"O Estresse na Osesp contribuiu para que eu tivesse câncer"
Maestro se muda para a Suíça e associa o tumor maligno que o fez extirpar o rim à sua conturbada saída da orquestra paulista
O dia 15 de dezembro de 2010 ficará marcado na memória do maestro John Neschling, 63 anos. Nesta data, ele se deitou em uma mesa de cirurgia sem saber se estaria vivo no dia seguinte. Um tumor maligno de oito centímetros descoberto por acaso em seu rim esquerdo teve de ser extirpado junto com esse órgão. Um mês e meio depois, dizendo-se curado, Neschling deixou o País em busca de tranquilidade, trabalhos esporádicos, menos estresse e tempo para cuidar de si. Junto da esposa, a escritora Patrícia Mello, 48 anos, mudou-se para um apartamento na Suíça, depois de passar 14 anos no Brasil, onde desembarcou para administrar e reger a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. Controverso e responsável por uma revolução cultural no Brasil ao elevar a Osesp ao posto de uma das orquestras mais respeitadas no mundo, o maestro foi demitido em 2009, ao ser filmado criticando o então governador paulista, José Serra. Neschling não hesita em associar o desgaste da demissão à doença que se instalou em seu corpo. A seguir, ele explica esse e outros fatos.
FREE LANCER
Neschling pretende fazer apenas um concerto por mês,
pela Europa: “Não sou mais um menino”
"Daqui a dez anos, certamente as pessoas vão continuar
falando de mim. Mas não sei se irão lembrar do (Yan Pascal)
Tortelier (maestro que assumiu a Osesp)”
“O José Serra era o governador que quis
me tirar, foi o inspirador.
Continuo achando-o mimado, autoritário."
ISTOÉ – Maestro, tudo bem com o sr.?
John Neschling – Agora estou bem.
ISTOÉ – Antes não estava?
Neschling – Há um mês tive de retirar o rim esquerdo.
ISTOÉ – Por quê?
Neschling -
Neschling – Por causa de um câncer. Passei a ter um sangramento na urina, certo dia, que durou horas. Procurei um médico e os exames apontaram um câncer. Era maligno, estava encapsulado no rim esquerdo e tinha oito centímetros. Foi uma sorte eu descobri-lo. Era para eu ter ido embora para a Suíça em meados de dezembro e o descobri três dias antes de embarcar. Se eu viajasse e fosse ver isso seis meses depois, não teria chance de sobreviver.
ISTOÉ – Como reagiu à descoberta?
Neschling -
Neschling – Descobri que não sou imortal. Encarei a possibilidade da morte quando olhei para a cara do médico e ele me disse que eu estava com câncer. Ali, não pensei na morte um ano, dois, cinco anos depois. Pensei na morte naquela quarta-feira da operação. Não conseguia imaginar a quinta-feira.
ISTOÉ – Ficou paralisado?
Neschling -
Neschling – Retraído. Não falava, não contei a ninguém. Não queria abrir a minha intimidade, o sofrimento. Hoje estou clinicamente curado. Tenho de cuidar desse único rim, tomar cuidado com sal e beber muito líquido. Quero viver tranquilo, ser feliz e, para isso, preciso de um corpo que funcione direito. Daqui a quatro meses retorno ao Brasil para fazer novos exames.
ISTOÉ – Que ciclo é esse que o sr. inicia na Europa?
Neschling -
Neschling – Não sei, mas não estou partindo triste, decepcionado com o meu país. Nesses últimos 14 anos eu transformei a realidade brasileira. Eu construí uma orquestra que não existia na história do Brasil. Me afastar disso, por mais que doa, é normal. Hoje, sinto alívio por não ter mais as responsabilidades de antes. Se por um lado podia fazer coisas que me davam prazer artístico, havia muita briga, muito estresse, desgaste com a imprensa, com a política. Essa doença que eu tive tem a ver também com o desgaste que vivi. (O câncer) é altamente emocional. O estresse na Osesp contribuiu para que eu tivesse câncer. Puxaram o meu tapete na Osesp. Mas passou, vivi o trauma e, hoje, quero investir em mim e não tanto no meu país, nas pessoas. Não quero me desgastar, brigar e me chatear para explicar como se faz e como não se faz. Não quero mais me deparar com a falta de cultura, de vontade, de política cultural. Não tenho vontade de voltar para o Brasil. Está na hora de as pessoas me chamarem, sabendo o que eu significo para este país.
