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sexta-feira, 8 de agosto de 2008

A seca sobre um lago


Superexploração dos recursos naturais fez o chão afundar e transformou a água em artigo de luxo

Adriana Carranca, enviada especial



Sob o sol do fim de tarde, a luz incide em finas partículas de poluição que pairam no ar seco, represadas pela cadeia de montanhas vulcânicas que cercam a Cidade do México. Formam uma densa nuvem, colorindo a maior metrópole do continente americano de um amarelo desértico. É um cenário árido demais para um antigo vale de águas. Os primeiros sinais de civilização surgiram em uma pequena ilha no centro do Lago Texcoco, o maior de cinco que formavam o Vale do México. Juntos, somavam 891 quilômetros quadrados de superfície. Sobre esse lago está hoje a terceira maior megacidade do planeta (com 19,028 milhões de pessoas, atrás de Tóquio e Nova York), onde 76,5% da população consome menos que os 150 litros diários de água recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

A mancha urbana da região metropolitana da Cidade do México ocupa 1.926 km2 - o dobro do aqüífero original - e avança sobre a cordilheira. O processo de urbanização apropriou-se do solo a uma velocidade de um campo de futebol por dia nos últimos 60 anos. Assim como a cidade de São Paulo, a capital mexicana cresceu à revelia das condições geográficas e à custa do esgotamento de recursos naturais, até o ponto de comprometer dramaticamente o fornecimento de água, drenada para permitir a ocupação do solo. Esse processo tornou necessária a exploração do lençol freático, que, por sua vez, também está secando. A extração é hoje maior do que a capacidade de reposição. O esvaziamento do subsolo e a perfuração de 6 mil poços fizeram a superfície ceder e a cidade afundar.

O arquiteto e urbanista Alfonso Iracheta, integrante do Conselho Consultivo do Programa de Assentamentos Humanos das Nações Unidas, resume: "Hoje, 20 milhões de moradores têm de abrir uma garrafa plástica para beber água. É uma cidade lacustre que corre o risco de morrer de sede." O esgotamento dos lagos obriga a exploração de fontes distantes da capital. A água do sistema Cutzamala, a 126 quilômetros do centro, tem de ser bombeada a mil metros de altura para atravessar as montanhas, operação que custa 1,3 bilhão de pesos (R$ 201 milhões) por ano e consome energia suficiente para abastecer a segunda e a terceira maiores cidades do México, Guadalajara e Monterrey, onde vivem ao todo 8 milhões de pessoas.

Paradoxalmente, o desenvolvimento das civilizações no vale, a 2.239 metros de altitude, só foi possível graças ao grande sistema lacustre. Segundo a lenda, os astecas se estabeleceram na região em 1325 por ordem de Huitzilopochtli, o Deus da guerra e do sol, que os orientou a fixar-se onde encontrassem uma águia devorando uma serpente, o que foi visto no Lago Texcoco. Ali permaneceriam por 200 anos até a conquista pelos espanhóis. Quando os europeus chegaram, encontraram um avançado sistema de canais e pontes, diques e aquedutos. A água doce dos mananciais de Xochimilco e Chalco, usada para consumo e limpeza pessoal, era separada da água salina do Lago Texcoco. Já havia controle de enchentes - os primeiros piscinões podem ser vistos nas pirâmides de Teotihuacán, erguidas entre 600 e 150 a.C. Os astecas herdaram o sistema dos teotihuacanos. A relação harmoniosa com a água permitiu à cidade se tornar auto-suficiente e sustentou a expansão do império do norte do México à Guatemala, entre os Oceanos Pacífico e Atlântico. Grandes cidades surgiram nos espaços secos dos lagos e, no século 16, a região metropolitana já chegava a 1 milhão de pessoas. A economia era baseada na agricultura, com plantio sobre chinampas, ilhotas artificiais feitas de uma espécie de rede de junco, preenchidas com a terra fértil do lodo e fixadas nas margens com as raízes das árvores plantadas nas extremidades. Legumes, verduras e flores eram transportados em barcaças por canais até o centro, que, em época de colheita, virava um mercadão a céu aberto sobre o lago.

