10-08-08 |
Se para o Camões 2007 reuniu unanimidade a escolha de Lobo Antunes - sobre quem em 1996, nas páginas deste semanário nacional, já tecíamos, mais que o prognóstico, o desejo de ter nele um dos mais prováveis nobéis da Língua Portuguesa, ao lado de Saramago, Vergílio Ferreira, Jorge Amado, Cabral Neto - e se será de aplaudir a escolha deste ano, discutível está a ser a decisão de em 2008 só ter entrado no pleito o Brasil. Polémicas à parte, tentemos perceber por que é que Ubaldo Ribeiro é o agraciado com o Prémio Camões 2008. Não sem antes dizer que A Língua de Camões: doce e outros paladares era o nome escolhido para estas notas. |
A Língua de Camões: doce e outros paladares, porquê? Justifique-se: considerações sobre a Língua Portuguesa têm sido, ao longo do tempo, feitas em vários registos, que vão desde o referencial pedagógico e científico, passam pelo apelativo pedagógico e formativo, e no expressivo e exortativo da poética desembocam (ou ter-se-iam aí iniciado). Estes discursos, em registos vários, surdem sobretudo em determinados momentos marcantes desta caminhada de séculos da Língua Portuguesa. Surdir é termo recém-incorporado, reinventado para dizer de um surgir espontâneo, que na recepção atrai a atenção, e não só dos especialistas. Um desses momentos marcantes é o que se configura com as novas fronteiras culturais e políticas, nas quais uma expressão cultural própria começa a revelar. Através da criação literária, primeiro. Depois, e com a independência, essas fronteiras tornam-se ainda mais definidas, no espaço do que futuramente, hoje, chamamos a Lusofonia. Eça de Queirós (então Queiroz), mais que tudo sobre o que escreveu sobre o Brasil, traçou com a sua pena impressionista mas certeira uma nota que valoriza sobretudo a Língua Portuguesa nesse país, já, onde ele era tão amado, e que nunca terá pisado, ele que esteve em Havana (onde dirimiu muitas lutas laborais envolvendo os contratados chineses vindos de Macau). Eça de Queirós era tão sensível à beleza plástica da língua que se falava no Brasil que na sua obra-prima Os Maias fala desse português doce, com açúcar, então um luxo e como tal caríssimo. Vejamos, aí, uma nota valorativa sobre esta língua portuguesa, que hoje, e cada vez mais, pensamos una e plural. Unidade e pluralidade assumidas, por exemplo, em 1986 na reunião de Lisboa que tratou do Acordo envolvendo pela primeira vez Os Sete da Lusofonia. Unidade e pluralidade assinaladas no Dicionário da Academia de Ciências - Secção Letras, editado em 2001, que assume morabeza, as-águas e azágua, faxi, morna e mornar (não confundir com ’amornar’), entre largos milhares de novas entradas, aproximando-se do milhar os caboverdianismos. No mesmo sentido vai o dicionário de Antônio(sic) Houâiss, posterior e póstumo, que, se bem que centrado no português do Brasil, apresenta contributos das diversas línguas dos Oito. O que faz a língua? O léxico que está no dicionário? Se fosse só isso!... O léxico, e esse pode ser encontrado num dicionário, é apenas uma parte da língua e muitas vezes flutuante, instável sujeita a variações, sobretudo numa sociedade aberta, e cada vez mais aberta, porque as janelas são muitas e mudam sempre, com as aceleradas mudanças a nível mundial. E síncronas: agora nem é preciso um bater de asas da borboleta em Tóquio para agitar o ar no outro lado do Globo... O que faz a língua? O que faz a língua é a criação a que ela está sujeita, por exemplo a nível da organização dos seus constituintes, aquilo que muitos aprenderam como as partes da oração. O que faz a língua? O que faz a língua é essa criação, que vai do recorte sintáctico inovador, para inaugurar uma nova sintaxe plástica da pontuação. Ou seja, é o ritmo da respiração que determina as pausas e o leitor deve poder acompanhar esse ritmo. Criação, que por vezes caminha tão longe que as pessoas pensam: este autor, este, por exemplo, Saramago, estará louco, onde se viu não mostrar a fala das personagens utilizando o travessão, como dita o prontuário, e onde está o ponto, afinal está onde virgulou... O João Ubaldo Ribeiro não apontará para nenhuma ruptura nos parâmetros da escrita, tais como os referidos, dir-se-á que respeita a norma para, ousar-se-á dizer, para melhor se libertar a nível temático. A ruptura, a haver será na temática, uma observação, esta, que confessa tomar como base o lido no Viva o Povo Brasileiro, uma epopeia que canta os heróis, já não (só) os assinalados, dos arquivos documentais e das gestas literárias, mas também os que os documentos esqueceram ou apagaram. Como o anónimo povo, aqui reconstituído como o Leleu e a neta Dafé, os avoengos mortos e vivos, atirados para o quintal dos fundos para serem esquecidos. Avoengos esquecidos, até mesmo a Mãe Jesuína, mulata escura, destaca-se, que nunca deve aparecer, nem mesmo como antiga ama, sacrificada aia, na casa-palácio do filho. Tudo esquecer lutando contra si e a própria aparência racial para se reinventar um passado. Isto tudo faz Amleto, cujo nome, talvez predestinadamente escolhido para o afastar dos antípodas, afastar para longe as origens ao sul e reconstitui-las no mundo mais ao norte. Antepassados anglossaxónicos que a filha Carlota honra na palidez duma princesa nórdica. Mas em contraste chocante eis o Macário, o sétimo filho, cujos traços negróides o pai ameniza em ameríndios. O comendador ávido de legitimação busca-a na Europa, busca-a no incansável esforço de destacar o tronco ameríndio da sua consorte para justificar os traços fortes do filho sobrevivente à infância a que tantos não resistiram. O comendador triunfal, que tem de enfrentar o problema da raça, a esconder o tronco negro de África. O comendador a esforçar-se para historicizar a união entre o tronco ameríndio, o da princesa bugre, uma "Iracema", e um europeu. União legítima entre a América tropical e o seu descobridor, o antepassado português também aristocratizante porque "imemorialmente ao serviço real". Raízes do tronco ameríndio, raízes do tronco negro da África profunda e renovada, crioulizada, a emergir, por entre a copa singelamente iluminada, europeizada. Uma Europa que se quer transplantada, até nos tiques e agasalhos lanudos, eurotropicalizada. Este Viva o Povo Brasileiro dá-nos que pensar, porque surde da nação mais próspera, e da mais problemática em termos da sua identidade racial, dentre a comunidade lusófona. Terá sido por isso que escolheram o seu autor para representar a unidade e diversidade da Língua Portuguesa? A Língua Portuguesa língua está aí com toda a força, a assentar em raízes que começa a descobrir, raízes ávidas de tudo assimilarem, raízes aéreas para o futuro. Uma certeza: Agosto é tempo para continuar a ler para descobrir. Maria de Lourdes Lima |
domingo, 10 de agosto de 2008
Porquê o Camões 2008 para João Ubaldo Ribeiro?
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EÇA DE QUEIROZ,
José Maria Eça de Queiroz
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