Gaudêncio Torquato
A saída da ministra Marina Silva do governo Lula é plena de significados. A começar pela antinomia dos signos que se cruzam em torno de seu perfil. Mesmo com o título de “mãe do PAS”, o Plano Amazônia Sustentável, atribuído a ela pelo presidente da República, a ex-empregada doméstica do Acre, nossa maior propagandista no mapa mundial do meio ambiente, não conseguiu segurar a barra. Era precária a base para sua sustentação, conceito pelo qual tanto lutou. Não que lhe faltasse força para enfrentar os dissabores de uma guerra no seio da administração e que exibe, de um lado, os desenvolvimentistas e, de outro, o batalhão ambientalista. Afinal, quem resistiu à hepatite, a metais pesados dos rios do garimpo e a opositores que procuraram minar sua ação no Ministério do Meio Ambiente (MMA) reúne condições para continuar a luta. Marina deixa a cena por ter concluído que sua presença no governo perdera sentido. Restava-lhe um trato com a consciência, arrumar a mala da crença e enrolar a bandeira verde amazônica para estendê-la em outra freguesia, no Senado Federal, onde a sua expressão rica de referências a biomas poderá ser bem acolhida.
A saída da ministra sinaliza ainda a vitória da companheira que se esforça para associar o nome ao conceito de progresso: Dilma Rousseff, a “mãe do PAC”, o Programa de Aceleração do Crescimento. A ministra-chefe da Casa Civil encarna o pragmatismo de uma gestão que decidiu levar a cabo - a ferro e fogo - programas que batem de lado na cara da “mãe ecológica”: transgênicos, implantação de Angra 3, transposição das águas do São Francisco e usinas hidrelétricas do Rio Madeira, entre outras ações. A dose extra de óleo de rícino que o companheiro Lula quis empurrar garganta abaixo de Marina Silva pode até ter sido a designação do polêmico ministro de Assuntos Estratégicos, Mangabeira Unger, para o papel de “pai” do PAS. Mas a decisão da ministra foi o ponto final de uma reflexão amadurecida sob irrefutável diagnóstico: o governo optou por colocar o mastro do crescimento na frente da bandeira ecológica.
O dilema de Lula, agora, é responder ao mundo como preservar a estética ambiental sem a estátua principal do jardim. Ele bem sabe que a mudança no comando do MMA terá mais impacto externo que interno. É fácil entender. O Brasil tem a maior biodiversidade do planeta. Por conta da região amazônica, que sempre esteve no centro das atenções mundiais, é um marco da sustentabilidade. Esse era o pano de fundo quando Luiz Inácio apareceu no Fórum Mundial de Davos, em 2003, proclamando-se patrono dos pobres. Na cabeça dos poderosos, a imagem do presidente tinha este contorno: ex-metalúrgico, origem humilde, história construída na luta sindical e lapidada na arena da esquerda e compromisso prioritário com a defesa do meio ambiente. O figurino caboclo de Marina Silva, uma dos sete ocupantes de Ministério que até a semana passada permaneciam na foto do primeiro ciclo do governo, era a fiança de que o País levaria a sério a política ambiental. Ademais, associava-se ainda a ação da ministra a Chico Mendes, com quem fundou a Central Única dos Trabalhadores no Acre. Tudo isso desaparece.
A política ambiental não mudará, garante Lula. Ora, Marina, com sua frágil figura, mais parece um logotipo ambulante. Nela a estética ecológica se imbrica à tenacidade de militante dos povos da floresta. A nova ordem exigirá mudança na forma de agir, adaptação ao vocabulário consagrado na cartilha lulo-rousseffiana: crescimento, obreirismo faraônico, P de plano e de palanque, A de ação e C de crescimento e também de comício. Carlos Minc, secretário fluminense do Meio Ambiente, chega ao MMA sob o manto do pragmatismo. É um ecologista midiático. Desembrulhou, ligeirinho, a burocracia para iniciar o Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro, o mais importante programa do PAC. É do jeito que Lula e Dilma gostam. Quanto à avaliação de que as oposições capitalizarão a saída da mãe do PAS, porque a sociedade é sensível ao discurso ambiental, trata-se de balela. O povo aplaude quem lhe proporciona bem-estar. O eleitor, este ano, cederá o voto olhando para o bolso e o estômago. A necessidade imediata, a micropolítica, suplantará o campo abstrato das altas idéias, a macropolítica. A temática ambiental, apesar de ganhar adeptos na gigantesca onda da defesa do planeta, no Brasil ainda não entrou nos buracos onde pisa o homem da rua. E, para arrematar o jogo eleitoral, Lula conseguiu forjar uma opinião popular sintonizada em seu discurso.
No painel das significações que se pinçam da saída de cena de Marina Silva, percebe-se, ainda, o movimento de massas em processo de fusão. A impressão é de que, a cada governo, o progresso material cresce e o progresso espiritual diminui. Os valores da existência assumem a forma de pesos jogados na balança das circunstâncias. O ideário de preservação ambiental há de se moldar às metas do crescimento do País. A dimensão econômica suplanta a dimensão socioambiental. E, assim, utopias fenecem e crenças não passam de registros de livros dos tempos em que ainda se sonhava. Esse é o preço do progresso. Um preço que a humanidade (e o Brasil) tem de pagar. Matreiro, Lula promete que nada vai mudar. Bulhufas. A não ser que recite o mesmo código do coronel Marcondes Alves de Souza, eleito em 1912 governador do Espírito Santo. Ao subir a bela escadaria do palácio, viu as helênicas esculturas de mármore, ligando a cidade baixa à cidade alta. Enfurecido, ordenou ao secretário de obras: “Mande tirar essas estátuas sem-vergonha de mulheres nuas.” Pasmo, o secretário retrucou: “Governador, vamos tirar a estética da escadaria.” Ainda mais bravo, o coronel fulminou: “E quem mandou tirar a estética, imbecil? Retire as estátuas e deixe a estética.”
A retirada da estátua da ministra Marina do jardim não deixa margem a dúvidas: vai embora também a estética ambiental do governo.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político
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