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sexta-feira, 10 de outubro de 2008

A Odebrecht tornou-se a mais recente vítima do populismo latino-americano

Sob o risco de uma quartelada

| 02.10.2008

A Odebrecht tornou-se a mais recente vítima do populismo latino-americano — um feroz inimigo das multinacionais brasileiras

C.J. Schexnayder/Kleph.com

Túnel da hidrelétrica San Francisco: energia suficiente para abastecer 12% do Equador

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Por Daniella Camargos

EXAME No fim da tarde de 23 de setembro, terça-feira, Marcelo Odebrecht, presidente da construtora fundada por seu avô e com obras espalhadas por 34 países, estava reunido com um grupo de diretores na sede da empresa, na marginal Pinheiros, em São Paulo, quando recebeu uma ligação urgente. Do outro lado da linha, um funcionário da Odebrecht dava a notícia que iria monopolizar a atenção do executivo pelos dias seguintes: a empresa acabara de ser expulsa do Equador pelo presidente do país, Rafael Correa. O cenário era de caos. Quatro obras da empreiteira haviam sido ocupadas pelo Exército equatoriano, seus bens embargados e quatro executivos brasileiros responsáveis pela operação estavam proibidos de deixar o país. Frente ao problema, a reação de Marcelo Odebrecht não foi propriamente de surpresa, mas de decepção. O golpe desferido pelo governo equatoriano foi o ápice de uma crise que já se desenrolava havia três meses, quando uma usina construída pela empresa, a hidrelétrica San Francisco, apresentou problemas técnicos e teve de ser paralisada. O presidente Correa passou a acusar a Odebrecht de negligência na execução da obra e a exigir o pagamento de uma indenização. Com a decisão do governo equatoriano de usar a força, a primeira reação de Marcelo Odebrecht foi se certificar da segurança dos executivos da empresa no país. Dois deles já estavam no Brasil. Os outros dois receberam ordens para ir até a embaixada brasileira em Quito e lá permanecer. A segunda reação foi assumir pessoalmente o gerenciamento da crise. Apenas nos primeiros cinco dias de negociação, Marcelo Odebrecht já havia disparado mais de 30 telefonemas e foi três vezes a Brasília em busca de apoio federal. “Desde o seqüestro do engenheiro João José Vasconcelos Júnior, no Iraque, em janeiro de 2005, Marcelo não vivia uma situação tão tensa”, diz um executivo da empresa. Procurado por EXAME, Marcelo Odebrecht não quis dar entrevista.

A hidrelétrica San Francisco, localizada a 220 quilômetros ao sul de Quito, é uma obra única no mundo. Totalmente subterrânea, a usina é abastecida por um sistema de dutos de 21 quilômetros de extensão que captam parte das águas do rio Pastaza e a direcionam para a casa de máquinas onde ficam as duas turbinas (veja quadro ao lado). Construída em parceria com a francesa Alstom e a austríaca VA Tech, San Francisco gera energia suficiente para abastecer 12% do consumo do Equador. Em julho, apenas um ano depois da inauguração, foram identificadas rachaduras em oito pontos do sistema de dutos, em um trecho de 8 quilômetros. Ao mesmo tempo, o rotor de uma das turbinas apresentou um desgaste maior que o previsto. As duas falhas levaram à interrupção do funcionamento da hidrelétrica. Ainda é cedo para saber ao certo de quem é a culpa pelo mau funcionamento da usina — se é que existe algum culpado de fato. A hipótese mais provável até agora é aquilo que os americanos chamam de act of god, uma fatalidade. Segundo os engenheiros da Odebrecht, a explicação para a sucessão de problemas teria sido o aumento da quantidade de sedimentos na água do rio Pastaza em decorrência da erupção de um vulcão próximo à usina, o Tungurahua. De acordo com a Odebrecht, o projeto original, produzido pelo governo equatoriano, dava indicações de que a proporção de sedimentos no rio era inferior a 400 partes por milhão. As turbinas e os dutos de água foram construídos com base nessa premissa. O problema é que a atividade vulcânica, que não acontecia nessas dimensões desde o início do século 20, aumentou essa proporção em 35 vezes.

