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sábado, 29 de novembro de 2008

Para desligar o circuito do vício





Anna Paula Buchalla

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Por trinta anos, o empresário paulista Nelson Augusto Martos, de 45 anos, fumou de dois a três maços de cigarro por dia. Na última década, por diversas vezes, ele tentou abandonar o vício. Sem sucesso. Martos experimentou de tudo – de antidepressivos e adesivos de nicotina a vitamina C diluída em água e simpatias. O máximo a que o empresário chegou foi manter-se longe do cigarro por trinta dias. Agora, depois de tantos fracassos, pela primeira vez, ele está confiante. Em sua mais recente investida contra o tabagismo, ele não dá uma única tragada há três meses. Martos é um dos primeiros brasileiros a se tratar com comprimidos de vareniclina, vendidos nos Estados Unidos pela Pfizer como Chantix e na Europa como Champix, o mesmo nome adotado no Brasil.

A vareniclina acaba de chegar ao Brasil. Essa nova arma contra o vício químico atua nos mecanismos cerebrais da dependência, bloqueando a sensação de prazer proporcionada, por exemplo, pela nicotina. A idéia é tornar a absorção de nicotina tão sem sentido quanto a fumaça de um cigarro de chuchu. Em uma possível recaída, as baforadas vão ter efeito nulo sobre os centros de prazer do paciente e a tendência é que ele consiga se manter longe do cigarro.


Divulgação

Imagem da campanha antifumo patrocinada pelo governo inglês: "Não se deixe fisgar" é o slogan

A vareniclina é apenas parte do arsenal contra o vício químico que já está à disposição dos médicos. Muitos outros remédios encontram-se em testes. Só nos Estados Unidos, estão em estudo duas centenas de novas medicações contra os mais diversos vícios químicos. Da nicotina ao álcool e drogas pesadas e até exageros comportamentais compulsivos que, em sua essência, podem ser explicados pela dependência neuronal a certas substâncias prazerosas lançadas na corrente sanguínea pelo jogo compulsivo, pelas compras, pelo sexo e pela comida.

Espera-se que, nos próximos dois anos, passem a ser comercializadas duas vacinas – uma contra a dependência de nicotina e outra para deter o uso da cocaína. Também está em fase avançada de testes clínicos um remédio para o tratamento do vício em álcool e metanfetaminas, classe de drogas cujo representante mais conhecido é o ecstasy. O medicamento age sobre o neurotransmissor GABA, otimizando a sua ação no organismo. Essa substância, produzida no cérebro, pode funcionar como um interruptor nos processos de compulsão.

Em cinco ou dez anos, afirmam os especialistas, a medicina viverá uma revolução no tratamento de todo e qualquer tipo de vício. A chave desse avanço está na compreensão dos caminhos percorridos pela dopamina no cérebro. A dopamina é o neurotransmissor da dependência. Ela é que dispara a sensação de prazer – seja a advinda da ingestão de um prato saboroso, seja a causada pelo uso de um entorpecente. Ao inalar cocaína, por exemplo, o usuário tem seu cérebro inundado de dopamina – daí a sensação de euforia que, em geral, a droga produz. Até pouquíssimo tempo atrás, acreditava-se que o vício era processado exclusivamente nas porções cerebrais associadas ao sistema de prazer e recompensa, ativado em especial pela dopamina. A grande novidade é a descoberta de que há outros circuitos envolvidos nesse mecanismo, e de que a dopamina também os integra. "Graças ao aperfeiçoamento dos exames de neuroimagem, constatamos que os efeitos neurobiológicos das drogas ultrapassam os centros de prazer e recompensa do cérebro e se estendem ao córtex pré-frontal, região associada à analise dos riscos e benefícios, na qual se concentram as tomadas de decisão", diz a psiquiatra Nora Volkow, diretora do Instituto Nacional de Abuso de Drogas, dos Estados Unidos, e uma das principais autoridades mundiais no assunto. E o que isso muda na compreensão do vício? Simples: é preciso também alterar a química envolvida nos processos decisórios e mnemônicos. Sem isso, apenas parte do mecanismo do vício é combatida. Em outras palavras, é necessário "apagar" o impulso e a memória que levam ao consumo da droga.