ISTOÉ – Tem contato com a Osesp?
Neschling -
Neschling – Nenhum. Não tenho o menor interesse. Não a ouvi mais tocar, não fui mais à Sala São Paulo. Houve um movimento, nos últimos dois anos, de apagar meu nome da história da Osesp. Isso irá se curar. Dois anos não é nada em termos de história. Daqui a dez, certamente as pessoas vão continuar falando de mim. Mas não sei se irão lembrar do (Yan Pascal) Tortelier (maestro que assumiu a Osesp). A Sala São Paulo vai estar lá e, se eu estiver morto, quem sabe terá uma estátua minha lá. A história irá me colocar no devido lugar. Os músicos se dão conta do meu papel, certamente. Mas como vivem num sistema um bocado ditatorial – muito maior do que se dizia que era no meu tempo – não têm coragem de falar. A orquestra toda está sem personalidade – dizem, não sei.
ISTOÉ – Não voltaria a reger a Osesp?
Neschling -
Neschling – Agora, de jeito nenhum. Estou empapuçado da Osesp. A única relação que tenho com ela é jurídica (ele ganhou em primeira instância um processo trabalhista no valor de R$ 4,3 milhões, que, agora, será julgado em segunda instância). Me mandaram embora de um dia para o outro e não me pagaram absolutamente nada. Isso me magoou. Pessoas que se diziam democráticas, cultas, de repente extirparam uma pessoa da mesma forma que fiz com o meu câncer.
ISTOÉ – O sr. teve contato com os personagens do episódio de sua demissão, como José Serra e Fernando Henrique Cardoso?
Neschling -
Neschling – Não. O José Serra foi o responsável pelo processo todo, o inspirador, o governador que quis me tirar. O Fernando Henrique foi mais levado por pessoas do que cabeça de um movimento. Outros, tanto no conselho quanto na orquestra, foram muito mais traidores do que ele. O Fernando Henrique é uma pessoa formidável, mas não falo com ele e não tenho interesse. Na época, achou que estava agindo certo, que eu tinha dito barbaridades a respeito do conselho, que eu era autoritário. Dividir poder é uma bobagem. Uma orquestra não é um parlamento, uma secretaria, um departamento onde tem democracia. No fundo, tiraram uma pessoa que era a alma da orquestra.
ISTOÉ – Algum episódio teria precipitado isso tudo?
Neschling -
Neschling – Houve uma Virada Cultural em que a orquestra não foi tocar porque a prefeitura (de São Paulo) foi incapaz de nos dar a infraestrutura correta. Como até agora é incapaz de dar infraestrutura ao Teatro Municipal. Depois houve o episódio do YouTube (durante um ensaio, em 2007, gravações feitas sem que Neschling soubesse mostram o maestro chamando Serra de “autoritário” e “menino mimado”). Continuo achando o Serra mimado, autoritário.
ISTOÉ – Como imagina a nova vida na Europa?
Neschling -
Neschling – Já vivi no Exterior, sempre como chefe de orquestra. Não quero mais ser chefe. Quero ser free lancer. Tenho uma série de compromissos na Europa, concertos praticamente mensais até o fim do ano, e não quero muito mais do que isso. Com a minha doença, a minha idade, fazer um belo concerto por mês está bom. Não quero viajar pelo mundo, regendo quatro concertos por mês, que acabo morrendo. Não sou mais um menino. Vou ler, me dedicar à minha mulher e à minha família. Gosto de natureza, silêncio, calma. Tenho paixão pela vida solitária. Não sou nada sociável, adoro cozinhar...
ISTOÉ – Até onde vai sua porção narciso, comum aos regentes?
