Segunda-feira, 16.08.10
Correio Braziliense
Matemática do desperdício na Saúde
HELENA MADER
Em julho, o GDF decidiu alugar 12 máquinas para filtrarem o sangue de doentes renais em UTIs. Com os R$ 29 milhões do contrato, seria possível comprar 410 equipamentos.
A Secretaria de Saúde do Distrito Federal fechou um contrato de R$ 29 milhões para alugar 12 máquinas de hemodiálise para UTIs da rede pública — valor suficiente para comprar mais de 410 equipamentos. Os termos do contrato de locação, válido por 24 meses, foram publicados no Diário Oficial do DF de 26 de julho deste ano (veja fac-símile). Além do aluguel dos aparelhos, usados para filtrar o sangue de doentes renais, o acordo prevê o fornecimento de kits de bolsas efluentes, também usadas durante a hemodiálise. O governo informou que já está realizando uma auditoria nesse contrato e garantiu que suspendeu o negócio até o fim das análises técnicas.
Especialistas e pacientes que dependem do tratamento criticam o gasto alto com a locação e defendem a compra de novas máquinas, já que hoje faltam equipamentos desse tipo nos hospitais públicos. Os 1,2 mil doentes renais do DF que precisam da hemodiálise para sobreviver enfrentam dificuldades de acesso ao tratamento na rede pública.
É comum os pacientes terem que dividir o horário destinado à filtragem do sangue por conta da falta de máquinas. Em vez de permanecer ligada ao aparelho durante quatro horas, cada pessoa passa apenas duas horas em tratamento para que ninguém fique sem hemodiálise. Esse processo é essencial para a vida dos doentes renais, já que, sem a retirada de toxinas do sangue, o paciente pode morrer em um curto espaço de tempo.
O processo para locação das máquinas começou a ser feito no ano passado. Logo depois da elaboração do edital de licitação, o Tribunal de Contas do Distrito Federal pediu explicações. Os conselheiros do TCDF queriam saber por que o GDF optou pelo aluguel, em vez de comprar as máquinas. “Tendo em conta que o objeto licitado possui natureza jurídica de locação de bens, caberá à Secretaria de Saúde apresentar estudos que comprovem a vantagem da opção adotada em detrimento da aquisição dos bens”, diz trecho do relatório do conselheiro responsável pela análise do contrato, Jorge Caetano, apresentado em dezembro do ano passado.
Em maio deste ano, o TCDF reiterou o pedido de informações à Secretaria de Saúde. Mas o GDF não apresentou justificativas para alugar, em vez de comprar os equipamentos. Os conselheiros também questionaram o alto valor do contrato. “Determino à Secretaria de Estado de Saúde que, no prazo de 90 dias, comprove a adequação dos valores referidos no procedimento licitatório com os correspondentes no mercado”, indica trecho da decisão do Tribunal de Contas. As determinações do TCDF não foram seguidas e, ainda assim, o contrato foi assinado em julho deste ano.
Aparelho diferente
Pelo negócio, a empresa teria que equipar as UTIs com máquinas para hemodiálise. Esses aparelhos necessários nas unidades de terapia intensiva são diferentes daqueles usados rotineiramente pelos doentes renais. Na UTI, o tratamento completo dura 72 horas, enquanto a hemodiálise convencional, realizada pelos renais crônicos, é feita em quatro horas. A demanda por tratamento nas UTIs não é grande. No Hospital de Base, por exemplo, existe uma máquina modelo Prisma, uma das mais modernas do mercado, mas ela não é usada por falta de pessoal capacitado para operá-la e também por conta da baixa demanda por esse tipo de tratamento nas UTIs. Além de caro, o contrato para locação de máquinas especificamente para as unidades de tratamento intensivo também é desnecessário, segundo especialistas consultados pelo Correio.
Falta pessoal
O nefrologista Marcelo Lodônio, vice-presidente da Sociedade Brasiliense de Nefrologia e médico do Hospital de Base, acredita que não há necessidade de equipar todas as unidades . “A maioria das UTIs da rede pública nem sequer tem nefrologista para operar essas máquinas de hemodiálise. E não existe demanda para colocar aparelhos em todas as UTIs. Se a Secretaria de Saúde instalar esse número grande de equipamentos, provavelmente a maioria vai ficar encostada”, garante o especialista. “As máquinas que estão querendo alugar são boas, não questiono a qualidade. Mas os valores são questionáveis e, além disso, não adianta instalar sem ter quem opere. É como ter um carro caro sem sequer ter carteira de motorista”, compara Lodônio.