O poder das lembranças associadas às drogas é poderosíssimo. Essa memória vem à tona sempre que um usuário vê um objeto ou uma pessoa relacionados às suas experiências com o vício. Um estudo publicado no ano passado na revista científica The Journal of Neuroscience fornece a dimensão exata do que acontece no cérebro dos dependentes nesses momentos. Pesquisadores americanos dividiram dezoito cocainômanos em dois grupos. O primeiro assistiu a filmes com cenas de natureza. O segundo, a imagens de outras pessoas usando cocaína. Por intermédio de tomografias computadorizadas, os especialistas notaram que os participantes do segundo grupo registraram um aumento na síntese de dopamina. A conseqüência: uma enorme "fissura" por consumir a droga por parte desses participantes. Com base em descobertas nesse sentido, as pesquisas passaram a dar menos ênfase ao sistema de recompensa e mais aos processos de formação e consolidação da memória do uso de substâncias psicoativas. Há um remédio contra a cocaína em fase adiantada de estudos que atua nesse processo – cujos resultados até agora são bastante promissores. Ao agir sobre os níveis de dopamina, ele corta a relação entre lembrança e vontade de usar a droga.

Um enorme salto na busca pelo tratamento da dependência foi dado a partir do momento em que o vício deixou de ser visto como uma doença da alma – uma fraqueza de caráter que impinge a suas vítimas comportamentos autodestrutivos – e começou a ser encarado como um distúrbio cerebral. Ele decorre de um desequilíbrio químico e altera os circuitos de recompensa e prazer, tomada de decisões, controle inibitório e aprendizado. Trata-se, como se vê, de um problema bastante intricado. Explica-se, assim, por que a luta contra o vício costuma ser marcada por recaídas e fracassos. Alguém que decida parar de fumar, por exemplo, faz, em média, oito tentativas até largar de vez o cigarro. Na lista das substâncias que mais viciam, a nicotina está à frente da maconha e do ecstasy (veja quadro abaixo). Essa característica foi traduzida em imagens por uma campanha antitabaco deflagrada pelo governo inglês, que apresenta jovens fumantes sendo fisgados pela boca por anzóis. "Não se deixe fisgar", diz o slogan. Com quase 30 milhões de dependentes no Brasil, o cigarro mata 200 000 pessoas por ano. É uma morte a cada oito segundos no mundo. A vareniclina está longe de ser a solução mágica contra o problema, mas representa um avanço espetacular. Se associada à terapia cognitivo-comportamental, sua taxa de sucesso chega a dobrar.

A combinação com terapias psicológicas é essencial para ajudar o dependente a reprogramar o cérebro para a nova vida, longe do vício. Veja-se o caso do grupo Alcoólicos Anônimos (AA). Há mais de setenta anos, muito tempo antes de a ciência começar a desvendar os mecanismos do vício, o AA já ajudava muita gente a se livrar da bebida. Ainda assim, o índice de sucesso de terapias como a do AA segue a média internacional de recuperação de alcoólatras – que, independentemente do método utilizado, tende a ficar em torno de 20% ao fim de um ano. Com a ajuda de um remédio contra o alcoolismo como o acamprosato, no entanto, esse índice pode chegar a 45%. "Tratar a dependência sem a ajuda de remédio é como cuidar de um canal dentário sem anestesia", diz a cardiologista Jaqueline Scholz Issa, diretora do ambulatório de tabagismo do Instituto do Coração, de São Paulo.

O vício é fruto, em grande parte, de propensão genética. "Assim como há pessoas mais predispostas a desenvolver depressão, hipertensão e câncer, existem aquelas mais suscetíveis à dependência química", diz o psiquiatra Danilo Baltieri, coordenador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas (Grea), da Universidade de São Paulo. Não fosse assim, todos que algum dia experimentaram algum tipo de droga – do álcool à heroína – se tornariam dependentes. É a genética, ainda, que estabelece o tipo de dependência e a sua intensidade. Estima-se que os fatores genéticos respondam por algo entre 40% e 60% da vulnerabilidade ao vício. Existe um gene específico associado à síntese da enzima monoaminoxidase A, uma das substâncias responsáveis pelo equilíbrio de dopamina no cérebro. Quando há mutações nesse gene, a pessoa torna-se mais ou menos vulnerável ao vício. A genética explica também por que existem pessoas com baixos níveis de receptores de dopamina – o que as faz mais suscetíveis ao vício e a achar mais prazerosa a experiência com drogas.

