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domingo, 24 de janeiro de 2010

Virei sem-terra e entrei na faculdade




Como eu e 70 mil jovens conseguimos vaga e desconto na universidade aderindo a uma entidade ligada a um deputado do PSDB e a uma ala da Igreja
Mariana Sanches
Rogério Cassimiro
MULTIDÃO
Reunião em 2009 juntou cerca de 40 mil pessoas em São Paulo. A presença no evento ajuda a garantir descontos na faculdade

Quando entrei em um galpão do bairro da Lapa, em São Paulo, às 10 horas da manhã de uma quarta-feira, nada na fachada azul do prédio permitiria antever a mudança de status social que sofreria em poucos minutos. Eu, jornalista, nascida em São Paulo, sem aspiração de vida no campo ou engajamento na reforma agrária, precisei de apenas uma foto 3x4 e R$ 1para me transformar em sem-terra de carteirinha. Encontrei quase 50 jovens na sede da Associação dos Trabalhadores Sem Terra de São Paulo (ATST). Um deles desembarcara de um automóvel Audi. Todos queriam tirar a carteirinha da associação, passaporte para ingressar em cursos de graduação oferecidos por faculdades privadas paulistas com descontos de até 65%.

Sem alarde, a associação instalou nos bancos universitários 70 mil jovens, o equivalente a 12% do total de beneficiados pelo ProUni, o programa do governo federal de distribuição de bolsas em faculdades. A quantidade de universitários sem-terra seria o bastante para ocupar todas as vagas da Universidade de São Paulo (USP), a maior instituição de ensino público do Brasil. Apesar de usar em seu nome a expressão “sem-terra”, a ATST surgiu há 23 anos como um movimento de moradia urbano. Logo após a fundação, dissociou-se do PT, que influencia a maioria das entidades do gênero. Por trás de sua engrenagem estão instituições de ensino, uma ala conservadora da Igreja Católica e o deputado estadual Marcos Zerbini (PSDB-SP), que criou e dirige a associação. No meio político, o grupo ganhou a alcunha de “MST tucano”.

Meu percurso até a realização do recorrente sonho de entrar na faculdade levou alguns meses. Transformada em sem-terra, precisei frequentar oito reuniões semanais com dirigentes da associação para conhecer as regras da entidade. A associação impõe disciplina espartana: não se admitem faltas ou atrasos, não é permitido usar o celular, levar acompanhantes ou ir ao banheiro, que fica trancado durante as reuniões. As sessões são iniciadas com orações. Primeiro um pai-nosso, depois uma ave-maria. Em seguida, instruções mais mundanas. Fui informada de que só conseguiria o desconto na faculdade se marcasse presença em nove dos 12 encontros mensais da associação. Além disso teria de pagar a taxa de associado, R$ 84, em três parcelas de R$ 28. Somente depois de pagar a primeira parcela pude prestar o vestibular que me daria acesso a um curso de graduação com desconto. No campus da Universidade de Mogi das Cruzes (UMC), respondi a 20 questões de múltipla escolha e escrevi uma redação. Fui aprovada e me matriculei no curso de Direito. Como “sem-terra”, paguei uma mensalidade de R$ 281,22, valor 65% menor do que um estudante sem vínculo com o “MST tucano” paga pelo mesmo curso.

O convênio entre as faculdades e a ATST existe há seis anos. Pelo menos 20 instituições de ensino de São Paulo fazem ou já fizeram parceria com os “sem-terra”. Elas dizem que oferecem seus cursos a valores acima do preço de custo, mas com margem de lucro reduzida. “O que Marcos Zerbini faz é corretagem de aluno”, diz um reitor participante do convênio. “O volume de estudantes da associação é tão grande que as faculdades aceitam negociar condições especiais.” Funcionários das faculdades afirmam que descontos dessa magnitude são inatingíveis para quem não se matricula como sem-terra. “É um bom negócio para as universidades porque elas têm vagas ociosas e nossos alunos ajudam a ocupá-las”, diz Zerbini. De acordo com o Censo de Educação Superior de 2008, há no Brasil 1,4 milhão de carteiras universitárias não preenchidas. Além de aumentar sua clientela (“80% dos nossos alunos vêm da associação”, disse um dos funcionários da UMC enquanto eu fazia a matrícula), muitas faculdades têm pleiteado isenções fiscais com a justificativa de que prestam serviço social ao oferecer bolsas de estudos para sem-terra. O movimento dos sem-faculdade é a maior fonte de dinheiro da associação, registrada na Receita Federal como uma instituição sem fins lucrativos. Se cada um dos 70 mil universitários pagasse suas taxas de associado, a associação arrecadaria R$ 6 milhões por ano. Segundo Zerbini, a inadimplência faz a arrecadação cair para R$ 3 milhões anuais.

