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sexta-feira, 2 de abril de 2010

E se o menino falasse?

29/04/2008 - 17:43 - Atualizado em 05/05/2008 - 14:19

Por que a polícia não ouviu Pietro, de 3 anos, que pode ter presenciado o assassinato da meia-irmã, Isabella - e por que ainda há lacunas na investigação do crime
Solange Azevedo
Reprodução
SEM TRAUMA
Uma sala onde crianças vítimas de abuso são ouvidas por especialistas no "Depoimento sem Dano", adotado no sul do país

Nas últimas quatro semanas, Pietro Nardoni, de 3 anos, perdeu a meia-irmã, Isabella, e foi afastado dos pais por mais de uma semana – tempo que Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, suspeitos do assassinato, passaram presos antes do habeas corpus. Mais do que isso, se a tese da polícia estiver correta – que a madrasta esganou Isabella e o pai a jogou pela janela –, Pietro pode ter presenciado o crime, cometido em 29 de março num prédio da zona norte de São Paulo. São muitos traumas para um só menino, aos quais pode se juntar outro: depor num tribunal. O testemunho do menino poderia trazer informações fundamentais para fechar o quebra-cabeça. Por que Isabella apanhou antes de ser atirada do 6o andar? Quem bateu nela? Por que Anna Carolina e Alexandre discutiram minutos antes de a menina ser encontrada caída na grama?

A questão divide opiniões dentro da polícia e no Ministério Público. O promotor Francisco José Taddei Cembranelli, que logo depois do crime descartou categoricamente a possibilidade de ouvir Pietro, disse a ÉPOCA na semana passada que, “se necessário for”, o garoto poderá ser chamado. Cembranelli sugeriu que Pietro não prestasse depoimento da forma tradicional, diante de um juiz e das partes envolvidas no processo. Para preservá-lo de uma experiência traumática, poderia ser ouvido por uma assistente social, em uma sala com decoração infantil, repleta de brinquedos e almofadas no chão.

Uma câmera de TV mandaria as imagens em tempo real para a sala de audiências. A assistente social receberia as perguntas do magistrado, do promotor e dos advogados de defesa do casal por um fone de ouvido. Depois disso, as “traduziria” para a linguagem da criança. Essa técnica, criada em 2003 pelo juiz José Antônio Daltoé Cezar, da Vara de Infância e Juventude de Porto Alegre, se chama “Depoimento sem Dano”. Ela é usada para ouvir testemunhos de menores vítimas de violência sexual. Dos casos que já passaram por essa técnica na capital gaúcha, o índice de condenação de criminosos foi de 59%, seis vezes a média nacional. Um projeto de lei que prevê a inclusão do Depoimento sem Dano no Estatuto da Criança e do Adolescente tramita no Congresso Nacional.

O risco de uma criança tão pequena, ao ser ouvida pela Justiça, incriminar um inocente é uma das razões da controvérsia entre especialistas do Direito e do comportamento infantil. Luiz Flávio Gomes, um dos mais respeitados juristas do país, diz: “Se eu fosse o juiz do caso e tivesse informações seguras de que o menino realmente presenciou o crime, eu o ouviria”. Gomes atuou como juiz criminal durante 15 anos em São Paulo. Edilson Mougenot Bonfim, doutor em Direito processual penal e promotor do 1o Tribunal do Júri de São Paulo – o maior da América Latina –, diz que nunca viu um depoente com menos de 9 anos. “Falta lastro científico para dar credibilidade ao depoimento de alguém tão jovem. O que uma criança conta pode ser facilmente contestado, seja pela defesa, seja pelo Ministério Público”, diz. O psiquiatra forense Guido Palomba afirma que “em lugar nenhum do mundo o depoimento infantil tem valor para a psiquiatria forense. Em tão tenra idade, dependendo da forma como a criança for interrogada, ela pode misturar a fantasia com a realidade. Esse trabalho só deve ser feito por grandes especialistas em psicologia infantil”.

O respeitado jurista Luiz Flávio Gomes diz: “Se eu fosse o juiz do caso, ia querer ouvir o menino”

Os pesquisadores americanos Stephen J. Ceci, da Cornell University, e Maggie Bruck, da McGill University, afirmam que crianças na fase pré-escolar são capazes de fazer relatos precisos sobre eventos que testemunharam. Mas também são mais suscetíveis a criar falsas memórias. A exatidão das informações depende das condições em que o depoimento é dado e do preparo do entrevistador. As perguntas não podem ser direcionadas para determinadas respostas. Crianças tendem a querer agradar aos adultos e dar respostas que eles esperam ouvir. Se a pergunta for repetida, elas podem interpretar que a primeira resposta estava errada e mudá-la. “É perfeitamente possível ouvir crianças de 3 anos. Eu já ouvi vítimas de atentado violento ao pudor que tinham essa idade”, afirma a juíza Osnilda Pisa, titular da 6a Vara Criminal de Porto Alegre. “Mas, se o entrevistador não tiver paciência, pode colocar palavras na boca da criança.” O relato pode ficar comprometido se as pequenas vítimas ou testemunhas forem “contaminadas” com informações da TV, da escola, da família e que possam fazê-las criar falsas memórias, misturando fantasia com realidade.