Se o aspecto técnico gera discussões sobre culpa e culpados, politicamente, não há dúvida: o governo equatoriano contribuiu (e muito) para que um problema de infra-estrutura se transformasse numa quartelada típica de uma república das bananas. Desde o começo da crise, a Odebrecht mostrou-se disposta a negociar. Vários acenos de paz, com propostas de reparação dos prejuízos, foram feitos pela empresa. Logo no início da negociação, a Odebrecht aceitou arcar com os reparos da usina, que somariam 25 milhões de dólares, e depositou outros 43 milhões de dólares na conta do governo equatoriano, que inclui a indenização pela paralisação da hidrelétrica e a devolução dos custos por ter concluído a obra antes do tempo previsto. Do outro lado, a cada sinal de paz feito pela companhia brasileira, o governo equatoriano aumentava as exigências. Até que Correa passou a impor uma indenização extra, no valor de 200 000 dólares por dia, pela paralisação da usina. Percebendo que o presidente do Equador não estava querendo chegar a um acordo, a empresa requisitou, então, a presença de representantes da embaixada brasileira nas reuniões de negociação. O objetivo era que eles ajudassem a diminuir a intransigência dos equatorianos na negociação. Foi o pretexto que faltava para a invasão das obras e da sede da construtora. “É evidente que houve interesse político na ocupação de nossas obras”, diz um dos vice-presidentes da Odebrecht.

Os problemas da usina San Francisco

A tese de que a invasão não passou de uma manobra pirotécnica ganha força quando se observa o momento político do Equador. A ofensiva do governo equatoriano contra a construtora brasileira deu-se apenas cinco dias antes de um referendo para um novo projeto de Constituição. Não por acaso, uma Constituição que vai ampliar significativamente os poderes do Executivo, leia-se Rafael Correa, e abre possibilidade para que ele permaneça por mais oito anos no poder. A Odebrecht, assim, teria sido arrastada em meio a uma ferrenha disputa entre um aspirante a Hugo Chávez e a oposição equatoriana. Recentemente, adversários de Correa denunciaram a proximidade do presidente com a construtora brasileira e usaram como exemplo o fato de ele ter viajado ao Brasil em um avião pago pela empresa. “Ao atacar a Odebrecht, Correa buscou aumentar sua popularidade junto aos eleitores, mostrando que colocava os interesses nacionais acima dos contratos com empresas estrangeiras”, diz José Alexandre Hage, professor de relações internacionais da Trevisan Escola de Negócios, em São Paulo. No domingo, dia 28, o projeto da nova Constituição de Correa foi referendado pela população equatoriana com 64% de aprovação. Dois dias depois, o discurso contra a Odebrecht continuou duro. Em um encontro com o presidente Lula, em Manaus, Correa declarou que “a Odebrecht está fora”, mas que iria analisar o caso depois com calma.

De acordo com os especialistas em relações internacionais ouvidos por EXAME, é bem provável que a Odebrecht reassuma nas próximas semanas suas obras no Equador. Até o episódio envolvendo a hidrelétrica San Francisco, a história da companhia no país foi bem-sucedida. Em 1987, a Odebrecht conquistou seu primeiro contrato por lá, a construção de uma barragem em um projeto de irrigação agrícola, próximo à cidade de Guayaquil. Vinte e um anos depois, o país tornou-se, ao lado da Venezuela, o maior canteiro de obras da Odebrecht fora do Brasil. Foram sete no total, das quais quatro ainda estão em execução: a hidrelétrica Toachi-Pilatón, o aeroporto internacional de Tena, o complexo hidrelétrico e de irrigação Baba e a barragem Carrizal-Chone. Esses projetos, somados, representam contratos de cerca de 700 milhões de dólares. Como o país tem mantido uma taxa média de crescimento anual de 5%, a economia equatoriana, ainda carente de obras de infra-estrutura, tornou-se um grande cliente para a Odebrecht e outras empresas brasileiras. A Andrade Gutierrez, por exemplo, está construindo um novo aeroporto internacional em Quito. Valor da obra: 587 milhões de dólares. “Apesar dos problemas, as empresas brasileiras não devem desistir de países como o Equador. O que elas precisam fazer é não dar margem a erros e tentar sempre o caminho diplomático”, diz Álvaro Cyrino, professor da Fundação Dom Cabral e especialista em internacionalização.