Desde 1986, a associação já ajudou 17.500 famílias a comprar terrenos para construir casa. São cerca de 100 mil pessoas instaladas em 26 áreas na região metropolitana de São Paulo.

Em vez de invadir áreas, o movimento compra grandes terrenos, divide em lotes de 80 metros quadrados e os revende aos associados. Cada comprador deve construir a casa em que vai morar com recursos próprios. Não há padrão predefinido para as obras. Esse modelo é questionado pelo Ministério Público de São Paulo. Mais de 15 anos depois de construir suas casas, a maior parte dos assentados nunca conseguiu regularizar a situação do imóvel. “Eu e meus vizinhos não temos escritura. Fomos nós que colocamos asfalto aqui, os postes de energia, a placa da rua”, diz Valdemir Teixeira Lima, morador de uma das áreas criadas pela associação, no Jaraguá, em São Paulo. Os associados dizem que tão logo as áreas eram compradas, o povo se instalava, sem esperar pelas autorizações legais. “Não se fazia nem um trabalho de terraplenagem. Em alguns lugares, houve desmoronamentos. E não se podia cobrar nada da prefeitura porque as ocupações eram irregulares”, diz um arquiteto que trabalhou para a associação. A ATST foi processada pelo MP por ter criado loteamentos clandestinos. Acabou fazendo acordos para regularizar a situação. Em 2004, o MP investigou também a denúncia de que a associação assentava a população na reserva ambiental do Parque Estadual do Jaraguá. Embora registre que árvores foram indevidamente cortadas e que a área não poderia ser transformada em bairro, o processo foi arquivado.

A parceria da associação com as faculdades surgiu em um momento em que a fiscalização sobre a ocupação de terras na periferia de São Paulo se intensificou e novas áreas vazias se tornaram mais raras. O deputado Marcos Zerbini diz ter sido procurado em 2004 por um grupo de jovens interessado em cursar o ensino superior. “Como não havia jeito de criarmos nossa própria universidade, fui negociar descontos com as faculdades”, diz. De acordo com ele, como a empreitada foi bem-sucedida, no semestre seguinte uma enxurrada de vestibulandos invadiu a sede da associação. Zerbini diz ter sido impelido a criar uma estrutura robusta para dar conta da demanda. “Desde que conheci o Zerbini, há quase 20 anos, procuro pela cidade um outro organizador social como ele e nunca encontrei”, afirma Alberto Goldman, vice-governador de São Paulo. “Na década de 1990 ele conseguia fazer mais habitação do que qualquer órgão do Estado. Agora parece ir no mesmo rumo com as faculdades.”


Rogério Cassimiro
PASSAPORTE
Universitários disputam selo de presença em evento no Vale do Anhangabaú. O selo é exigido para manutenção do desconto na faculdade

A associação de “sem-terra” que dá desconto em faculdade também tem uma faceta religiosa. Com o crescimento da entidade, Zerbini alugou dois galpões industriais para acomodar a multidão juvenil e tornou-se um pregador do movimento católico italiano Comunhão e Libertação. Na Itália, essa ala católica é conhecida por seu conservadorismo e por apoiar o primeiro-ministro Silvio Berlusconi. “No Brasil, ao longo de 30 anos a Comunhão e Libertação viveu restrita ao ambiente acadêmico”, diz o padre Vando Valentino, um dos representantes da ala religiosa no país. “Até que em 2005 encontramos esse movimento de sem-terra, que também começava um movimento nas faculdades. Com eles, estamos ganhando força na periferia.” Hoje, Zerbini ocupa parte de seus fins de semana em uma sucessão de palestras catequizantes para os universitários associados.

Rogério Cassimiro
PODER
O deputado Zerbini (à dir.) com Andrea Matarazzo, ex-secretário municipal de São Paulo. A capacidade de mobilização confere prestígio a Zerbini no PSDB

Durante os meses em que fui uma associada, fui a três reuniões comandadas por Zerbini. Em cada uma delas recebi um selo de presença. Às 7 horas da manhã de sábado, acomodados em um galpão, eu e mais cerca de 600 jovens ouvíamos a pregação de Zerbini e entoávamos músicas católicas em italiano canhestro. O coral era uma preparação para a visita ao Brasil do padre Julián Carron, líder mundial da Comunhão e Libertação. O evento, no Vale do Anhangabaú, em setembro, mobilizou cerca de 40 mil pessoas, segundo a associação. Elas pareciam menos preocupadas em alcançar a redenção espiritual do que em conquistar um selinho de comparecimento em sua carteirinha de “sem-terra”, condição para a manutenção do desconto na faculdade. Trocando presenças por desconto, Zerbini arrebanha multidões.Todos os eventos propostos por ele são sucesso de público. Quadros do partido afirmam que ele é o único a conseguir mobilização popular como essa no PSDB.

