O cemitério de Petrópolis (acima) e escavações em Foz do Iguaçu (abaixo). Uma missão do governo levantou dados e fez buscas por corpos de desaparecidos
Ivan Mota Dias, estudante de história, era conhecido como o Comandante Cabanos da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). A VPR era um dos mais agressivos grupos da esquerda armada que combatiam as forças da ditadura militar (1964-1985). Em 15 de maio de 1971, Dias foi preso no Rio de Janeiro por agentes do Cisa, o serviço secreto da Aeronáutica. Sua família o procurou, em vão. Seu corpo nunca apareceu. Documentos oficiais não registram seu destino. A história de Ivan é semelhante à de outros desaparecidos e as dúvidas que cercam seu destino são compartilhadas por outras famílias. Agora, 40 anos depois, surgem pistas. Os corpos de Ivan e de outros 16 desaparecidos podem ter sido enterrados como indigentes, ou com nomes falsos, em covas rasas no cemitério de Petrópolis, no Rio de Janeiro.
Sem alarde, no ano passado, a Secretaria de Direitos Humanos empreendeu durante oito meses a mais sistemática busca por restos mortais de desaparecidos políticos já feita no país. As buscas foram feitas em quatro Estados por uma equipe formada por funcionários da Secretaria, agentes da Polícia Federal, procuradores da República e um consultor externo. Um dos principais focos foi Petrópolis. Pelo menos entre 1970 e 1974, funcionou na cidade um cruel centro de tortura e assassinato mantido pelas Forças Armadas fora de suas instalações oficiais. A Casa da Morte – codinome Codão – ficava na Rua Arthur Barbosa, 668, no bairro Caxambu. Era um cárcere privado mantido pelo Centro de Informações do Exército (CIE). Para ele eram levados os presos que poderiam ser convertidos em agentes duplos. Mas a função primordial era torturar e matar sem deixar rastros. Isso incluiria a norma macabra de picotar os corpos.
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As informações levantadas pela missão, no entanto, podem mudar o pouco que se sabe sobre esse episódio sombrio. Ex-militante que foi torturado no DOI-Codi paulista e cumpriu pena na década de 1970, Ivan Seixas foi o consultor da equipe da Secretaria. Há mais de dez anos, ele recebeu uma informação sobre os mortos em Petrópolis. “Procure no cemitério atrás do Quitandinha. Lá você pode achar o pessoal da casa”, disse um intermediário. Quitandinha é um hotel desativado, um dos cartões-postais de Petrópolis. Atrás dele fica o bairro onde está o cemitério municipal.
No ano passado, a partir de uma lista de 30 militantes desaparecidos no Rio e em São Paulo que podem ter passado pela Casa da Morte, Ivan Seixas e a procuradora da República Vanessa Seguezzi vasculharam os livros dos sepultamentos realizados no cemitério de Petrópolis entre 1970 e 1974. Com base em atestados de óbito, verificaram grandes coincidências entre as datas de prisão de 17 militantes e as de enterro de corpos lá sepultados. As circunstâncias e as causas das mortes – fraturas de crânio, tiros, hemorragias, acidentes – também chamaram a atenção. No caso de Ivan Mota Dias, há coincidências com um desconhecido, de “20 e poucos anos”, que foi sepultado no cemitério de Petrópolis no dia 17 de maio de 1971 e cujo cadáver havia sido encontrado na Estrada União Indústria. Dias havia sido preso dois dias antes. O atestado de óbito, assinado pelo médico Alódio Imbroisi, diz que o desconhecido morreu de “hemorragia intracraniana, fratura do crânio, acidente” – causas que podem ser relacionadas à tortura. Sabe-se que Dias passou pela Casa da Morte graças à informação de Inês Etienne Romeu, a única presa a sair com vida daquele matadouro.
Inês ouviu seus torturadores dizer que Ivan seria executado. Ela foi militante da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), ao lado da presidente Dilma Rousseff. O pouco que sabe sobre a Casa da Morte é resultado de suas observações durante os 96 dias em que esteve presa lá, entre maio e agosto de 1971. Quebrada pelos suplícios, Inês tentou o suicídio duas vezes. Mesmo torturada continuamente, ela foi capaz de guardar nomes de presos, apelidos de torturadores e até o telefone da casa – que serviu para localizar o imóvel anos depois. Guardou um detalhe fundamental: em um dos quartos ficava uma cama de campanha com a inscrição “Centro de Informações do Exército”. Em 1979, Inês prestou um depoimento à OAB do Rio de Janeiro. Listou os nomes de 19 militares torturadores e um médico, depois identificado como o psicanalista Amílcar Lobo. Deu informações sobre nove presos torturados e mortos na casa.
Não se sabe quantos presos, no total, passaram pela casa enquanto ela funcionou. Dos nove presos vistos por Inês, ou dos quais ela soube, quatro podem ter sido enterrados no cemitério de Petrópolis, segundo o levantamento da Secretaria. Paulo de Tarso Celestino da Silva, militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), foi preso com a namorada, Heleny Guariba, da VPR, no Rio de Janeiro, no dia 12 de julho de 1971. Segundo Inês, Paulo foi torturado por seis militares durante 48 horas. Foi obrigado a comer muito sal e suplicava por água. Segundo Inês, Heleny teria sido torturada por dois dias até com choques na vagina. O levantamento afirma que Paulo pode ter sido enterrado com o nome de Ari Barbosa, em 16 de julho de 1971, ou de Geraldo Deonídio Silva, em 24 de julho de 1971, ambos citados como indigente nos atestados de óbito. Heleny pode ter sido sepultada como Elvira da Silva Oliveira, no dia 24 de julho de 1971.
