Veja - 11/03/2011 |
Juízes que atuam contra o crime organizado, principalmente no interior do Brasil, se dizem intimidados pelas constantes ameaças de morte e sequestro. Com medo, pedem a criação de uma polícia exclusivamente para protegê-los
Tentativas de intimidação da Justiça, em que o perigo ultrapassa a simples ameaça e se materializa em atentados, sempre foram frequentes em regiões fronteiriças e nos grotões do país, onde a criminalidade se aproveita da débil presença do estado para atuar com mais desenvoltura. Por isso, a magistratura longe dos grandes centros já é uma atividade de extremo risco. "A vida de um juiz que aplica a lei com rigor acaba, de uma formna ou de outra. Ou os bandidos te matam, ou você se transforma em um refém do próprio medo", diz Odilon de Oliveira. Desde 1998, o juiz de Campo Grande é acompanhado por pelo menos três policiais federais. Ele só sai de casa para trabalhar. "Não tenho mais vida social, conto nos dedos de uma das mãos os amigos que ainda preservo e não me lembro da última em vez que fui ao cinema", lamenta. Mesmo em casa, a presença de homens" armados é uma constante. O primeiro dos três pavimentos da residência foi transformado em alojamento para os seguranças. Apesar disso. Odilon nunca cogitou a hipótese de abandonar sua área de atuação. Mas seu sentimento de vulnerabilidade é tamanho que faz uma advertência preocupante: "Não me arrependo, mas também não aconselho os jovens juízes a seguir o meu caminho". O Brasil tem 2 000 juízes federais, 500 deles atuam na esfera criminal. responsável pelos crimes mais graves e, naturalmente, por julgar os criminosos mais perigosos. A situação das comarcas afastadas dos grandes centros é a mais precária. No município de Ponta Porã, na fronteira de Mato Grosso do Sul com o Paraguai, a juíza Lisa Taubemblarr aguarda há um mês resposta a um pedido de proteção. A solicitação foi feita depois que se descobriu que um traficante condenado por Taubemblau orquestrava um plano para executá-la. Os agentes interceptaram telefonemas e mensagens realizados de dentro do cárcere, ordenando que "apagassem aquela juíza". Até que a Polícia Federal providencie um destacamento para garantir sua segurança, a juíza está sendo escoltada por um grupo de cinco agentes pagos pelo Tribunal Regional Federal. "Nós somos alvos fáceis". afirma ela. Um detalhe importante para entender a dimensão do problema: o tal traficante não é uma personalidade no mundo do crime. A juíza Raquel Corniglion sabe o que o nome e a ficha de um climinoso podem significar na hora de tomar uma decisão. Ela atuou na área de execução penal do presídio de segurança máxima de Campo Grande entre 2007 e 2009. quando a cadeia tinha como detento ilustre o traficante Fernandinho Beira-Mar. Em 2008, Raquel teve de decidir sobre um pedido de transferência de Beira-Mar para o Rio de Janeiro. Durante o andamento do processo, a polícia descobriu que o bandido mais perigoso do país planejou raptar os filhos da juíza para forçar uma decisão a seu favor. Mesmo diante do perigo, Raquel teve de se virar sozinha. "Passei quinze dias dormindo em locais diferentes todas as noites. Meu filho mais novo, de 3 anos, me acompanhava até o fórum. O mais velho teve de passar um mês com um casal de amigos dos meus pais que eu mal conhecia. Foi horrível", comenta. E desabafa: "Se eles tivessem conseguido pegar meus filhos, qual seria minha decisão?". Hoje, a juíza mora no interior de Mato Grosso do Sul, mas não divulga o nome da cidade, e ainda se considera refém dos criminosos. A situação preocupa tanto que a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) defende a criação de uma força de segurança que se dedicaria exclusivamente à proteção dos magistrados. "Não podemos depender da disponibilidade da PE Em regiões críticas, como as fronteiras, o efetivo é pequeno e há problemas logísticos imensos", afirma o presidente da entidade, Gabriel Wedy. A classe defende também mudanças na lei para acabar com a personalização dos processos. Hoje, é comum que o mesmo