Atualmente, as embarcações já não vão muito longe. O barqueiro Mario Acoatl nos conduz pelo único canal onde ainda se conserva o que se poderia chamar de modo de vida asteca. Acoatl vive e navega pela lâmina d’água, como fizeram seus pais, avós e bisavós, há 50 anos. Mas hoje leva turistas em uma trajinera, espécie de gôndola, com direito a músicos mariachis. Cobra em moeda americana US$ 30 (R$ 48), dos quais só recebe 15% do dono dos barcos. Como ele, 150 descendentes de lavradores ganham a vida em nove embarcadouros. "Não há mais como viver da agricultura", lamenta.

A 28 quilômetros do centro, o Lago Xochimilco foi quase engolido pelo avanço da cidade, mas, elevado a Patrimônio da Humanidade pela Unesco em 1987, ainda preserva impressionantes 189 quilômetros de águas. As velhas chinampas hoje estão fixadas no solo por raízes tão longas que as tornam indissociáveis da terra firme. Moradores construíram casas sobre elas. Usam canoas a remo como transporte - o canal, agora abastecido com água tratada, está tão raso que não comportaria um barco a motor.

"A Cidade do México já foi a Veneza das Américas", explica a engenheira hídrica russa Maria Perevochtikova, que se mudou para a Cidade do México para pesquisar sobre o complexo sistema lacustre. Os espanhóis viam os lagos como um perigo. A água parada poderia provocar contaminações, além de enchentes. Mas, quanto mais se apropriavam do lago, mais cheias ocorriam. "Eles não sabiam como manejar uma cidade sobre um lago", diz. Em 1789, abriram uma fenda na cordilheira, o Tajo de Nochistongo, para drenar a água. Desde então, os sistemas de drenagem foram sendo ampliados no ritmo da expansão urbana, a custos econômicos e ambientais altíssimos. E a metrópole ainda sofre com enchentes - geograficamente, o Vale do México é como um vaso de barro, tendo o lago como fundo e montanhas nas laterais. A baixa porosidade faz com que o solo retenha 80% da água.

Os sistemas de drenagem são insuficientes até hoje, problema agravado pelo afundamento da cidade, que ocorre a um ritmo de 10 centímetros ao ano. O Grande Canal, que escoava as chuvas por gravidade, perdeu o declive natural e, hoje, a água tem de ser bombeada para fora da cidade, o que reduziu a capacidade de escoamento de 80 para 15 metros cúbicos por segundo. O sistema de drenagem profunda que opera desde 1967 com tubos subterrâneos de até 12 metros de diâmetro também já dá sinais de desgaste.

O crescimento da cidade exigiu o uso do sistema para escoar o esgoto, misturado à água das chuvas. Operada no limite, e sem manutenção, a rede tem infiltrações e rachaduras, contaminando o lençol freático. A situação é agravada por assentamentos irregulares, sem saneamento. Nos hospitais, são comuns os casos de doenças gastrointestinais causadas pelo consumo da água contaminada e pela irrigação de plantações no cinturão verde com água de reúso. Só 8% da água é tratada. Essa escassez se dá, também, pela distribuição desigual. Na rica zona oeste da metrópole mexicana, o volume disponível per capita chega a 567 litros de água por dia, enquanto a zona leste sofre com a seca.

Ramón Hernandez era camponês até que sua terra secou. "Só me restou comprar este caminhão-pipa para ganhar a vida", diz. Escassa, a água tornou-se meio de vida para milhares de caminhoneiros, que compram o produto de terceiros, provavelmente extraído ilegalmente. Pagam o equivalente a R$ 1,85 pelo metro cúbico e revendem a R$ 6,51 para pessoas como Maria Candelária, de 72 anos, que vive em um assentamento novo e irregular ao pé das montanhas, no município de Chimalhuacán, região metropolitana. A água não chega lá, apesar de se avistar o pedacinho que resta do Texcoco. Sem rede de saneamento nem esgoto, Maria Candelária paga caro pela água limpa e devolve a suja, que escorre pelo chão de terra, saída do vaso sanitário e do tanque no quintal onde a mulher lava as roupas e a louça. Para viver assim, ela desembolsou R$ 2,32 mil de entrada e pagará outros R$ 232 mensais por três anos ao grileiro que loteou os terrenos ao lado de um lixão. A casa só tem sala e quarto para Maria Candelária, um filho, uma filha e dois netos, de 16 e 17 anos. A única renda vem da filha, ajudante de cozinha. "Ah, o mais indispensável aqui seria a drenagem, a luz, água potável e escola para os meus netos... Falta tudo." Como ela, 60% da população da região metropolitana da Cidade do México vive em assentamentos com pouca ou nenhuma infra-estrutura e cada vez mais distantes.

