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domingo, 21 de setembro de 2008

Jean Charles, baseado em fatos reais



Em Londres, Selton Mello revive tragédia do brasileiro morto há 3 anos na cidade

Flávia Guerra


"O que este povo está fazendo aqui? Não está satisfeito? Volta para o Brasil!", dizia um típico cidadão inglês indignado com a confusão que se formava na tarde de quinta, na frente da estação de metrô de Stockwell, na zona sul de Londres. "Seu preconceituoso. Não vê que ele era inocente? Podia ter sido qualquer um!", responde uma senhora, também tipicamente londrina.

Enquanto a discussão se desenrola, os ?brazukas? continuam o protesto. Em punho, cartazes clamando por uma justiça que, três anos depois de um crime que chocou a opinião pública, ainda não chegou. Se estiver a caminho, deve chegar em um dos metrôs lotados das linhas mais congestionadas de toda a Europa. E deve ter-se atrasado em uma das milhares de baldeações que milhões de moradores de Londres têm de fazer todos os dias para chegar ao trabalho. Foi numa dessas viagens que Jean Charles de Menezes se perdeu. O protesto que tumultuava e chamava a atenção dos que passavam defendia a condenação dos culpados pela morte de Jean Charles, brasileiro morto com sete tiros na cabeça em julho de 2005 ao sair da estação de Stockwell, quando foi confundido pela Scotland Yard com um suspeito terrorista.

O protesto, os cartazes e os revoltosos faziam parte do elenco do filme Leave to Remain, que está sendo rodado em Londres e conta a história desse brasileiro. O protesto era fictício. Mas a indignação é real. O santuário em homenagem a Jean Charles também. Há uma melancolia de tristes trópicos no memorial ?favelinha? (como os brasileiros ironicamente definem o altar) precariamente construído na saída da estação. Três anos depois, ninguém ousa tocar no santuário. Nem nos culpados por esse grande ?mal-entendido? que foi a morte de Jean.

Muito por isso, havia um estranho clima de ?baseados em fatos reais demais? nas filmagens do longa-metragem. Dirigido pelo brasileiro Henrique Goldman e protagonizado por Selton Mello, o filme vai contar não só a história do crime que até hoje incomoda não só brasileiros e perturba profundamente os brios da polícia inglesa. Ainda sem nome definido, Leave to Remain (que poderia ser definido como ?permissão para ficar? ou ?ir para ficar?) conta também a história de um imigrante comum, que tenta ganhar a vida e a civilidade em uma capital européia onde bairros exclusivamente ingleses são raridade. Caso simbólico em um mundo globalizado até segunda ordem. Uma aldeia global que funciona muitas vezes segundo as regras de quem inventou a globalização e não de quem tenta se inserir em suas entrelinhas. Vale lembrar que o assassinato de Jean Charles tem profundo significado simbólico.

No tumultuado julho de 2005, duas semanas depois de Londres ter sofrido atentados, de a polícia inglesa estar sob imensa pressão para encontrar culpados, em um ano em que o mundo transpirava pavor, a morte de um inocente ganhou tons geopolíticos que ultrapassaram a mera crônica policial. Confundido com um suspeito terrorista, esse imigrante poderia ser grego, turco, indiano, paquistanês, colombiano, chinês até... Mas era brasileiro. Eletricista, mineiro, filho de família pobre que, como milhares, vê na imigração, ainda que seja para entrar em um país estrangeiro na condição de ?working class?, a chance de prosperidade não encontrada em seu próprio país.

