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sábado, 12 de março de 2011

MAMÃE, EU QUERO MAMAR

No Brasil, políticos trocam de fantasia sem medo do ridículo. Neste ano, a moda são os liberais disfarçados de socialistas, mas o enredo é o de sempre
Veja - 11/03/2011




Para os brasileiros, o Carnaval começa no sábado, mas, para os partidos políticos, ele dura o ano inteiro. Chamar de partido a maioria das siglas nacionais, aliás, é uma licença poética. Na definição do filósofo irlandês Edmund Burke, apontado como o pai do conservadorismo, um partido é "um grupo de pessoas que se unem para promover o interesse nacional mediante o emprego de um processo específico, com o qual todos os seus membros se acham de acordo". Ou seja: um grupo de pessoas que comungam dos mesmos princípios, expressos num programa político, e que trabalham para o bem do país. Pouquíssimos partidos nacionais podem dizer que se reconhecem nessá definição. Na folia da política brasileira, fidelidade a princípios e programas sempre foi um samba atravessado. Mas, nas últimas semanas, a cacofonia atingiu níveis desconcertantes.

Ao admitir a intenção de sair do Democratas (DEM) e criar uma legenda temporária com o único intuito de fundi-la ao Partido Socialista Brasileiro - de onde poderá alçar voos mais altos -, o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, propiciou a constatação de que ele considera natural fazer uma gambiarra para burlar a Justiça. Desde 2007, está estabelecido que os mandatos pertencem aos partidos, e não aos políticos. Ou seja, quem troca de agremiação no meio de um mandato ou no exercício de um cargo público pode perdê-los. Foi a maneira que a Justiça encontrou para tentar frear dança das cadeiras que esculhambava ainda mais a vida no Congresso e no Executivo. Mas ela deixou uma brecha para um passa-moleque: ninguém perde nada se sai de um partido para fundar outro. Integrante de um partido de corte liberal, depositário das tradições ( UDN e da Arena, cujo programa defende a livre-iniciativa e o direito à propriedade, Kassab está disposto a jogar-se nos braços de uma agremiação de origem marxista que mantém em seu programa o propósito (risível) de socializar os meios de produção.

A iniciativa para lá de livre do prefeito paulistano de ir do liberalismo ao marxismo, com escala num partido-trampolim, não causou espanto entre seus pares. Pelo contrário. Políticos do DEM já avisaram que também querem ser socialistas. A senadora Kátia Abreu (TO), musa dos ruralistas e presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, está entre os candidatos a ingressar na agremiação-trampolim de Kassab: o Partido Democrático do Brasil, cuja sigla, PDB, parece ter sido feita sob encomenda para os inimigos do prefeito. Eles a rebatizaram de "Partido da Boquinha". O PSB cresceu à sombra do PT. Como teve um bom desempenho nas últimas eleições, especialmenre no Nordeste, e conta com um potencial candidato à Presidência da República, tornou-se uma opção atraente. O fato de seu programa defender o fim da propriedade privada é um detalhe. Eduardo Campos, presidente da sigla e desde já presidenciável, preocupado em não constranger os futuros filiados, já mandou recados insinuando que está mais do que na hora de rever o programa do partido. inspirado em um texto escrito em 1947.
Kassab e Campos não inventaram um jeito novo de sambar. Ao contrário do que ocorreu na Europa, onde os partidos surgiram com os estados modernos e se organizaram em torno de grandes doutrinas ideológicas, as siglas, no Brasil, sempre responderam a líderes, raramente a ideias. A maioria das legendas com assento no Congresso descende dos três grandes partidos que se organizaram no período imediatamente posterior ao Estado Novo, quando o ex-ditador Getúlio Vargas preparava sua volta ao poder nos braços do povo. Ele criou o Partido Trabalhista do Brasil (PTB) para colocar a crescente classe operária em sua base de apoio. Depois, abençoou a formação do Partido Social Democrático (PSD), liderado por governadores indicados por ele próprio durante o Estado Novo e que defenderiam as conquistas de seu governo. Como contraposição, surgiu a União Democrática Nacional (UDN), cuja bandeira era tão somente a oposição ao getulismo. Ou seja: as matrizes da política brasileira foram criadas por conveniência, e não guiadas por um ideário. Desses troncos confusos se originaram os ramos do PMDB, PTB, PDT. DEM, PP e PR. Partidos de mais para ideias de menos, como se pode concluir pela análise dos programas da maioria das siglas.