Há dois grupos de pessoas bastante vulneráveis ao vício – os adolescentes e os portadores de distúrbios psiquiátricos, como esquizofrenia, depressão e ansiedade. Durante a adolescência, o cérebro sofre mudanças dramáticas. Uma das áreas ainda em maturação é o córtex pré-frontal, associado à tomada de decisões e responsável pelo controle dos desejos e emoções. O fato de essa região do cérebro ainda estar em desenvolvimento nos adolescentes os coloca sob risco maior de optar por decisões erradas, como experimentar drogas e continuar a abusar delas. Além disso, o uso de substâncias químicas nesse momento de desenvolvimento tende a ter um impacto mais profundo e duradouro no funcionamento cerebral. "Não queremos deixar os pais em pânico, mas é importante que eles saibam que a adolescência é uma fase de extrema vulnerabilidade", alerta Nora Volkow. A maior parte dos dependentes químicos se iniciou no vício – qualquer um deles – na juventude. Entre os usuários de drogas, isso ocorre, em geral, antes dos 21 anos. Quanto aos alcoólatras, antes dos 15. "É fundamental que os pais fiquem atentos a essa realidade e ao comportamento dos filhos adolescentes", enfatiza o psiquiatra André Malbergier, do Grea.

O uso repetido de drogas muda a forma como o usuário se relaciona com o mundo. Além de alterar as emoções, compromete a capacidade de cognição e os reflexos motores. A boa notícia é que o cérebro tem uma capacidade extraordinária de se recuperar dos danos causados pelo vício. Quanto antes uma pessoa inicia o tratamento, melhor. É mais difícil tratar alguém que foi dependente de cocaína por trinta anos do que quem usa a droga há três. O mesmo vale para outras drogas, como nicotina e álcool. Os especialistas são unânimes em dizer que não existem tratamentos eficazes que durem menos de noventa dias. Os exames de neuroimagem mostram que esse é o período de maior propensão a recaídas, porque o cérebro permanece mais vulnerável ao longo dos três meses seguintes à última vez em que se utilizou a droga.

Uma equipe de antropólogos da Universidade da Califórnia defende a tese de que o uso de substâncias psicoativas teria ajudado a humanidade a suportar a vida nos ambientes mais hostis. Há quem acredite que o tédio e a solidão, dois dos males da modernidade, tendem a reforçar a manifestação dessa tendência ancestral. Tal convicção baseia-se em experimentos como o levado a cabo, no fim dos anos 70, pelo pesquisador americano Bruce Alexander. Ele pegou um grupo de ratos de laboratório e os colocou numa jaula com muito espaço livre, cheio de bolas coloridas e brinquedinhos – uma espécie de Disneylândia dos ratos. A esses animais eram oferecidos água e um coquetel adocicado, à base de morfina. O mesmo foi dado a outros ratos, isolados uns dos outros, em jaulas escuras e diminutas. Resultado: os ratinhos do parque de diversões mal tocaram na solução de morfina, preferiram a água. Os animais isolados, por sua vez, se entupiram de morfina. Consumiram o coquetel numa quantidade dez vezes superior à dos ratinhos contentes. Se parece impossível erradicar a tendência ao vício e as suas causas, genéticas e ambientais, que pelo menos se consiga desligar os circuitos que levam à autodestruição.

DÁ PARA VIVER SEM FUMAR
Carol Carguejeiro

"Comecei a fumar aos 13 anos e fumava de um maço a um maço e meio por dia. Mas, como tenho uma doença cardíaca grave e já fui operada três vezes, não poderia fumar jamais. Tentei parar algumas vezes, mas nunca consegui. Em março, tive uma embolia pulmonar e minha médica disse: 'Ou você pára, ou você morre'. A última cartada era o novo remédio. Até agora, está dando certo. Se dependesse de mim, eu continuaria fumando. Gosto da fumaça, do cheiro, da sensação... A diferença é que, em comparação às outras vezes em que tentei parar, não tenho mais vontade de fumar, apesar da saudade do hábito. Sinto falta especialmente naquelas situações em que certamente estaria com o cigarro nas mãos, como quando saio à noite. Sem o cigarro, estou mais ansiosa e comendo mais. Por causa do remédio, sinto enjôos. Mas dá para viver sem fumar."
Gabriella Jorge de Moraes, 26 anos, estudante de psicologia


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