Neschling -
Neschling – Se você alcança um certo nível de notoriedade, como eu, o narcisismo passa a ser secundário. Hoje, me considero vaidoso. Tenho vaidade de não ser um mauricinho na maneira de me vestir, de não usar Armani, Kenzo. Não combina. Gosto de perfumes. Sempre fui ligado na estética. Tive cabelo quase na cintura. Regi a Ópera de Viena com rabo de cavalo. Um dia, o diretor da ópera me perguntou: “Quer continuar com esse rabo de cavalo?” E eu falei que preferiria deixar de reger lá a cortá-lo.
ISTOÉ – Psicanálise é importante para um maestro?
Neschling -
Neschling – É bom para qualquer um. É tipo Aspirina. Qualquer pessoa consciente não pode passar pela vida sem fazer. É um caminho de autoconhecimento importantíssimo, tão importante quanto o antibiótico. Dizer que psicanálise é profilaxia de classe média é uma estupidez completa. Fiz por uns 25 anos, mas ela me ajuda até hoje. Foi fundamental na minha liberdade corporal na regência; na minha capacidade de concentração; na sublimação e superação do meu narcisismo; nas minhas relações amorosas e familiares; nas minhas compulsões que vão desde a comida até onde você quiser.
ISTOÉ – Como enxerga a sua porção judeu?
Neschling -
Neschling – Hoje, mais do que nunca, ela é presente na minha vida. A Patrícia se converteu há alguns anos, é mais judia do que eu, atuante mesmo. Nos casamos há quatro anos na sinagoga. Isso me aproximou ainda mais do judaísmo. Passei a fazer cursos de hebraico na Congregação, de leitura da “Torá”, de histórias hebraicas. Uma professora vinha em casa e lia a “Torá” com a gente. Hoje, o judaísmo é um esteio na minha vida, pilar da minha saúde mental. Casar na sinagoga tem um sentido de estar no seio de uma comunidade que você considera sua, tem uma sensação de pertencimento. Trabalhei muito tempo em Israel como voluntário num kibutz depois da Guerra dos Seis Dias (1967). Me afastei depois desse movimento sionista, porque era contrário à política de confinamentos palestinos. Mas não quer dizer que eu não apoie o Estado de Israel.
ISTOÉ – Como se vê como marido?
Neschling -
Neschling – Sou um marido ideal. Nunca fui, mas hoje sou. Sou completamente apaixonado pela Patrícia, dependente como nunca imaginei que seria. Respeito profundamente os desejos e as vontades dela, admiro o seu trabalho e personalidade.
ISTOÉ – Considera-se um pai exemplar?
Neschling -
Neschling – Sou apaixonado pelo meu filho. Pedro (ator, 28 anos) foi adolescente numa época em que eu estava muito ausente. Certamente, não diria mágoa, mas tem um certo problema aí que só foi resolvido ultimamente com conversa.
ISTOÉ – E o Benjamim, seu outro filho que está com 10 anos?
Neschling -
Neschling – Benjamim está na Austrália. Mora com a mãe (a austríaca Bridget, com quem foi casado). Não o vejo e não sei dele há sete anos. Como me sinto? Longe dele. Não o reconheceria na rua. Não sei se é alto, magro, baixo, gordo. Não queria falar sobre o Benjamim... é uma coisa muito punk na minha vida.
ISTOÉ – Arrepende-se de suas brigas?
Neschling -
Neschling – Não, mas faria diferente. Muitas nasceram das minhas compulsões, da minha falta de tolerância, da imaturidade. Poderiam ter sido menos traumáticas. Mas nunca briguei por razões que não eram verdadeiras. Em relação à Osesp, não me arrependo de nada. Talvez tenha sido exagerado ao falar sobre o Serra na frente da orquestra. Eu incomodava porque tinha ideias e atitudes claras. Não permitia que interferissem no meu trabalho, nem política nem esteticamente falando. A certa altura, o meu filho Osesp disse: “Ó, papai, também quero ter o que dizer aqui. Vou sair de casa, ficar noivo de outro, dar para outra pessoa”. E assim fez.
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