Quem lê o do Partido da República (PR), por exemplo, fica sem entender o que, afinal de contas, ele defende. O segundo artigo é, para usar uma palavra muito em moda. transcendental: "Mais que nunca, a Pessoa deve ser valorizada. Uma visão ideológica do Estado e da Sociedade faz com que o Homem se fracione, esquecendo sua qualidade de ser concreto, a grandeza de sua origem e de sua missão pessoal". Uma coisa, assim, bolística, do todo, entende? O Partido Democrático Trabalhista (PDT) dá tão pouca relevância a suas ideias que não atualiza o programa desde os anos 80. Entre as diretrizes ainda em vigor, estão a defesa da anistia ampla. geral e irrestríta para todos os crimes políticos e a exigência imediata da divulgação dos termos do acordo nuclear firmado entre o Brasil e a Alemanha, em 1975!

O PT, o PSDB e o PV - os três competidores da última eleição presidencial - se diferenciam um pouco dos demais por terem nascido com ideários próprios nos anos 80. Em sua plataforma, os petistas combinavam socialismo soviético com um tempero de social-democracia europeia. Os tucanos afirmavam-se social-democratas. Os verdes, por seu turno, aproveitaram o filão da ecologia para construir um partido. No entanto, o exercício do poder e as políticas de alianças há muito mergulharam essas siglas na geleia geral brasileira. Para o filósofo Denis Rosenfield, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, os partidos se tornaram federações de interesses regionais. "A maioria está empenhada apenas em conquistar ou manter os poderes em seus pequenos feudos estaduais ou em defender sua própria burocracia partidária. O PT, por exemplo, não defende os interesses dos trabalhadores, mas os da cúpula das centrais sindicais."

O Brasil tem, hoje, 22 siglas com assento na Câmara Federal e nenhuma com independência absoluta em relação ao governo. O modelo político brasileiro levou ao estabelecimento de um presidencialismo de características quase imperiais. Isso ocorre por causa de um mecanismo simples. A maior parte dos impostos corre para o caixa da União, e
de lá é distribuída. Como todos os partidos querem carrear recursos do governo federal para os estados e municípios e como todo governo dá preferência aos amigos, e não aos adversários -, a chamada base aliada do governo não para de se expandir. Ocorre que, nesses termos, o que era para ser negociação acaba virando coopração. Quem não é cooptado às claras faz corpo mole na oposição. "O Congresso abriu mão de uma de suas funções primordiais, que é fiscalizar o Execurivo. Os deputados não querem fiscalizar a Presidência. Querem verbas", diz o cientista político Roberto Romano. O adesismo automático das legendas ficaria mais difícil se elas fossem obrigadas a se organizar em torno de ideias claras e estivessem mais expostas à cobrança do eleitorado.

Com as regras atuais, isso é impossível. Os deputados, que formam o núcleo dos partidos, estão a anos-luz de distância do eleitor. Pesquisas indicam que 70% dos brasileiros não conseguem se lembrar do nome do candidato em quem votaram para deputado na última eleição. A melhor saída para corrigir essa distorção seria a implantação do voto distrital, em que cada região escolhe um representante no Parlamento. Além de aproximar o eleitor do eleito, o sistema aumenta a possibilidade de a população fiscalizar o trabalho de seu representante e acaba com o efeito Tiririca. A ideia é que o país seja dividido em 513 distritos, número igual ao de cadeiras na Câmara, e que cada distrito tenha direito de eleger um representante. Outra saída possível, e talvez complementar, adoção da lista fechada, em que se vota na legenda. Esse sistema tem a vantagem de ajudar a fortalecer os grandes partidos e eliminar os nanicos, o que puraria o cenário político. Um grande movimento em prol do voto distrital em preparação em São Paulo. Seus organizadores querem recolher 5 milhões de assinaturas para pressionar os parlamentares. No Congresso, o debate começou da pior forma possível. A comissão que discutirá o assunto reúne gente de valor como Valdemar Costa Neto (PR), estrela do escândalo do mensalão; José Nobre Guimarães (PT). chefe do assessor pego com dinheiro na cueca, em São Paulo; Ricardo Berzoini (PT), mentor dos aloprados que negociaram a compra de um dossiê antitucano na eleição de 2006; Paulo Maluf (PP), procurado pela Interpol por fraude e conspiração. É difícil imaginar que esses senhores se empenharão em alterar as regras que hoje garantem sua sobrevida em Brasília. A presidente Dilma Rousseff se comprometeu em apoiar a reforma no dia em que oficializou sua candidatura: "Quero dizer com todas as letras aos partidos políticos e ao país: não dá mais para adiar essa reforma. Ela é uma necessidade vital para corrigir equívocos, vícios e distorções".
Com reportagem de Fernando Mello, Kalleo Coura e Paulo Celso Pereira





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