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domingo, 18 de maio de 2008

''É a América Latina que nos interessa''

Em entrevista exclusiva, ministro francês fala sobre acordo estratégico com o Brasil, reforma da ONU e Ingrid Betancourt

Andrei Netto


Preterida pelos EUA nos últimos oito anos, durante os quais o presidente americano, George W. Bush, ignorou a região, a América Latina está no centro das atenções geopolíticas de outra potência mundial: a França, um dos pilares da União Européia. A afirmação foi feita em entrevista exclusiva ao Estado por Bernard Kouchner, ministro das Relações Exteriores do país.

A aproximação dos franceses com os governo latino-americanos pode ganhar porte ainda maior, já que o presidente da França, Nicolas Sarkozy, assumirá a presidência da União Européia no segundo semestre.

Na entrevista, Kouchner aborda a parceria estratégica com o Brasil - quando admite um acordo de transferência de tecnologia na indústria bélica - e revela detalhes sobre a proposta francesa de reforma do Conselho de Segurança da ONU. Fala também sobre economia, garantindo que o país deve afastar-se do protecionismo. "Não vamos reforçar os subsídios agrícolas." A seguir, Kouchner explica quais serão as prioridades da presidência francesa da UE, o que Sarkozy pretende fazer a respeito de Afeganistão e Iraque, e como tentará resolver o drama de Ingrid Betancourt, franco-colombiana seqüestrada pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). "As Farc deixaram passar uma oportunidade de liberar Ingrid", disse, referindo-se à missão francesa de socorro que fracassou em abril.

Os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Nicolas Sarkozy devem se encontrar quatro vezes ao longo deste ano. Para que servem essas múltiplas reuniões e o que tanto eles discutirão?

Esses encontros mostram a qualidade e a densidade da relação entre França e Brasil. O Brasil não é apenas o país com o qual partilhamos nossa maior fronteira terrestre, é sobretudo um gigante do futuro, um parceiro com o qual devemos discutir uma série de questões mundiais: governança, manutenção da paz, segurança internacional, desenvolvimento sustentável, mudanças climáticas. É por isso que construímos com o Brasil uma parceria estratégica. Nós queremos, aliás, que essas trocas não se limitem às chancelarias. Em 2009, o Ano da França no Brasil permitirá que franceses e brasileiros se aproximem, se conheçam melhor. Será a repetição do sucesso fenomenal que foi o Ano do Brasil na França, em 2005.

O governo brasileiro indicou em fevereiro que um acordo de parceria estratégica com a França será assinado em breve. O governo francês aceitaria, por exemplo, construir no Brasil aviões Rafale e submarinos Scorpène, que são desejados pelas Forças Armadas brasileiras?

A parceria estratégica entre os dois países já está em curso. A discussão agora é para aprofundar essa parceria, tanto em nível político quanto econômico. Muitas empresas francesas querem acompanhar o crescimento do Brasil, especialmente em energia, espaço e defesa, para citar apenas alguns exemplos importantes. Em fevereiro, na Guiana, Sarkozy e Lula discutiram a fabricação no Brasil de um submarino Scorpène. Sobre a questão dos aviões de combate, como também sobre os helicópteros, trata-se de uma questão de transferência de tecnologia e de fabricação. As discussões continuarão nos próximos meses.

Sarkozy afirmou ser favorável à ampliação do Conselho de Segurança da ONU para incluir o Brasil. O projeto de reforma, porém, está parado. Quando as reformas serão transformadas em resultados objetivos?

A França apóia a candidatura legítima do Brasil, assim como dos outros países do G-4 (Alemanha, Japão e Índia), da mesma forma como defendemos a justa representação da África. Como você destacou, há uma certa resistência nas negociações.

Como romper o impasse?

Propusemos uma reforma temporária. Ela criaria uma nova categoria de assentos, os mandatos seriam mais longos do que os dos membros não-permanentes, hoje de dois anos, e seriam imediatamente renováveis. No fim do período temporário, esses novos assentos poderiam tornar-se permanentes. Naturalmente, só um engajamento político dos Estados, em mais alto nível, poderá concluir essa reforma.

Quais serão as prioridades da França quando o país assumir a presidência da UE, no segundo semestre?

Sarkozy quer que a presidência francesa se esforce para encontrar soluções para os principais problemas que preocupam os cidadãos europeus. Nós identificamos quatro temas prioritários: uma estratégia de desenvolvimento sustentável, que inclua aspectos energéticos, uma política comum de imigração, o futuro da Política Agrícola Comum (PAC) e a defesa. Sobre esses quatro assuntos, trata-se verdadeiramente de fazer avançar a Europa política, de ajudar a criar os meios para uma forte influência em um novo mundo, onde o Brasil está fadado a desempenhar um papel importante.

Qual a importância que terá a agricultura na presidência francesa da UE?

O futuro da agricultura será evidentemente um tema importante. Não se trata de reforçar os subsídios agrícolas. Pelo contrário, devemos continuar nossa política agrícola comum, mas suprimindo essas restrições. A PAC pode constituir um modelo para os agricultores dos países mais pobres da Europa e ajudá-los a melhorar sua produtividade. É o único meio sustentável de responder às necessidades das populações. É preciso que todos participem desse esforço.

O presidente Sarkozy defende a reaproximação da França com os EUA. Quais serão os temas-chave dessa reaproximação? Eles terão caráter mais político ou econômico?

Temos vários vínculos com os EUA, tanto políticos quanto econômicos. E são antigos, mesmo que a reaproximação que você menciona tenha sido destacada por causa da visita recente de Sarkozy aos EUA. Significa principalmente que, ao contrário de vários ex-presidentes, não queremos fazer da hostilidade aos EUA a pedra angular de nossa política externa, mas sim ter com os americanos uma verdadeira relação de confiança.

