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quarta-feira, 28 de outubro de 2009

"Lula se aliou a Judas, FHC a Satanás" :


Sebastião Nery

Claudio Leal

Leia a segunda parte da entrevista com Sebastião Nery.

Terra Magazine - Como foi sua experiência com Roberto Marinho na TV Globo?
Sebastião Nery - Foi uma experiência excelente porque, naquela época, Roberto Marinho ia quase todo dia à televisão. Roberto Marinho nunca considerou a televisão, ao menos na cabeça dele, como o pião da organização. O jornal era O Globo. Se você quisesse saber o que ele pensava, que lesse O Globo. Se você tiver dúvida em alguma matéria, dê a matéria segundo O Globo. Ele dizia: "a TV Globo não tem opinião, quem tem opinião é O Globo". Uma vez por semana ele entrava no departamento de jornalismo, conversava conosco, na maior gentileza, elogiava as coisas, às vezes criticava. Preocupado com a audiência. Cada dia que ele chegava, dizia: "Vim trazer os parabéns porque estamos a tantos pontos da Tupy." Tantos pontos, tantos pontos, até que um dia ele chegou e comunicou: "Nós passamos a Tupy". Não discutíamos salários com ele, era tudo com Armando Nogueira ou Walter Clark, o diretor-geral da televisão. Mas ele era um sujeito cordial, gentil, chamava todo mundo de "senhor", de "deputado".


Muito formal?
A verdade é que ele tratava todo mundo como profissional, ele não tratava de cima pra baixo, arrogantemente. Era um sujeito simples, conversava e tal. Não conversava muito, não demorava muito, ia embora. Nunca houve constrangimento de nenhum de nós com ele. Mesmo quando eu dei uma notícia de Vitorino Freire, que deu uns murros e uns pontapés num sobrinho dentro do avião, do Maranhão pro Rio de Janeiro. Eu botei numa sexta-feira. E o Armando não ia na sexta-feira de noite. Eu fechava o jornal quando não tinha outro, o Jaime Dantas também não foi. Aí eu era o responsável. Sentei na máquina e contei: "O senador Vitorino Freire teve um incidente no avião, tal, tal... Embora fosse mais velho e menor, nocauteou seu sobrinho, o deputado estadual do Maranhão." Era sobrinho da mulher dele. A matéria saiu no Jornal da Globo. Um minuto depois toca o telefone.

O próprio?
"O Armando está?". Eu conheci a voz dele. "Não, doutor Roberto". "Quem está falando?". "Sebastião Nery". "Deputado, preciso urgente de uma explicação. Quem é que pôs no ar essa matéria?". Eu disse: "Fui eu. O Jaime Dantas não está aqui, Armando não estava, eu pus". Ele me disse: "Deputado, o senhor sabe a gravidade dessa matéria?". "Sei". "O senhor sabe que eu sou um amigo fraterno do senador Vitorino Freire? O senhor sabe que essa empresa deve favores políticos ao senador? O senhor sabe o risco dessa matéria?". Eu disse: "Doutor Roberto, me faça um favor. Se o senhor é amigo dele, telefone pra ele e me diga como a matéria saiu". "Não, me conte". Eu disse: eu ia saindo de casa, encontrei o senador em Copacabana, na porta de um restaurante. Tinha acabado de chegar do avião, me chamou, eu conheço o filho dele. Ele me chamou e disse assim: "Você quer uma notícia pro Jornal da Globo? Acabou de acontecer isso, isso e isso." "Senador, veja o que o senhor está fazendo, eu só tenho esse emprego, se essa notícia não for precisamente certa, o doutor Roberto Marinho me demite hoje, com razão." Ele disse: "Dê a notícia que eu garanto. Eu dava as notícias sobre o presidente Dutra e sempre garanti." Fui pra televisão e botei no ar. Aí Roberto Marinho me disse: "Deputado, o senhor me dá cinco minutos de licença?". Pois não. Ele retornou. "Deputado, primeiro eu quero lhe dar parabéns. Segundo, quero lhe dizer que o senhor foi absolutamente fiel ao que o senador fez e lhe contou e ainda lhe disse: pode publicar que eu garanto." O Vitorino foi corretíssimo. Quase que eu sou Vitorino, não sou Sarney. Sarney ia virar de lado, eu ia me ferrar... (risos) O Vitorino, não. Garantiu meu emprego. No outro dia foi um escândalo dos jornais.