No Reino Unido e na Alemanha, há leis que orientam como ouvir crianças vítimas ou testemunhas de crimes. Lilian Milnitsky Stein, psicóloga e coordenadora do Grupo de Pesquisa em Processos Cognitivos da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, diz que, se fosse a delegada do caso Isabella, Pietro seria a primeira pessoa chamada para uma entrevista. “Desde que fosse usada a técnica adequada, ele poderia ter trazido informações preciosas para as investigações. Crianças pequenas tendem a repetir ipsis litteris o que viram. Mas como também se esquecem mais rápido dos detalhes, quanto mais próximo ao evento for feito o relato, melhor”, afirma Lilian. “Reviver um momento de estresse não é necessariamente danoso. Há diversas terapias com adultos baseadas em reviver o trauma como uma forma de elaborar o estresse.”

Jefferson Bernardes
INDICIADOS
Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá na entrevista ao Fantástico

Uma criança na idade de Pietro memoriza por repetição. “É por isso que os Teletubbies vivem dizendo ‘de novo’ e as crianças assistem a certos desenhos ou filmes diversas vezes até que consigam repetir as falas”, afirma Lilian. Adultos retêm detalhes, mas tendem a guardar na memória informações genéricas. Em países como Espanha, Austrália e Estados Unidos, não é incomum que crianças sejam interrogadas nos tribunais. Mas isso já deu origem a erros da Justiça. Um dos casos mais conhecidos aconteceu em 1989 no Estado americano da Carolina do Norte. Proprietários de uma creche e cinco pessoas ligadas a eles foram acusados de abuso sexual por vários alunos. Um dos condenados foi acusado por 12 crianças. Depois de uma longa batalha nos tribunais, ele foi inocentado em 1997. Na França, ficou famoso o caso Outreau. Em 2001, seis pessoas foram presas por pedofilia, com base em depoimentos de crianças. Três anos depois, uma testemunha (adulta) confessou ter inventado as acusações, e todos foram libertados – menos um, que morreu na prisão. Aparentemente, as crianças ouvidas misturaram fatos com ficção. O caso tem semelhanças com o da Escola Base, em São Paulo, em 1994, em que inocentes foram presos, acusados de corromper menores.

Se quatro semanas depois do crime ainda se cogita ouvir Pietro, é porque a investigação, apesar de todo o alarde em torno da “certeza” do envolvimento do casal, ainda tem dificuldade para preencher s algumas lacunas. A polícia acredita que a reconstituição do crime, marcada para 27 de abril (o inquérito deverá ser concluído no início desta semana), deverá complicar ainda mais o casal. Entre as evidências mais recentes que comprometem o pai e a madrasta da menina estão:

• A camiseta que Alexandre Nardoni usava na noite do assassinato tem marcas da rede de proteção que foi cortada. Elas coincidem com a posição de alguém que pôs os dois braços para fora.

• Um localizador instalado no carro da família para prevenir roubos confirma 23h36 como o horário da chegada à garagem do edifício. Como a primeira ligação de um vizinho pedindo resgate ocorreu às 23h49, uma terceira pessoa teria apenas 13 minutos para cometer o crime.

Além de Pietro, outras pessoas ligadas ao casal ainda podem trazer novas informações ao inquérito. Na quarta-feira passada, depuseram a irmã de Alexandre, a estudante de Direito Cristiane Nardoni, e o pai, o advogado tributarista Antônio Nardoni. Tiveram de explicar o que foram fazer no Edifício London depois do crime – a polícia afirma que alguém tentou limpar a cena do assassinato. Isso também seria um crime, mas é um detalhe embaraçoso para a polícia: como o apartamento só foi lacrado três dias depois da morte de Isabella, a “faxina” poderia ter ocorrido a qualquer momento. Cristiane disse ter entrado no apartamento do irmão apenas para apagar as luzes. Antônio afirmou ter ido buscar roupas. O livro de visitas do prédio mostra que ele esteve no local depois do enterro de Isabella, no dia 31 de março, por cerca de 15 minutos.

Da mesma forma que a entrevista de Alexandre e Anna Carolina Jatobá ao Fantástico aumentou a pressão da opinião pública sobre o casal (leia o artigo de Guilherme Fiuza), as novas suspeitas da polícia lançaram holofotes sobre o papel do pai de Alexandre, Antônio, no caso. Um dia depois de depor, Antônio precisou despistar os fotógrafos e cinegrafistas para ir ao trabalho. Na frente do sobrado onde mora, dois seguranças revezam-se há mais de uma semana. Pichações num muro próximo mandam Alexandre Nardoni para o “inferno” e Isabella para o “céu”.

Pietro deve depor?
Os argumentos a favor e contra
A favor Contra
• Há especialistas em obter um depoimento fidedigno sem traumatizar a criança
• Uma criança de 3 anos é capaz de lembrar fatos e descrevê-los corretamente
• Em muitos países, crianças são ouvidas em processos
• É fácil derrubar um depoimento de alguém tão jovem no tribunal
• Crianças podem misturar fatos com fantasia. Já provocaram erros judiciais
• Pietro deveria ter sido ouvido logo depois do crime, com a memória mais fresca




LAST





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