense, ou de capitão: é um homem indeciso, débil, sentimental, bondoso, palrador, deixa-te ir; sem mola de caráter ou de inteligência, que resista contra as circunstâncias. É o homem que eu pinto, sob os seus costumes diversos, casaca ou batina. E é o português verdadeiro. É o português que tem feito este Portugal que vemos.
Outra cousa bem singular é você duvidar da exatidão de certos detalhes, traços de sociedade, como as senhoras falando de criadas ou apostando dez tostõezinhos nas corri-das, etc. Oh homem de Deus, onde habita você? Em Lisboa ou em Pequim? Tudo isso é visto, notado em flagrante, e por mim mesmo aturado sur place!
Mas não palremos mais. Vocês, em todo o caso, hão de findar por me fazer zangar. O Carlos Valbom acusa-me de escrever à francesa, e com galicismo que o arrepiam; e diz isto em períodos absolutamente construídos à francesa, e metendo em cada dez palavras cinco galicismos! Você, por outro lado, nunca tomou a pena, que não fosse para cair sobre os homens e as cousas do seu tempo, com um vigor, uma veia, um espírito, um éclat que fazem sempre a minha delícia. E quando eu faço o mesmo, com mais moderação, infinitas cautelas, et une touche très juste — você aparece-me, e grita, “aqui del-rei patriotas!” É escandaloso. Para vocês tudo é permitido: galicismos à farta, pilhérias à pátria, à bouche que veux-tu? A mim, nada me é permitido! Ora sebo!
Positivamente, basta de cavaqueira.
Diga ao Oliveira Martins que eu lhe mando, por este correio, mais fradiquice. E você, caro Fialho creia sempre na sincera estima e verdadeira admiração, com que lhe aperta a mão o seu muito amigo
Bristol, 8 de agosto de 1888.
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