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sexta-feira, 13 de junho de 2008

Nada mais afrodisíaco do que ser 'celebridade'

Big Brothers e outras Bobagens

Ivan Lessa

Em geral, a Holanda fica quieta lá por suas bandas às voltas com diques, tulipas, moinhos, tamancos e livre comércio de maconha. Não chateia ninguém.

Tem um futebol beirando o razoável e mais de um jogador holandês fez o nome aqui nestas ilhas. Agora, quando cisma de fazer uma besteira, sáiam da frente.

Em 1997, o indivíduo John de Mol bolou aquilo que na sua cabeça seria uma “telenovela da vida real”, conforme ele a definiu, e através de sua produtora, a Endemol, lançou-a no seu país de origem. Torcendo para pegar.

Para que os holandeses saíssem de seu estupor drogado e acompanhassem, por alguns meses, o dia-a-dia de um bando de infelizes, escolhidos a dedo por suas insuficiências mentais e físicas, trancados numa instalação chamada de casa do “Big Brother”, o Irmão Grande, feito o de George Orwell, que a tudo e a todos espionava. A primeira série daquela que no próprio país de origem foi chamada de Big Brother deu-se em 1999.

O resto é história. E história besta. Como se para deixar patente que a Humanidade realmente não vale nada, a coisa pegou para valer. Em mais de 70 países.

Pense num país e fique certo de que lá há uma versão do BB. Angola, Namíbia, Uganda, Zimbábue, Sérvia, Bósnia-Herzegovina, Egito, Bahrein, Líbano, Síria, Chile, Equador, Peru, Noruega, Irlanda, Filipinas, México e, claro, Brasil. Lá estão, todo ano, aspirantes a um tutu gordo e uns tempinhos de “celebridade”.

Nada mais afrodisíaco, nestes tempos bocós de mola, do que ser “celebridade”. Matara ou morrer pela “celebridade”. Encurtando esse horror: é o popular BBB de nossas terras. E BBB também na Bulgária, com BBA na Austrália e BBF na França.

Aqui também tem. E pegou. Embora, com o alto preço dos combustíveis, a crise no mercado imobiliário e o multiculturalismo globalizante nivelando tudo por baixo, a audiência tem baixado ano após ano. A mais recente série, iniciada há coisa de 10 dias, não tem ido além dos 5 ou 6 milhões de espectadores. Ainda um pouco demais, para um país que se pretende civilizado. Politizando: este governo de Gordon Brown merece.

Interpretação erudita

Se eu fosse um professor marxista de literatura inglesa na Universidade Manchester, feito Terry Eagleton, eu veria a coisa por viés e ótica. Conforme a praxe acadêmica. O importante é não acompanhar o que na casa lá se passa.

Para empregar apenas um poderoso instrumental crítico hodierno embasemo-nos ainda na lupa, telescópio ou, microscópio. Tudo menos assistir à biguana conflagração irmanada.

Segue abaixo minha interpolação de recente artigo publicado pelo ilustre mestre. Fiz, com alguma pretensão, mais ou menos o que Charlie Parker faria no sax com as estruturas harmônicas e melódicas de um clássico qualquer do cancioneiro norte-americano. Inovo e improviso. Pois aspiro à condição de “celebridade”, categoria “inovação”

BB de bebop

Vamos lá:

Na verdade, BB com gritaria e artimanhas sexuais, não é mais do que um retorno aos primeiros tempos do Cristianismo, quando a confissão era um espetáculo público.

A sala do BB que representa o “Diário” é o confessional, com o próprio Irmão Grande agindo como confessor, terapeuta, superego e quebra-galho. Na televisão, a privacidade é mentira. Inexiste. Sabemos que o casal, engajado nos embates de Eros sob o lençol, não está lá tão engajado assim, uma vez que não conseguem fugir à presença da câmera.

O voyeurismo de que acusam a audiência do BB é tão simplesmente conferir uma cena privada, embora os prazeres oculares do esquema nada tenham a ver com privacidade.

Como descobriu há tempos Samuel Beckett, nada é mais fascinante do que a banalidade. Num certo sentido, uma péssima notícia para os produtores de televisão, aqui no Reino Unido em geral às voltas com trama, narrativa, costumes e diálogos que, na melhor das hipóteses, contem uma história. Na era pós-moderna, enredo, ação e linguagem tornaram-se redundantes. Restaram apenas personalidades.

Nesta mais recente edição do BB, há personalidades escolhidas a dedo. Ou a nariz, faro. Um albino, um cego que gosta de se vestir como mulher, uma representante da raça negra antipática e desbocada, lourinhas e galãs, gente brega e gente besta. Só.

A classe média, com sorte dos patrocinadores, fica em casa só de olho e torcendo. Trata-se da alternativa para Eurocopa 2008. Com a vantagem de haver cobertura 24/7 (nós já usamos 24/7 a 24/7, certo?).

O inefável segredo do BB é que as pessoas não precisam ser interessantes para serem fascinantes. Macbeth e Hamlet já foram interessantes. Hoje, os cortesãos em torno ocupariam nossa atenção.

Encerrando

A democracia ideal é supremamente importante simplesmente pelo fato de, nela, as pessoas serem elas mesmas. Nem mesmo Thomas Jefferson poderia prever isso.

Como não poderia prever o fato de que um monte de tijolos, por estarem expostos numa galeria de arte, passariam automaticamente a constituir objetos de arte. Hoje para uma pessoa ser interessante basta aparecer na televisão – alguém que se dispôs a compartilhar daquilo que é feito com quem quiser prestar atenção.

A vida dos outros é tão sem graça quanto a nossa. John Milton sabia disso e poetizou em torno em seu Paraíso Perdido. Orwell, claro, também sabia. Nós é que não prestamos mais atenção às gentes e coisas. Preferimos escolher entre um albino ou um travesti cego.

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