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domingo, 31 de agosto de 2008

"Sinto um certo cansaço de viver. É uma chatice"

"Sinto um certo cansaço de viver. É uma chatice"


JOÃO CÉU E SILVA Texto e LUÍS C. CARVALHO Foto
Nem todos os portugueses chegam aos 99 anos, como é o seu caso!

Nem todos, mas há quem tenha muito mais. Até se conta uma anedota de um jornalista - como o senhor - que foi a uma aldeia visitar um sujeito que tinha 120 anos. Como teve problemas na viagem, chegou tarde e já era quase meia-noite quando foi recebido, e estavam a conversar sobre como é que ele se alimentava, o que é que fazia e não fazia para ver se chegavam à conclusão sobre qual era o tipo de vida que melhor convinha para entrar assim numa idade avançada. E nisto há muito barulho, ouve-se uma porta a abrir e a fechar, há mais barulho no corredor, e o idoso diz: "Não se inquiete, é o meu irmão mais velho que chega sempre bêbedo." A única explicação que se pode dar à questão da idade é ser um capricho da natureza. Não somos cúmplices nisso porque não depende de nós nem é virtude própria. Já o José Régio pensava escrever um livro sobre a tortura de viver toda a vida... Eu próprio, com esta idade, por vezes sinto um certo cansaço de viver.

Não é isso que se pensa quando se o vê!

Sinto cansaço apenas. De fazer a barba todos os dias, de levantar, vestir, tomar banho, pequeno-almoço, comer, mastigar, engolir. Tudo isso, essas coisinhas fáceis e corriqueiras mas que são sempre as mesmas. É sempre a mesma coisa, a mesma ordem, ver a televisão. Tudo isso é uma chatice.

Viver é uma chatice?

A única coisa que me consola e onde eu posso descansar, verdadeiramente descansar, é quando estou a realizar um filme. Nem quando estou a escrever fico animado, se vem a ideia, tudo bem, mas se não vem, fico muito inquieto. Depois, quando vem a ideia, é-se feliz e escreve-se, mas é enquanto realizo que sinto a paz e o sossego. Esqueço que tenho de me levantar cedo, esqueço-me de comer, esquece-me tudo, e estou ali.

Quer dizer que, enquanto as pessoas tiram férias, o senhor prefere fazer filmes!

Faço filmes, são as minhas verdadeiras férias.

Nesses filmes tem sempre vários actores com quem gosta de trabalhar. Lembro-me de o ver em Caminha, enquanto esteve a filmar Viagem ao Princípio do Mundo, com Marcello Mastroianni...

Sim, gostei muito do Mastroianni, porque era um homem muito simples e muito dado e um actor extraordinário. Ele sofria de diabetes e quando o convidei respondeu-me: "Ó Manoel, eu lamento, mas tenho de andar com uma canadiana." E eu respondi-lhe que não fazia mal, podes vir assim, basta dizer no filme que torceste o pé!

Como era a relação com Mastroianni?...

Era um homem muito curioso e discreto e às vezes respondia-me que não me tinha perguntado sobre uma dúvida "para não te aborrecer". Conheci-o quando Mário Soares era presidente da República e ofereceu-lhe um jantar e à Catherine Deneuve, e convidou também realizadores. Então encontrámo-nos, e ele estava muito irritado e disse-me: "Sabes", tratou-me logo por tu, "eu estou indignado porque um realizador estava a trabalhar e disse-me que os actores são só objectos. Não, os actores não o são!" Ele estava indignado e perguntou-me: "O senhor é claro que se retira para estar tranquilo enquanto prepara o filme como fazem alguns realizadores, o Bergman e mais não sei quem! Mas eu não faço nada disso, o realizador diz o que quer e eu faço o que ele manda!" Era um homem muito afável, muito directo e no último dia das filmagens houve um jantar com a equipa toda, que gostava imenso dele. Depois, morreu quase a seguir, foi para Milão representar uma peça de teatro que definia assim: "Eu estou numa retrete a queixar-me da vida e eles gostam, o público aprecia aquilo." Ele admirava-se que gostassem. Acabou o filme com a equipa toda de pé a dar-lhe palmas e saiu todo comovido. Houve nessa vez uma conferência de imprensa em Melgaço - tinham lá uma termas muito boas para os diabetes -, entrou, saudou os jornalistas, disse meia dúzia de coisas e depois ficou à espera das perguntas, mas ninguém fazia uma, e a certa altura perguntou: "O que é que querem que eu faça, que cante?"

Com que outros actores gostou de trabalhar?

Gosto de todos eles. Com a Catherine Deneuve, com o Malkovich.

O Malkovich não é uma pessoa complicada?

Nada, nada, o mais simples possível. É óptimo, gosto muito dele, suponho que ficámos amigos.

Tal como o Michel Piccoli e outros franceses?

Com o Michel Piccoli, e outros franceses, também, mas especialmente com o Michel Piccoli tenho uma grande amizade.

É o único realizador português que consegue ter tantos actores estrangeiros nos seus filmes. Porquê?

Eles gostam de trabalhar comigo, e eu com eles, mas é um bocado difícil, porque falam francês ou inglês nos filmes. O Malkovich fala inglês, embora tenha dito meia dúzia de coisas em português, porque eu lhe pedi, e com dificuldade lá as disse, mas até era bonito que ficassem ditas desse modo. Já o Eça de Queirós dizia que nós devemos falar o português correctamente e mal as línguas estrangeiras. E dizia que isso seria também igual para qualquer outro país, para a França, a Itália. Falar bem a língua do país e mal as outras.

Falando do Eça, o seu próximo filme é sobre uma obra dele!

Ainda não o estou a fazer, mas espero vir. As coisas estão bem encaminhadas, vamos a ver se se consegue. É o conto Singularidades de Uma Rapariga Loura, mas não convém dizer mais nada.

Como realizador, não é tão metódico como, por exemplo, o Stanley Kubrick?

Não gosto de repetir, e quando repito já o faço contrariado. Muitas vezes até filmo o ensaio geral e às vezes é o melhor. Gosto da espontaneidade, porque quando se sabe que se vai representar já se é outro.

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