Os vizinhos da América Latina têm sido, tanto pela proximidade geográfica como pela facilidade do portunhol, o destino preferencial das empresas brasileiras interessadas em se lançar ao exterior. Nos últimos anos, porém, a relativa facilidade com que elas faziam negócios pela vizinhança começou a mudar. Em países como Argentina, Bolívia, Venezuela, Paraguai e Equador, todos governados por políticos de esquerda, as companhias brasileiras passaram a ser identificadas como imperialistas e a ser tratadas com a mesma desconfiança que cercavam suas congêneres americanas e européias. Em 2005, o então presidente argentino, Néstor Kirchner, escolheu as empresas brasileiras como bode expiatório para a crise da indústria local, acusando-as de promover uma “invasão de produtos brasileiros” e a “desnacionalização” das empresas argentinas. No ano seguinte, no mês de abril, o boliviano Evo Morales expulsou do país a EBX de Eike Batista, que construía uma siderúrgica próximo à fronteira com o Brasil. No dia 1o de maio, 40 dias antes das eleições para a Assembléia Constituinte boliviana, Morales estatizou o setor de petróleo e gás, ocupou com o Exército duas unidades da Petrobras e expropriou ativos da empresa. “O Brasil é visto como um país rico e alguns governos de esquerda têm aproveitado essa percepção para manobras populistas”, diz Hage, professor da Trevisan Escola de Negócios.

Outros 700 milhões de dólares em jogo

O processo de internacionalização de uma empresa costuma ser complexo e sujeito a contratempos até para as companhias mais experientes em operações em países estrangeiros — seja ele qual for. Além dos desmandos políticos, existem dezenas de outras barreiras que se tornam mais ou menos comuns de acordo com as características de cada região. Em países desenvolvidos, como Estados Unidos e Canadá, não é raro empresas estrangeiras terem problemas com a legislação trabalhista e com os sindicatos. Em 2001, quando a Votorantim Cimentos deu o primeiro passo no exterior, ao comprar a canadense St. Marys Cement Inc., a idéia era aumentar rapidamente a eficiência da companhia. A meta era passar uma borracha na velharia e conseguir recuperar o investimento em três anos. Os brasileiros encontraram uma resistência inesperada. Enquanto eles achavam que era preciso mudar tudo, inclusive o número de postos de trabalho, os funcionários queriam que a empresa continuasse como era antes da aquisição. A reação do sindicato local foi tão violenta aos planos da Votorantim que o plano inicial teve de ser inteiramente refeito e as metas foram adiadas por mais dois anos. A Gerdau passou por um problema parecido ao comprar 12 usinas nos Estados Unidos a partir de 1999. Para poder realizar demissões e alterar a estrutura de salários e benefícios, a empresa travou uma dura queda-de-braço com o sindicato do setor. A situação só foi resolvida após meses de negociação. Para as companhias que conseguem transpor as fronteiras do país, competir no exterior, porém, é um caminho sem volta. Hoje, dos 5 bilhões de dólares que a Odebrecht fatura por ano, 75% vêm do exterior, a maior parte da América Latina. Mesmo sob o risco de quarteladas e outros problemas, as empresas brasileiras já entenderam que o Brasil ficou pequeno demais para elas.

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