"Deus é juscelinista!"

No livro, você relata como nasceu o "Folclore Político"?
O folclore político. Um dia eu estava na Tribuna da Imprensa, era véspera do 12 de setembro, aniversário de Juscelino. Como eu sabia que o Juscelino era um nome meio proibido, fiz um negócio discreto. Então fiz uma coluna contando histórias de Juscelino, procurando sair por esse lado agradável. O homem que não tinha medo de avião e dizia: "Deus é juscelinista", o título da matéria. Eu dizia: "Governador, tá chovendo, não vou entrar nesse avião, vou deixar pra ir amanhã". E ele: "Deus é juscelinista, ô baiano! Entra!". Acabou sendo mesmo. Fiz a matéria. Aí o major Douglas, um sujeito muito simpático, elegante, cordial, inteligente. A gente terminava a matéria, ia pro café e ficava esperando a decisão dele. Ele me chamou e disse: "Nery, venha cá. Esta matéria não pode sair. Eu reconheço que é uma matéria brilhante, você conta umas histórias ótimas aqui. A história dos queijos..."

Juscelino estava no aeroporto de Campina Grande e, antes de descer do avião, perguntou a Abelardo Jurema: "Quem é aquele cara que tá lá?". "Aquele é o coronel que lhe deu aqueles queijos...". Na hora que abre a porta do avião, o coronel lá embaixo, Juscelino cá de cima grita: "Coronel, trouxe meus queijos?" (risos) Contei essa história e outras. Foi aí que ele (major Douglas) fez aquela frase: "Infelizmente, Juscelino, Brizola, dom Helder, nem a morte da mãe." Falei pra ele: "Tudo bem, vou falar pro jornal colocar outra matéria". Ele: "Não, senhor. O jornal não sai com lugar em branco. Não sai sem sua matéria porque é uma denúncia que sua matéria não saiu. Porque todo dia você faz. Vá ali e escreva outra, por favor." Fui e fiz assim: "Alckmíadas: sete histórias de um gênio da raça". Sete histórias do (José Maria) Alckmin. Em duas delas eu citava o Juscelino. Mas o Juscelino entrava...

Marginalmente...
No dia seguinte, entro no Hotel Itajubá, estava o Abelardo Jurema, estava o pai da Maysa Matarazzo, que tomava uísque, tinha outro sujeito que sempre ia lá. Cheguei e Jurema disse: "Você é um gênio, Nery. Você descobriu o folclore político". "O quê?". Aí eu atinei rápido. "Você criou o Folclore Político. O Brasil precisa disso. Dia sim, dia não, conte histórias do folclore político. Essa coluna do Alckmin tá genial!". Na verdade, o Abelardo era a cara do folclore político, não é? Era um sujeito inteligente, preparado e um político alegre, bebedor de uísque, inventava histórias. Eu passei, de três em três dias, a contar histórias, sapecava personagens. Adhemar de Barros...

Logo depois você levou pra Folha?
A coisa repercutiu, as pessoas começaram a ler. Boris Casoy um dia me telefona: "Olha, o Cláudio Abramo quer conversar com você. Pegue um avião e venha aqui." Ele telefonou para o jornal. "Vai ter uma reunião das seis horas da tarde e você precisa vir pra cá." Eu disse: "Ô, Boris, eu não tenho nem dinheiro pra ir pro aeroporto pegar uma passagem de avião." Ele disse: "Deixe de ser imbecil! Tome emprestado". É o que eu fiz. Saí dali, entrei no Banco Nacional, pedi dinheiro emprestado a Zé Aparecido (de Oliveira). Foi quando conheci Cláudio Abramo.

Ele lhe chamou pra escrever a Contraponto, não?
O Boris disse: "Eu faço sozinho o Painel. Você vem, mas vai fazer umas cinco ou seis notas pra me ajudar." Ele ia assumir um cargo na direção do jornal. Aí Cláudio Abramo disse: "Deixe o Nery. Ele começa a escrever hoje". História é o que não me faltava. E eu fazia mais algumas matérias pro Boris. Depois, quando saiu o Abramo, dois, três meses depois, Boris assumiu a diretoria do jornal. Eu sempre colaborava com umas notas. Fiz a coluna por 9 anos e meio. Até mesmo quando fui à Sibéria. Na Sibéria, fiz dez colunas e levei à embaixada brasileira, pra enviar no pacote, sem saber se ia chegar.