Aluízio Palhano Pedreira Ferreira, militante da VPR, foi preso em 9 de maio de 1971. Inês Etienne afirmou que outro preso disse a ela que Aluízio teria chegado à Casa da Morte em “estado deplorável”. Aluízio pode ter sido enterrado no cemitério de Petrópolis com o nome de José Neves Filho. Aluízio tinha os mesmos 49 anos da certidão de óbito de Neves Filho. O enterro foi feito no dia 14 de maio, cinco dias após a prisão de Aluízio. No atestado de óbito, a causa da morte é “hemorragia cerebral e acidente vascular cerebral”.
A Casa de Petrópolis existiu graças a uma parceria público-privada. Ela foi emprestada ao Exército pelo alemão Mário Lodders. Simpatizante da ditadura, Lodders morava ao lado da Casa da Morte e a frequentava. Ele via presos torturados, segundo contou Inês. Veterano do Partido Comunista Brasileiro (PCB), David Capistrano Costa pode ter sido um deles. Ele havia participado da Guerra Civil Espanhola e da Resistência Francesa à ocupação nazista durante a Segunda Guerra Mundial. No dia 16 de março de 1974, Costa foi preso com o companheiro de militância José Roman. Militares afirmam que Costa e Roman foram torturados na Casa da Morte. No dia 31 de março foram sepultados no cemitério de Petrópolis os corpos de João Pereira de Melo, Sebastião Luiz dos Santos e José Fernandes. Suspeita-se que João possa ser David Capistrano Costa porque tinham idade parecida. Roman poderia ser Sebastião ou José Fernandes.
Fundado há mais de 100 anos, o cemitério municipal São Pedro de Alcântara, onde podem ter sido enterrados os 17 desaparecidos, abriga mais de 6 mil sepulturas. Algumas estão incrustadas nas calçadas da avenida que corta o cemitério ao meio e nas encostas dos morros ao redor. São cerca de 66 mil corpos sepultados. De acordo com a administração do cemitério, os mortos enterrados em covas rasas na década de 1970, como é o caso dos levantados pela missão da Secretaria, podem ter sido desenterrados cinco anos depois e jogados em valas comuns.
Procurar mortos da ditadura é um trabalho difícil. Os documentos oficiais ajudam pouco. Os militares que sabem onde essas pessoas foram enterradas não colaboram. As chances de identificar os corpos são remotas. Por que, então, procurá-los? “O Estado tem a responsabilidade de fazer todos os esforços para localizar os restos mortais de pessoas que ele fez desaparecer”, afirma o procurador da República Marlon Weichert. A ação civil pública encaminhada por Weichert à Justiça levou às buscas de oito desaparecidos no cemitério de Vila Formosa, em São Paulo. “Esses corpos não foram localizados porque houve resistências dentro do Estado”, afirma a ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário. “Mas é uma obrigação constitucional buscá-los. É uma forma de completar a transição democrática.” Nesta semana, uma reunião da Comissão de Mortos e Desaparecidos, em Brasília, vai discutir o que fazer sobre o caso de Petrópolis.
Uma busca mais difícil que a de Petrópolis foi feita no ano passado em Foz do Iguaçu, Paraná. O objetivo era localizar os corpos de cinco militantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e um militante argentino. Refugiados na Argentina, em junho de 1971, Onofre Pinto, José Lavechia, os irmãos Daniel José e Joel José de Carvalho, Victor José Ramos, todos da VPR, e o argentino Ernesto Ruggia tentavam retomar a luta armada no Brasil. O grupo foi atraído pelo militante Alberi Vieira Soares – que, na verdade, era um agente duplo a serviço do Centro de Informações do Exército. Um ex-militar aceitou colaborar como informante da missão da Secretaria. Ele disse que, com exceção de Onofre, os quatro da VPR e Ruggia foram levados por Alberi e um colega a um suposto esconderijo pela antiga Estrada do Colono, na noite de 14 de julho de 1974. Eles caminhavam pela mata, quando caíram numa emboscada e foram metralhados. A armadilha teria sido executada pelo capitão Ênio Pimentel da Silveira, o doutor Nei do Centro de Informações do Exército, o capitão Paulo Malhães, chamado de Doutor Pablo, e os militares Laecato, Camarão e Presuntinho – os três últimos do CIE e funcionários da Casa da Morte de Petrópolis.
Os militares teriam ficado ainda cerca de meia hora no local, comendo e bebendo ao lado dos corpos. No dia seguinte, a mesma turma teria matado Onofre Pinto com uma injeção de Sheltox e jogado seu corpo em um rio. Durante 20 dias, uma equipe da Secretaria fez três expedições e escavações em vários locais dentro do Parque Nacional do Iguaçu para localizar os corpos. Até um helicóptero foi usado. No penúltimo dia, o ex-militar descreveu o local da emboscada e informou que as escavações não estavam sendo feitas no local exato. Ele deu indicações genéricas e novas buscas devem ser feitas neste ano.
Será muito difícil encontrar os mortos de Petrópolis ou de Foz do Iguaçu. Os algozes tiveram tempo suficiente para removê-los ou para alterar os locais. Há quase 40 anos, as famílias dos desaparecidos em Foz, São Paulo ou Petrópolis convivem com a dúvida de saber onde eles estão. A família de Mário Lodders, o homem que tornou possível a existência da Casa da Morte, tem mais sorte. De acordo com os registros do cemitério municipal de Petrópolis, Lodders morreu no dia 19 de fevereiro de 2008. Atenta às normas do cemitério, sua família pediu em fevereiro a exumação de seu cadáver. Os ossos estão guardados no ossário A-30, na quadra 04. Graças a esses cuidados, os restos de Lodders escaparam de se perder em uma vala comum. Se quiserem, seus familiares poderão homenageá-lo com flores para sempre.
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