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domingo, 5 de abril de 2009

Drauzio Varella e os transplantes



O médico estreia uma nova série sobre o assunto e descobre que o problema no Brasil não é a falta de órgãos, mas a falta de recursos médicos para aproveitá-los





Cristiane Segatto
 Reprodução
CRISTIANE SEGATTO
cristianes@edglobo.com.br
Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve sobre medicina há 14 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais de jornalismo

No dia 12, o médico Drauzio Varella estreia mais uma de suas ótimas séries exibidas no Fantástico, da TV Globo. Desta vez, o nome será Transplante, o dom da vida. Drauzio passou mais de um ano trabalhando no tema. Viajou pelo Brasil e para países como China, Espanha e Estados Unidos para conhecer de perto realidades que podem contribuir para a melhoria do sistema brasileiro. Teve tempo e dinheiro à vontade para apurar o que fosse necessário, um investimento raríssimo na imprensa brasileira. Conversei com ele nesta semana para saber o que descobriu.

Assim como os bons repórteres, Drauzio acha que nada substitui o trabalho de campo. As ideias preconcebidas que temos antes de começar a apurar uma reportagem e toda a discurseira que ouvimos na redação costumam cair por terra quando encaramos a realidade como ela é. Na área de saúde (e acho que nas outras também), isso acontece o tempo todo. Drauzio tinha a convicção de que faltam órgãos para transplante porque as famílias dos mortos não aceitam doar. Durante a apuração das reportagens, aprendeu que estava errado. Em São Paulo, 70% das famílias aceitam fazer a doação. A cada ano, o estado registra 14 mil mortes encefálicas. Isso significa que haveria quase 10 mil doadores potenciais a cada ano. Em 2008, no entanto, o estado que concentra o maior número de transplantes do país realizou apenas 1.317 procedimentos desse tipo.

As filas não andam porque a captação de órgãos no Brasil é muito deficiente. A captação é o nome técnico para a série de procedimentos necessários para que a retirada dos órgãos se concretize. O cadáver precisa ser mantido num leito de UTI e receber uma série de cuidados para que os órgãos não entrem em sofrimento. Além disso, o médico que relata o óbito à central de transplantes precisa preencher uma papelada que toma um tempo que ele simplesmente não tem. "Quando o médico tem dez doentes para cuidar e ainda precisa zelar pelo cadáver, ele escolhe os vivos", diz Drauzio Varella.


Drauzio foi à Espanha para entender como os espanhóis resolveram esse problema. É o país que tem o maior índice de doação por habitante em todo o mundo. Descobriu que a solução pode ser simples. Em cada hospital de grande movimento há um plantonista contratado exclusivamente para cuidar dos cadáveres na UTI e preencher todos os papéis necessários para a realização dos transplantes. "O custo de se manter um plantonista a mais em cada hospital é infinitamente inferior ao benefício oferecido pelos transplantes a tantas pessoas", afirma Drauzio.

O médico viajou também aos Estados Unidos para conhecer as técnicas mais avançadas e esteve na China. Foi a primeira equipe de TV brasileira a filmar um transplante de rim intervivos no país. Os transplantes desse tipo vem crescendo na China. Durante muitos anos, no entanto, o país conseguiu reduzir a espera pelas cirurgias ao usar órgãos de condenados à morte. O utilitarismo chinês é chocante. Uma ambulância estaciona ao lado do local onde os presos são executados. O cadáver é levado para o carro e aberto ali mesmo para a retirada dos órgãos. "Quando estive lá, os chineses disseram que estavam deixando de usar esse sistema", diz Drauzio, sem muita convicção.

Ainda não assisti à série, mas imagino que tenha sido tão bem feita quanto as anteriores. Durante meses, Drauzio acompanhou doentes brasileiros que foram inscritos na lista de transplante e se tornaram reféns de decisões alheias. Entrar numa fila dessas é uma das experiências mais devastadoras que uma pessoa pode enfrentar.

Durante os últimos anos, entrevistei muitos brasileiros nessa situação – principalmente os da fila do fígado, a lista mais cruel. Seis mil brasileiros disputam um fígado. Dois em cada três inscritos morrem antes de conseguir o transplante. Nunca esqueci um desses doentes. Humberto Costa tinha 54 anos e morava na Bahia quando outro Humberto Costa era o ministro da Saúde. Com o fígado destruído pela hepatite C, Humberto (o sem poder) foi inscrito na fila de transplantes de São Paulo em 2000. Esperou cinco anos até se tornar o primeiro da fila entre os pacientes com tipo sanguíneo B. Achou que sua vez havia chegado. Mudou-se para São Paulo com a mulher e instalou-se num flat apertadinho perto do hospital à espera do telefonema salvador. Quando o conheci, ele estava há oito meses como o primeiro da fila. E o telefonema nunca aconteceu. Reproduzo aqui um pouco de sua agonia:

 Reprodução
Humberto Costa usava práticas orientais na tentativa de melhorar a qualidade de vida e sobreviver na fila do transplante de fígado. Não conseguiu: morreu antes

"Sonho que meu doador apareceu e acordo à noite achando que o telefone está tocando. Quando a bateria do celular descarrega, fico tenso. Só estou aguentando esse drama porque descobri uma prática oriental que contribui para a purificação física e espiritual. Não quero perder meu lugar na fila depois de tanto tempo".

A preocupação de Costa era totalmente justificável. Naquele momento, em julho de 2005, o Ministério da Saúde pretendia mudar os critérios para inclusão de pacientes na fila do fígado. Até aquela data, o que valia era a ordem cronológica (os pacientes que entraram na fila primeiro eram operados primeiro). As autoridades resolveram adotar o critério de gravidade (chamado de Meld). Por esse critério, os pacientes em estado mais grave ganham pontos adicionais e ocupam as primeiras posições na fila. Para alguns especialistas, a mudança foi benéfica porque deu alguma chance aos pacientes graves que não resistiriam à espera. Para outros especialistas, a mudança não será capaz de produzir benefícios enquanto a oferta de fígados for imensamente inferior à quantidade de candidatos.

A discussão é infindável, mas a alteração de critérios mudou a história de Humberto. As autoridades alteraram a regra com a bola em campo (como se diz no futebol). Não houve uma fase de transição. De uma hora para outra, o doente que permaneceu durante oito meses como o primeiro da fila perdeu dezenas de posições na lista.

Alguns meses depois, recebi um telefonema da Bahia. Do outro lado da linha, um parente de Humberto me deu a notícia:

– Ele morreu. Sem conseguir o transplante.

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