A escassez de emprego - 60% da população está no mercado informal - impossibilita o acesso a crédito para compra de um imóvel regular. Segundo o arquiteto e urbanista Iracheta, a renda necessária é de 6,3 salários mínimos, mas 85% da população ganha menos de 6. Expulsos do mercado formal, os pobres se espalham para a periferia e a mancha urbana cresce para onde não há água nem nada.

A situação é agravada pela falta de um modelo de gestão metropolitana compartilhada. O Distrito Federal tem 16 delegações, espécie de subprefeituras, com representantes eleitos diretamente e um chefe de governo. Há os prefeitos dos 59 municípios agregados, o governador do Estado do México e o do Estado de Hidalgo, além do presidente - como a cidade é capital do país, o governo federal controla setores-chave em questões que envolvem a segurança nacional. Isso pode significar ter de passar pela aprovação de 79 autoridades para fazer uma linha de metrô que atravesse a região metropolitana.

O transporte público é um exemplo. Todos os dias, são feitas 33 milhões de viagens na região metropolitana. A construção do metrô teve início na mesma época do de São Paulo, no começo da década de 1970, e é quatro vezes maior em extensão. Mas as 11 linhas que somam 201,4 quilômetros e 175 estações só atendem a capital - o primeiro trem metropolitano, de superfície, fica pronto em três meses. Com isso, o metrô perdeu espaço para o transporte movido a gasolina e diesel, muito mais poluidores: na Cidade do México circulam cerca de 5 milhões de carros, 160 mil táxis - 25% deles irregulares -, 4 mil ônibus e 50 mil velhas e indisciplinadas lotações, que fazem 52% das viagens.

Um novo modelo de transporte, o Metrobus - cópia da experiência de Curitiba - foi adotado há dois anos. Por um corredor de 28,2 quilômetros, o maior da América Latina, circulam 98 ônibus articulados que, juntos, têm capacidade para até 15.680 pessoas. Para colocar o Metrobus em operação, o governo negociou a concessão do serviço com as empresas que operavam no trajeto, em troca da retirada de circulação de 262 lotações e 90 ônibus.

Entre uma estação e outra, leva-se 1,6 minuto. Numa sexta-feira, hora do rush, atravessamos a cidade de norte a sul em 1 hora e 10 minutos. Os ônibus são silenciosos e menos poluentes - 40 mil toneladas de gases efeito estufa a menos por ano. Mas também só circulam na capital. A rota leste-oeste está sendo construída e a integração com outros meios de transporte só ocorre em poucas estações. As lotações custam R$ 0,38 na capital e até R$ 0,77 na região metropolitana, o metrô sai por R$ 0,30 e o Metrobus, por R$ 0,77.

"Contra o transporte público, temos ainda uma cultura perversa do carro como sinônimo de status social. E uma indústria automobilística que explodiu com o boom do petróleo, nos anos 1980, e com o Nafta (Tratado Norte-Americano de Livre Comércio) na década de 1990", diz a demógrafa Clara Salazar Cruz, do centro de estudos El Colégio de México. Em porcentagem, a taxa de crescimento anual da frota foi quase quatro vezes maior do que a da população no período mencionado por Clara.

Para suportar o fluxo, a cidade está construindo o terceiro anel viário. Mesmo com o rodízio que proíbe a circulação de 20% da frota um dia por semana, o primeiro anel ficou tão saturado que o governo construiu um segundo andar, espécie de Minhocão, nos trechos intransitáveis. Um quarto anel está previsto para circular as três maiores e vizinhas regiões metropolitanas do país: a do Distrito Federal, de Toluca e Cuernavaca (seria o mesmo que fazer um Rodoanel englobando São Paulo, Campinas e Baixada Santista).

O governo tenta atrair a população de volta ao centro, que ficou caro e perdeu 1 milhão de pessoas na última década. Mas a iniciativa privada investe em novos e distantes bairros, como Santa Fé, metro quadrado mais caro da metrópole - R$ 3,1 mil. Onde era um antigo lixão, subiram 400 torres, sinal do adensamento da cidade que já esbarra nos pés da cordilheira. Como ainda não há transporte público, as empresas têm de fretar ônibus para seus funcionários. Quem pode vai de carro. Os veículos particulares respondem por 20% das viagens na região metropolitana, que tem 80% do território ocupado pela malha viária, e provocam 95% da poluição na atmosfera - agravada pela falta de chuvas na já árida Cidade do México.

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