O presidente da Associação dos Doentes Renais do DF, Carlos Alberto Rosa, critica o pagamento de R$ 29 milhões para o aluguel de equipamentos. “Com todo esse dinheiro, daria para comprar centenas de máquinas e acabar de vez com as nossas dificuldades para fazer hemodiálise. É um desrespeito com os pacientes fazer um contrato com valores astronômicos como esse enquanto tem gente morrendo por falta de tratamento de verdade”, critica Carlos Alberto.
Ele recebeu um novo rim em 1999, mas perdeu novamente as funções do órgão pouco tempo depois, por conta de uma infecção. Voltou a se submeter às longas e dolorosas sessões de hemodiálise. “A gente luta para fortalecer a rede pública. Hoje, 90% dos renais fazem tratamento em clínicas particulares. Com esses R$ 29 milhões, o governo poderia equipar os hospitais públicos, onde hoje faltam aparelhos”, afirma Carlos Alberto Rosa.
Suspenso, acordo será auditado
O secretário Extraordinário de Logística e Infraestrutura de Saúde, Herbert Teixeira Cavalcanti, explica que o contrato foi assinado em julho e, poucos dias depois, o processo foi paralisado. “Assinei o contrato porque não havia nenhum questionamento da nossa assessoria jurídica e o processo havia tramitado no Tribunal de Contas. Mas, logo depois, revendo as planilhas, estranhei os valores altos. Determinei imediatamente a realização de uma auditoria nesse processo”, afirma Herbert.
O secretário garante que nenhum repasse foi feito até agora. “Determinei a devolução de todos os kits e aparelhos e suspendi um treinamento de funcionários que seria ministrado na última quinta-feira. O contrato ficará suspenso temporariamente até o fim da auditoria. Se ficar comprovada alguma irregularidade, vamos cancelar definitivamente e indicar os responsáveis”, afirma Herbert. “É preciso aguardar o trâmite legal. Mas posso adiantar que o processo não deve seguir em frente”, finaliza o secretário. (HM)
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Correio Braziliense
Matemática do desperdício na Saúde
HELENA MADER
Em julho, o GDF decidiu alugar 12 máquinas para filtrarem o sangue de doentes renais em UTIs. Com os R$ 29 milhões do contrato, seria possível comprar 410 equipamentos.
A Secretaria de Saúde do Distrito Federal fechou um contrato de R$ 29 milhões para alugar 12 máquinas de hemodiálise para UTIs da rede pública — valor suficiente para comprar mais de 410 equipamentos. Os termos do contrato de locação, válido por 24 meses, foram publicados no Diário Oficial do DF de 26 de julho deste ano (veja fac-símile). Além do aluguel dos aparelhos, usados para filtrar o sangue de doentes renais, o acordo prevê o fornecimento de kits de bolsas efluentes, também usadas durante a hemodiálise. O governo informou que já está realizando uma auditoria nesse contrato e garantiu que suspendeu o negócio até o fim das análises técnicas.
Especialistas e pacientes que dependem do tratamento criticam o gasto alto com a locação e defendem a compra de novas máquinas, já que hoje faltam equipamentos desse tipo nos hospitais públicos. Os 1,2 mil doentes renais do DF que precisam da hemodiálise para sobreviver enfrentam dificuldades de acesso ao tratamento na rede pública.
É comum os pacientes terem que dividir o horário destinado à filtragem do sangue por conta da falta de máquinas. Em vez de permanecer ligada ao aparelho durante quatro horas, cada pessoa passa apenas duas horas em tratamento para que ninguém fique sem hemodiálise. Esse processo é essencial para a vida dos doentes renais, já que, sem a retirada de toxinas do sangue, o paciente pode morrer em um curto espaço de tempo.
O processo para locação das máquinas começou a ser feito no ano passado. Logo depois da elaboração do edital de licitação, o Tribunal de Contas do Distrito Federal pediu explicações. Os conselheiros do TCDF queriam saber por que o GDF optou pelo aluguel, em vez de comprar as máquinas. “Tendo em conta que o objeto licitado possui natureza jurídica de locação de bens, caberá à Secretaria de Saúde apresentar estudos que comprovem a vantagem da opção adotada em detrimento da aquisição dos bens”, diz trecho do relatório do conselheiro responsável pela análise do contrato, Jorge Caetano, apresentado em dezembro do ano passado.