Zerbini tem a fala serena e a retórica bem construída de quem um dia cogitou tornar-se padre, mas acabou enveredando pela política. Aos 47 anos, casado com Cleuza Ramos, dirigente da associação, ele está no auge de sua carreira de líder social e político. Nos anos 80, Zerbini era uma das muitas lideranças de moradia do PT, militante em Comunidades Eclesiais de Base. Formou-se advogado pela USP apenas porque desejava entender das leis que regem o setor imobiliário. Diz que nunca nutriu intenções eleitorais enquanto esteve no PT. E dificilmente poderia tê-las. Para o perfil de líder comunitário que Zerbini construía, o mercado de votos dos eleitores petistas estava saturado. Depois de uma passagem pelo PMDB, em 1998, Zerbini ingressou no PSDB. “O governador Mário Covas se impressionou e se entusiasmou muito com ele”, diz Goldman. Covas e Zerbini se conheceram em um embate. Zerbini era o líder de uma manifestação de 3.500 pessoas que marchou do Estádio do Morumbi ao Palácio dos Bandeirantes, sede do governo. Covas era o alvo dos protestos. Ele abriu os portões do Palácio aos manifestantes, respondeu aos pedidos da associação e ganhou um aliado fiel. No atual gabinete de Zerbini, retratos de Covas ocupam bom espaço em duas paredes. As fotos da família de Zerbini estão em discretos porta-retratos.

Zerbini emprega funcionários da associação
em seu gabinete na Assembleia Legislativa

Rogério Cassimiro
CASA E DIPLOMA
No alto, um bairro construído pela associação de Zerbini na Zona Oeste de São Paulo. Acima, universitários “sem-terra” na saída de uma pregação de Zerbini em um galpão da entidade

O alcance do MST tucano
Criado há 23 anos pelo deputado Marcos Zerbini e outras lideranças do movimento de moradia, a Associação dos Trabalhadores Sem Terra de São Paulo (ATST) já atendeu cerca de 170 mil pessoas
Revista Época

Com a legenda do PSDB, Zerbini se elegeu duas vezes vereador em São Paulo, antes de exercer o mandato de deputado estadual. É descrito por colegas como um parlamentar de atuação pouco expressiva e de rara aparição no plenário. Quando aparece, Zerbini chama mais atenção pelas camisetas e calças jeans que costuma vestir, em desacordo com a liturgia do cargo, do que por suas propostas. Em quase quatro anos como deputado estadual, Zerbini apresentou apenas quatro projetos de lei. Como integrante da Comissão de Administração Pública da Assembleia Legislativa de São Paulo, ele faltou a metade das reuniões do grupo no ano passado. Quando era vereador, foi acusado de nepotismo depois de empregar em seu gabinete as duas enteadas. Atualmente, dos 15 funcionários empregados em seu gabinete mais da metade é ligada aos “sem-terra”. Ao menos quatro deles atuam como pedreiros e vigias encarregados de serviços gerais nas áreas construídas pela ATST. Segundo moradores das áreas, esses funcionários têm intensa atividade junto ao “MST tucano”, mas desconhece-se que tenham qualquer atividade parlamentar. Zerbini defende-se dizendo que a lei lhe confere direito de empregar funcionários em seu escritório político fora da Assembleia Legislativa e que a associação equivaleria a isso.

“Durante o mandato o Zerbini tem pouca importância política, está sempre às voltas com os problemas da associação”, diz um integrante do PSDB. “Sua importância cresce em ano eleitoral. Ele é capaz de mobilizar muito voto. Os políticos que ele apoia costumam se eleger.” Na última eleição, Zerbini obteve 94 mil votos, quase todos da Zona Oeste de São Paulo, onde ficam os bairros construídos por sua associação e a sede do movimento dos sem-faculdade. “Ali ele é quase Deus. Tem 70% dos votos da região e sua campanha é simples, só panfletos e banners”, diz Goldman. “Propusemos que ele se lançasse como deputado federal, mas ele quer ficar perto do seu povo. É o mais certo dos nossos candidatos.”

A dinâmica da associação vai permitir a Zerbini anos eleitorais cada vez mais seguros. A maior parte dos que, como eu, se tornam sem-terra e entram na universidade permanecerá ligada à associação por pelo menos quatro anos, o período de duração de um curso de graduação. Ao longo desse tempo, pagarão as taxas da associação e frequentarão mensalmente a reunião de catequese em que Zerbini, além de pregar, distribui folhetos com suas benfeitorias políticas na região. Pregação e política dão o tom do “MST tucano”. Durante o evento no Vale do Anhangabaú, antes que o padre Carrón irrompesse no palco com suas canções em italiano, o ex-secretário de Subprefeituras de São Paulo Andrea Matarazzo aproveitou para discursar e chamou a multidão de “Sem Terra do Bem”. Com esse tipo de discurso, os “sem-terra” de Zerbini têm conseguido doações na Europa e cada vez mais adeptos no Brasil.








Sulamérica Trânsito












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