Nos anos 70, virou um sucesso editorial nas bancas.
Fiz o Folclore Número 1 (capa ilustrada por Henfil) e foi aquele sucesso. A Record comprou. Deu 14 edições. O Folclore vendia em bancas de jornal, aí é diferente.

Como ocorreu seu rompimento com Brizola?
Primeiro, eu entrei de cabeça no episódio de Brizola. Tinha ido ao Rio Grande do Sul, entrevistei e não foi publicado. Brizola vai pra Buenos Aires, depois vai a Lisboa e comecei a ser uma espécie de porta-voz dele no Rio. Ele me ligava quase todo dia. Ele veio e nós fizemos a campanha (em 1982). Eu tinha dois instrumentos: a TV Bandeirantes e a coluna que já não saía na Tribuna, mas na Última Hora. Conto a dificuldade de fazer campanha política com o Brizola. Pra minha surpresa, li um relato muito bom...

De Fernando Lyra, em "Daquilo que eu sei"?
Do Lyra, sobre as dificuldades da campanha com Brizola (em 1989). Outro que me deu igual depoimento agora, na Alemanha, foi o Moniz Bandeira: o problema do Brizola é que ele era um caudilho, um nacionalista, mas num processo democrático é impossível fazer política com ele. Defendia o fechamento de Congresso... Fui divergindo... Mas houve outro episódio anterior. Eu virei secretário do PDT. O presidente do partido era ele, mas tinha o secretário-geral, o Frejat, e eu era o secretário nacional. Ou seja, o quarto sujeito da executiva nacional. Ele confiava em mim e também nunca teve razão pra deixar de confiar. Virei vice-presidente do diretório do Rio. Era uma responsabilidade enorme. Mas começaram a aparecer o Bocayuva Cunha, o Brandão Monteiro, vetando: "Não dá. Nery é jornalista da Última Hora e dono do partido no Rio". Foi quando Brizola me chamou pra conversar. Bem gaúcho, o Brizola passava a manteiga no pão e me dava. "Companheiro, você tem que escolher. Você não pode ser mais jornalista e dirigente político". Argumentei que o jornalismo era minha vida desde 1952. "Agora eu sou dirigente político, mas não sei amanhã. Não posso deixar de ser". Brizola disse: "Companheiro, tu vais começar analisar as coisas do governo e começar a me fazer críticas".

E sua resposta?
"Brizola, não vou discutir nem brigar com você. O partido é seu, você que me indicou pro cargo. O lugar é seu, mas eu não vou deixar de jornalista". Ele ficou assustado: "Tu estás falando de coração?". Respondi: "Coração, alma, cabeça, tudo. Vou embora". "Então tu tomaste a decisão. Não vai ser mais dirigente". Desci, e estava o ótimo repórter Henrique José. Tinha me visto entrar, e ficou no botequim do Hotel Othon. "O que houve com você e Brizola? Eu tinha a notícia de que Brizola ia lhe enquadrar. É verdade?". Falei pra ele: "Tenho que ir pra Brasília. Quando eu voltar na sexta, eu lhe conto a história toda." "Me dê apenas uma frase", pediu. E eu dei: "Acho que nos enganamos. Fomos a Lisboa buscar Brizola e trouxemos Juan Domingo Perón." No dia seguinte dá no Jornal do Brasil. Aí conto o que Ary de Carvalho me disse: "Não dá, o governador não aceita que você continue fazendo a coluna (na Última Hora)". Depois fiquei sabendo que o Bocayuva foi ao Banerj e arrumou um empréstimo pra Última Hora, pra ser pago com publicidade. Voltei pra Tribuna da Imprensa, botei a coluna em quatro estados e comecei a analisar o PDT. Pedi demissão da secretaria nacional e da executiva. Defendia Brizola e o governo do Rio na Câmara, mas comecei a fazer críticas. É um dos capítulos mais densos e fortes do livro.