magistrado - principalmeme em comarcas menores conduza um caso da fase inicial até a condenação do réu. Isso poderia ser feito por um colegiado de juízes. A intenção é diluir a participação pessoal dos juízes no processo, o que dificulta a perseguição aos responsáveis pela investigação. Tal medida foi adotada na Itália nos anos 90, durante a Operação Mãos Limpas, ofensiva do governo contra a atuação da máfia, que resultou na aberrura de mais de 200 processos e 600 condenações. O crime organizado sempre teve a intimidação às autoridades como estratégia para o sucesso de suas empreitadas ilícitas. O papel do estado deveria ser justamente impedir esse tipo de sabotagem. Mas o que se percebe hoje é que já existe um considerável desequilíbrio de forças. Diz o jurista Luiz Flávio Gomes: "Nosso sistema de proteção é rudimentar. Muitos juízes não aceitam trabalhar em determinadas regiões por temer investidas de criminosos". O juiz Pedra Francisco da Silva é um exemplo. Em treze anos de atuação no Acre, ele mandou para a cadeia mais de cinquenta traficantes e criminosos de colarinho branco, além do ex-depulado Hildebrando Pascoal, o homem que trucidava suas vítimas com uma motosserra. Os tentáculos das organizações que combateu avançaram sobre sua família. Há seis anos, ele convive com o medo. Em 2005, a polícia prendeu um grupo de pisrolerros contratados para matá-la. "Acabei me tornando um prisioneiro. Sempre que queria sair com minha esposa, tinha de comunicar à equipe de escolta com antecedência. Acabou minha privacidade", comenta. Em 2008, o perigo chegou bem perto. Quatro homens armados invadiram sua casa. "Só não morri porque mudava minha rotina diariamente. Naquele dia, saí de casa quinze minutos antes do usual", lembra. O juiz Adelmar Aires Pimenta da Silva, do Tocantins, trocou a Vara Criminal pelo Juizado de Pequenas Causas depois que seus filhos se tornaram alvo de criminosos. Em 2009, Pimenta da Silva ordenou a prisão de uma quadrilha que utilizava aviões, fazendas e se valia de proteção policial para distribuir drogas. Logo depois das condenações, foi descoberto um plano para sequestrar o filho de 4 anos do magistrado, que deveria ser trocado pela libertação de um dos integrantes da quadrilha. Assustado, Pimenta da Silva solicitou transferência da vara criminal em setembro do ano passado, quando descobriu que um dos réus, que havia saído da cadeia era seu vizinho. "Esse bandido morava a 100 metros da minha casa. Não podia ficar tão exposto. Mesmo com a mudança, ainda convivo com o medo de fazerem algo contra meu filho", diz. Até em capitàis onde o estado se faz presente e a visibilidade serve de escudo para o magistrado, os mesmos expedientes de intimidação são utilizados para constranger a toga. No Rio de Janeiro, a juíza Ana Paula Vieira de Carvalho, conhecida pela rigorosa condução de casos polêmicos, como o do ex-banqueiro Salvarore Cacciola e da máfia de jogos ilegais, vive sob ameaça. Em 2009, ela recebeu um DVD com imagens de homens portando malas de dinheiro. O áudio da gravação garantia que os personagens eram policiais recebendo propina para executá-la. "É horrível ter medo de andar na rua. Pior ainda é saber que meu caso talvez nem se compare ao de colegas que atuam em áreas onde o estado não é tão forte", comenta. Ajuíza reforçou os cuidados com a segurança e dirige um carro blindado. O enfraquecimento da magistratura é um mal comum a democracias pouco desenvolvidas e, mesmo nestas, em situações-limite, como a que a Itália enfrentou nos anos 90 quando decidiu dar um basta ao poder da máfia. Para Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), o estado brasileiro não está dotado de recursos para proteger seus juízes como seria desejável. "É preciso evitar que a atual realidade seja o embrião de um processo muito mais grave de enfraquecimento das instituições republicanas", afirma Mendes. Resume o jurista Paulo Brossard: "Em um país onde o juiz tem medo, ninguém pode ficar tranquilo". |
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