Filme que desde já está dando o que falar, Leave to Remain ganha na próxima semana mais um forte ?fato real? que o deixa ainda mais atual. Começa na segunda o inquérito público que vai reconstituir todos os passos de Jean Charles de casa até a estação de Stockwell, no dia em que foi morto. Presentes, estarão os primos Alex, Vivian e Patricia, que moravam com ele na época. Patricia também estava presente no protesto fictício. Procurada por Goldman na fase de pesquisas do filme, foi convidada para interpretar a si mesma. E aceitou. Quem vive Alex é o ator Luis Miranda. E a atriz Vanessa Giacomo é quem interpreta Vivian. "No início, fiquei muito receosa. É minha história que este filme conta. Reviver tudo que vivi não é fácil. Muitas vezes, a sensação de tristeza e desespero volta como se fosse tudo real de novo. Mas estou adorando a experiência e está valendo muito a pena", conta Patricia, que mora em Londres até hoje e, até conhecer Goldman, fazia faxina em escritórios na cidade. "Como a grande maioria dos brazucas que chega, e muitos chegam sem falar inglês, sobra mesmo o ?cleaning? para fazer. Na hora do trabalho, não tem historinha", conta a brasileira.

Brasileiro também imigrante, que deixou o Brasil há 26 anos (já morou nos EUA, Itália e Londres, onde vive atualmente), Goldman é diretor de documentários e seu primeiro longa de ficção também parte da observação da realidade para contar no cinema a história de um travesti brasileiro que se casa com um cliente que conhece nas ruas de Milão. Em Leave to Remain, Goldman não só escalou não atores (como Patricia e Mauricio, que foi chefe na vida real de Jean e também interpreta a si mesmo no filme), como faz questão de dar às cenas que filma o tempero da realidade. Na última quinta, enquanto filmava o protesto, nenhuma área foi isolada. Os transeuntes passavam tranqüilamente pela locação e eram até convidados a ?entrar em quadro?, se quisessem. Um dia antes, foi a vez de filmar, no extremo norte da cidade, a cena em que os primos Vivian, Alex e Patricia voltam pela primeira vez depois do crime para o apartamento em que moravam com Jean Charles. Mais uma vez, nada de grandes produções hollywoodianas. Os moradores do condomínio passavam tranqüilos pelo local. O elenco de apoio e figurantes iam se esquentando ao longo das repetições da cena e as instruções eram dadas por Goldman da forma mais tranqüila possível.

"Foi uma experiência incrível e inédita para mim. Não só pelo tema, que me exigiu demais, mas pela experiência de filmar no exterior. Esta é a primeira vez que eu praticamente só trabalhei com uma equipe estrangeira. Tive de me adaptar à cidade, ao inglês, à história, a tudo", contou Selton Mello, que já está de volta ao Brasil, onde mostra, na semana que vem, seu primeiro longa como diretor, Feliz Natal, no Festival do Rio. "Há vários brasileiros na equipe, mas todos moram em Londres. E há muitos ingleses também. Essa interação entre países e culturas também foi ótima para o filme. A história também fala disso. Afinal, não vivo na tela só o último dia do Jean. Há muito da vida dele, de como ele se divertia aqui, quem era, onde ia, onde trabalhava. Foi um processo muito bom poder criar esse personagem. Jean era brasileiríssimo. Não era um galã, mas tinha charme, era astuto, inteligente. Como tantos brasileiros, era mestre no jeitinho e no bom humor. Estou muito feliz com essa nova experiência."

Encerradas as filmagens em Londres, e depois de 40 dias na capital londrina, Selton embarcou de volta ao Brasil na quinta-feira. O restante da equipe viaja amanhã para Paulínia, no interior paulista, onde todas as cenas que se passam no Brasil serão rodadas em outubro. "Como o filme tem verba do concurso de roteiros e incentivo de Paulínia, o enterro, as cenas na casa dos pais do Jean, entre outras, serão filmadas na cidade", contou Goldman, enquanto se preparava para rodar uma das últimas cenas do filme. Em meio à multidão que disputa as calçadas do polêmico e agitado bairro de Brixton, Vivian (Vanessa) caminha em direção à estação de metrô do bairro. Foi por lá que ela chegou a Londres. É de lá que ela parte para o Brasil três anos depois. E assim um ciclo se fecha.

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