Com sua atuação no lado de lá, no Congresso, como deputado federal, dá pra explicar a transformação do político brasileiro nas últimas décadas? Por que chegamos a um nível de qualificação tão baixo?
O que houve é que o capitalismo chegou ao Brasil. Éramos um País rural, Getúlio montou as bases e Juscelino ampliou a industrialização. O País não era capitalisticamente comandado pelo sistema financeiro. A política passou a ser um braço político do sistema financeiro e dos interesses econômicos. Atrás de cada grande negócio, existe um grande branco. A política brasileira passou a ser monetária e financeira. O Congresso não é mais cultural, político; é capitalista, financeiro. Cria essa dificuldade toda porque na hora que o governo tenta dizer que é de esquerda, não consegue.

Concorda com Lula? No Brasil, Jesus é obrigado a se aliar a Judas?
Ah, sim, evidente, ele já se aliou a Judas. Mas o Fernando Henrique se aliou a Satanás. Fernando Henrique se antecipou, se aliou a Satanás, fez uma aliança com o sistema financeiro, internacionalizou a economia. O Brasil tinha um sistema bancário muito nacional. E o Lula continuou mais ou menos esse processo. E se alia com todos, Lula não é aliado, é sócio do mensalão, o dinheiro que entrava por fora pra comprar votos por dentro do Congresso. Você não vê criticas. O que fez com os movimentos sociais... Os judas de Lula são mais ou menos os satanás do Fernando Henrique, mas são menos agressivos. Quais são os judas dele? Como é que o País tem seis centrais sindicais e todas apoiam o governo? Isso não aconteceu nem com Stalin. Na França, há as centrais contra Sarkozy e a favor de Sarkozy, é uma briga. Na Alemanha também. O mais puro dos movimentos sociais brasileiros, pra usar uma palavra agressiva, foi "estuprado" por Lula: a UNE. Ela era um dos mais puros movimentos sociais do País, mas o Lula realmente estuprou, virou um escritório do governo. Pois bem. Tenho uns depoimentos que só um sujeito da minha idade pode dar. O que era o seminário católico. O que era o Partido Comunista. O Partido Comunista era o mais santo...

Por quê?
Era a favor do povo, de todas as causas nacionais. Era comandado pela União Soviética, inegável, mas como a URSS não tinha invadido o Brasil, não tinha tropas aqui, era uma coisa distante. O PC defendia melhores bandeiras que a imprensa. A imprensa de hoje é uma imprensa capitalista.

A mídia brasileira não ficou muito com a cara de São Paulo?
Porque é uma imprensa empresarial e a base está lá. O Sistema Globo está no Rio, mas na verdade está lá. Destaco determinadas maneiras de atuação no livro. Mostro como era a UNE. Éramos todos soldados do bem. E o Partido Comunista ajudava isso, mas tinha atrás a URSS. A gente tem agradecer ao Dutra, porque rompeu logo com a URSS e purificou o Partido Comunista Brasileiro.

Por que o PCB foi rejeitado pela esquerda brasileira? Até hoje é atacado, condenam sua herança para a esquerda.
Porque quando caiu o muro de Berlim, mudou tudo. Lula chegou mais aliado a Golbery. Era uma "válvula de escape", como Golbery dizia, do movimento operário, que não era mais controlado pelo PC, mas por Lula e a Igreja Católica e seus aliados. A Igreja substituiu o Partido. Aí veio toda aquela cobertura do dom Evaristo (Arns). A Igreja substituiu porque os membros do PC estavam mortos ou na cadeia.

O livro vai até o governo Collor?
O livro é uma história de 50 anos, de 1944 até 1994, quando eu voltei de Paris. Depois de 94, tem o Fernando Henrique e o Lula, mas guardo pra outro livro.

Na hora do ponto final, o que você sentiu ou pensou?
Eu tive um estresse, doença mesmo. Me deu uma labirintite. Terminei o livro inteiramente perturbado. No resto do livro eu me senti estressado. Ele tem três amores mortos. Você de repente vai vivendo mais e a vida se torna uma alameda de amores mortos. Fui revirar, mesmo assim é um negócio difícil. Agora, foi a melhor coisa que fiz na minha vida, é a coisa mais parecida comigo. Fiz "Folclore Político", mas minha cabeça não é de folclore político. Fiz o de campanha, mas também não sou eu, 50% dos outros e 50% meu. Eu procurei, acho que fiz bem, esse livro sou eu. É minha alma, minha vida, meus sofrimentos, minhas angústias e, inclusive, as brigas em que entrei. Não falseei nada. Deixei de contar algumas histórias. Mas conto a história da campanha do Collor, do Juscelino, da ditadura.

Terra Magazine

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