Em maio deste ano, o TCDF reiterou o pedido de informações à Secretaria de Saúde. Mas o GDF não apresentou justificativas para alugar, em vez de comprar os equipamentos. Os conselheiros também questionaram o alto valor do contrato. “Determino à Secretaria de Estado de Saúde que, no prazo de 90 dias, comprove a adequação dos valores referidos no procedimento licitatório com os correspondentes no mercado”, indica trecho da decisão do Tribunal de Contas. As determinações do TCDF não foram seguidas e, ainda assim, o contrato foi assinado em julho deste ano.
Aparelho diferente
Pelo negócio, a empresa teria que equipar as UTIs com máquinas para hemodiálise. Esses aparelhos necessários nas unidades de terapia intensiva são diferentes daqueles usados rotineiramente pelos doentes renais. Na UTI, o tratamento completo dura 72 horas, enquanto a hemodiálise convencional, realizada pelos renais crônicos, é feita em quatro horas. A demanda por tratamento nas UTIs não é grande. No Hospital de Base, por exemplo, existe uma máquina modelo Prisma, uma das mais modernas do mercado, mas ela não é usada por falta de pessoal capacitado para operá-la e também por conta da baixa demanda por esse tipo de tratamento nas UTIs. Além de caro, o contrato para locação de máquinas especificamente para as unidades de tratamento intensivo também é desnecessário, segundo especialistas consultados pelo Correio.
Falta pessoal
O nefrologista Marcelo Lodônio, vice-presidente da Sociedade Brasiliense de Nefrologia e médico do Hospital de Base, acredita que não há necessidade de equipar todas as unidades . “A maioria das UTIs da rede pública nem sequer tem nefrologista para operar essas máquinas de hemodiálise. E não existe demanda para colocar aparelhos em todas as UTIs. Se a Secretaria de Saúde instalar esse número grande de equipamentos, provavelmente a maioria vai ficar encostada”, garante o especialista. “As máquinas que estão querendo alugar são boas, não questiono a qualidade. Mas os valores são questionáveis e, além disso, não adianta instalar sem ter quem opere. É como ter um carro caro sem sequer ter carteira de motorista”, compara Lodônio.
O presidente da Associação dos Doentes Renais do DF, Carlos Alberto Rosa, critica o pagamento de R$ 29 milhões para o aluguel de equipamentos. “Com todo esse dinheiro, daria para comprar centenas de máquinas e acabar de vez com as nossas dificuldades para fazer hemodiálise. É um desrespeito com os pacientes fazer um contrato com valores astronômicos como esse enquanto tem gente morrendo por falta de tratamento de verdade”, critica Carlos Alberto.
Ele recebeu um novo rim em 1999, mas perdeu novamente as funções do órgão pouco tempo depois, por conta de uma infecção. Voltou a se submeter às longas e dolorosas sessões de hemodiálise. “A gente luta para fortalecer a rede pública. Hoje, 90% dos renais fazem tratamento em clínicas particulares. Com esses R$ 29 milhões, o governo poderia equipar os hospitais públicos, onde hoje faltam aparelhos”, afirma Carlos Alberto Rosa.
Suspenso, acordo será auditado
O secretário Extraordinário de Logística e Infraestrutura de Saúde, Herbert Teixeira Cavalcanti, explica que o contrato foi assinado em julho e, poucos dias depois, o processo foi paralisado. “Assinei o contrato porque não havia nenhum questionamento da nossa assessoria jurídica e o processo havia tramitado no Tribunal de Contas. Mas, logo depois, revendo as planilhas, estranhei os valores altos. Determinei imediatamente a realização de uma auditoria nesse processo”, afirma Herbert.
O secretário garante que nenhum repasse foi feito até agora. “Determinei a devolução de todos os kits e aparelhos e suspendi um treinamento de funcionários que seria ministrado na última quinta-feira. O contrato ficará suspenso temporariamente até o fim da auditoria. Se ficar comprovada alguma irregularidade, vamos cancelar definitivamente e indicar os responsáveis”, afirma Herbert. “É preciso aguardar o trâmite legal. Mas posso adiantar que o processo não deve seguir em frente”, finaliza o secretário. (HM)
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