Isso significa um alinhamento automático com as políticas de Washington?

Não. Sobre temas importantes como as mudanças climáticas, a ampliação da OTAN, o Líbano e o Kosovo é fácil identificar nossas diferenças de posição. A importância que nós atribuímos ao diálogo e ao respeito ao direito internacional nos conduz, às vezes, a algumas diferenças. Entretanto, o fato de termos desenvolvido uma relação de confiança com os americanos nos autoriza a lhes falar, quando necessário, em um tom mais duro.

A França decidiu aumentar seu contingente militar no Afeganistão mesmo após o presidente Sarkozy ter prometido durante sua campanha eleitoral que não o faria. Por que tomar essa decisão, sabendo que essa guerra é impopular na França?

Nós temos uma obrigação de vitória no Afeganistão. O que está em jogo é a luta por direitos elementares do povo afegão. São coisas concretas, como a escolarização de meninas e o direito de voto paras as mulheres. É também uma luta contra o terrorismo da Al-Qaeda. Por fim, é um esforço para a reconstrução e o desenvolvimento do país. Não destacamos suficientemente nossas vitórias no Afeganistão.

Que tipo de vitória?

Graças ao acesso aos cuidados médicos, 40 mil crianças afegãs estão sendo salvas a cada ano. Isso porque, não estamos em guerra contra o Afeganistão. Nós combatemos, ao lado do povo afegão, contra todos os que querem semear o terror e mandar novamente o país para a Idade Média. É nesse contexto que nós enviamos mais soldados para a região. Se formos mais fortes militarmente, teremos mais chances de atingir rapidamente nossos objetivos e passar o poder para os afegãos.

O governo do ex-presidente francês Jacques Chirac preferiu não apoiar a guerra no Iraque e não quis fazer parte da aliança entre EUA e Grã-Bretanha. Sarkozy é muito mais atlantista. A posição da França em relação a essa guerra mudou também?

O passado é passado. Ainda vivemos no Iraque uma situação extremamente grave, com riscos consideráveis para a região. Além disso, a região ainda é um risco para toda a comunidade internacional. Ninguém pode hoje se dar ao luxo de não se interessar por esse tema.

O senhor afirmou que a França teria "objetivos ambiciosos" para a paz no Oriente Médio durante sua presidência da UE. Quais serão esses objetivos?

A França encorajará especialmente as negociações entre Israel e Palestina para que saia um acordo de paz antes do fim de nossa presidência da UE. Nós estamos em um momento histórico. Devemos ajudar israelenses e palestinos a encontrar o melhor caminho para um acordo. É por isso que realizamos a Conferência de Paris, em dezembro. Para ajudar os palestinos.

A prioridade da diplomacia francesa para a América Latina nesse momento é a libertação de Ingrid Betancourt?

A libertação de franceses seqüestrados no exterior é mais do que uma prioridade. É uma obrigação do governo francês. A libertação de Ingrid, e também de todos reféns na Colômbia, é uma causa nacional francesa, para a qual contamos com o apoio dos países latino-americanos.

O interesse da França vai além de Ingrid?

A questão dos reféns na Colômbia é um assunto relevante para toda a região, mas não queremos enganar ninguém: é a América Latina, em seu conjunto, que nos interessa. Como prova disso, quero que o presidente Sarkozy se encontre com a maioria dos chefes de Estado da região em, no máximo, um ano.

A França tem uma proposta concreta de acordo humanitário entre o governo Uribe e as Farc?

Em dezembro de 2005, tínhamos apresentado, juntamente com os governos da Espanha e da Suíça, uma proposta bem detalhada para facilitar a abertura de negociações entre o governo colombiano e as Farc. O presidente Uribe aceitou. A guerrilha não respondeu. Após as seis libertações de reféns obtidas graças à negociação do presidente venezuelano, Hugo Chávez, foi criada uma dinâmica que nós precisamos reforçar para poder avançar. É por essa razão que trabalhamos em um ritmo alucinante pela libertação dos reféns, para conseguir um acordo humanitário e, sobretudo, a paz.

Como o senhor analisa as ações do presidente colombiano Álvaro Uribe e a opção que ele fez por operações militares como a que provocou a morte de Raúl Reyes, violando a soberania do Equador?

As autoridades colombianas fizeram, nos últimos meses, vários gestos significativos. Libertaram Rodrigo Grande, em junho de 2007. Adotaram o decreto 880, que facilitou um acordo humanitário em março. Ao mesmo tempo, realizaram ações de guerra, como a que levou à morte de Raul Reyes em território equatoriano. Isso mostra que a questão dos reféns pode ser um fator de instabilidade na região andina. É preciso buscar meios de resolver esse problema.

Por que o governo francês decidiu realizar uma missão humanitária sem contar com a autorização das Farc? O senhor vê nessa missão um fracasso da estratégia francesa?

Enviamos uma missão médica à Colômbia porque nós tínhamos recebido, de diversas fontes, inclusive das Farc, informações alarmantes de que Ingrid não se alimentava e não seguia mais o tratamento médico. Vários indícios nos levaram a pensar que as Farc queriam um apoio médico. Diante da urgência humanitária, tentamos fazer o que foi possível. Temos o dever de assumir esse tipo de risco. Trata-se de salvar vidas humanas.

Então o erro foi das Farc?

Eu diria que a guerrilha deixou passar uma ótima oportunidade de liberar Ingrid e, talvez, outros reféns. De toda maneira, essa missão nos permitiu recolher preciosas informações sobre a saúde de alguns reféns e outros temas sensíveis.

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