RAFAEL GARCIA
DE WASHINGTON
Quinze anos atrás, Allen Frances era o psiquiatra mais poderoso dos EUA.
Encarregado de coordenar a quarta edição do DSM (manual de diagnósticos
de transtornos mentais da Associação Americana de Psiquiatria), ele
ajudou a criar critérios de diagnóstico que, depois, resultaram em uma
questionável epidemia de doenças mentais, como a do deficit de atenção
por hiperatividade. O manual foi ªdeturpadoº, diz. Hoje, Frances se
tornou um improvável aliado dos psicólogos na briga contra o monopólio
que os psiquiatras têm sobre a redação do manual. Em entrevista à Folha,
ele explica por que acha as novas propostas de mudança do DSM
"inconsequentes".
DE WASHINGTON
*
FOLHA - Algumas pessoas acusam o DSM-4 de ter causado uma epidemia de autismo. Ela é real?
ALLEN FRANCES - Os diagnósticos de autismo expandiram em mais de 20 vezes nos últimos 15 anos. Parte disso se deve ao fato de os diagnósticos terem se tornado mais sensíveis e pela inclusão da síndrome de Asperger no DSM-4. Mas parte desse número se deve à prática de diagnóstico desleixado e também a algo que não foi previsto pelo DSM-4. Escolas e serviços de saúde mental nos EUA em geral requerem o diagnóstico de autismo oferecer ajuda. Então o acoplamento de diagnósticos com a prestação de serviços é em parte responsável pelo excesso de uso do diagnóstico.
Acho que o DSM-5 vai estreitar o diagnóstico de autismo. Isso seria uma coisa boa, do ponto de vista do diagnóstico em si, mas seria ruim se implicar a perda de serviços dos quais essas pessoas precisam. Minha sugestão seria a de desvincular os serviços dos diagnósticos e condicioná-los às necessidades educacionais e comportamentais mais específicas.
As pessoas em luto serão diagnosticadas como portadoras de depressão?
Já é possível, com as regras atuais, diagnosticar e requisitar tratamento de depressão para pessoas em luto que tenham sintomas severos o suficiente. Mas não faz sentido diagnosticar a depressão em pessoas apenas duas semanas depois de terem perdido uma pessoa próxima, como prevê o DSM-5, e em pessoas que estejam apresentando sintomas leves de depressão que são parte da experiência humana do luto.
A força-tarefa que produz o manual está cedendo à pressão da indústria farmacêutica?
As pessoas encarregadas dessas mudanças têm boas intenções e não estão tentando vender medicamentos. Eles estão preocupados com o risco de deixar pacientes abandonados. Acontece que a indústria farmacêutica tem um marketing agressivo para explorar essas mudanças, independentemente de quão bem intencionado o DSM seja. Muitos pesquisadores são extremamente ingênuos ao desconsiderar como suas propostas podem ser deturpadas. E elas vão ser deturpadas na prática do dia a dia.
Isso pode ser evitado se os critérios do manual forem mais objetivos e mais baseados em neurobiologia?
O problema com os diagnósticos psiquiátricos é que eles são baseados em critérios subjetivos, e pequenas mudanças no limiar podem incorrer em enormes variações entre quem é diagnosticado e quem é considerado normal. Não temos testes biológicos. O primeiro testes disponível será para o mal de Alzheimer e provavelmente só deve estar disponível daqui a três ou quatro anos. Para os outros transtornos, deve demorar décadas. Enquanto isso, não faz sentido mudar arbitrariamente as definições dos transtornos Ðde uma maneira que pode afetar milhões de pessoasÐ sem que surjam bons testes para isso.
A psiquiatria não está falhando em reconhecer que o limite entre normalidade e transtorno é subjetivo?
A fronteira entre a normalidade e os transtornos mentais é inerentemente nebulosa, sem uma linha definida. E a maneira de separar isso vai ser determinada por diversos tipos de fatores que não estão ainda ao alcance de evidência científica.
Não seria melhor abandonar o manual?
Não. A pior coisa que pode acontecer é uma pessoa ouvir isso, parar de tomar seu remédio e cometer suicídio. Mesmo eu sendo altamente crítico em relação ao DSM-5, continuo favorável à psiquiatria. O diagnóstico psiquiátrico é absolutamente essencial para pesquisa, educação e comunicação clínica. Se for usado da maneira correta, é extremamente útil para direcionar tratamentos.
O problema é que os transtornos moderados, na fronteira com a normalidade, são muito propensos a sofrer abuso. Deve-se ter um cuidado tremendo com esses transtornos. É preciso usar critérios estritos e observar ponderadamente antes de carimbar um diagnóstico e receitar tratamento.
Na minha opinião, o DSM-5 é inconsequente ao sugerir muitas propostas que vão rotular pessoas como portadoras de transtornos mentais que elas provavelmente não têm. Isso, com frequência, vai resultar no tratamento com medicações que vão causar mais mal do que bem.
O que o sr. acha dos novos transtornos propostos?
Todos eles deverão apresentar uma grande taxa de incidência, mas nenhum deles está cientificamente bem estabelecido. E não há tratamento claramente eficaz para nenhum. Todos residem perto da fronteira com a normalidade, mas correm o risco de ser tratados com medicamentos que podem causar mal.
Alguns deles podem ter uma taxa de 5% ou 10%, então, dá para imaginar que num país do tamanho do Brasil, de uma hora para outra surgiriam 7 milhões de pessoas diagnosticadas com algo chamado transtorno misto de ansiedade-depressão.
Quais as doenças mais propensas a ter excesso de diagnóstico?
As piores são o TDAH (transtorno do deficit de atenção por hiperatividade), a depressão, e o transtorno geral de ansiedade. O problema com TDAH vai aumentar em crianças e, especialmente, em adultos. E esse transtorno já vem sendo alvo de críticas por excesso de diagnósticos.
Por que o DSM-4 deixou isso acontecer?
Nós éramos conservadores e queríamos manter o sistema estável para evitar consequências não desejadas. Apenas duas novas categorias de diagnóstico foram aceitas entre uma centena de sugestões. Mesmo assim, o DSM-4 foi usado de forma deturpada para ajudar a criar uma epidemia de TDAH e de autismo. Há uma outra epidemia, a de transtorno bipolar infantil, que não tem relação com o DSM-4. A pressão para inflar os diagnósticos é grande, mesmo que o sistema seja conservador. E a maior parte dessa pressão vem da indústria farmacêutica.
O DSM-5 tem a intenção de ser inovador e aberto a novas ideias para estender as fronteiras da psiquiatria. Nós achamos, porém, que o momento é inapropriado para isso, dado que nossa base de conhecimento ainda é insuficiente. É até perigoso, porque muitas dessas novas ideias não foram testadas. Nós sabemos que, se alguma coisa no sistema de diagnóstico puder ser deturpada, ela vai ser deturpada.
O que o sr. mudaria no processo de discussão do DSM-5?
O processo de discussão tem sido muito fechado desde o início. Ele é secreto, pois é difícil de saber o que ocorre nas discussões, e imune a sugestões de fora. O esboço do manual, por exemplo, é quase igual ao anterior, que tinha sido publicado dois anos antes e foi submetido a uma rodada de sugestões. Foram poucos os avanços e não houve eliminações de sugestões perigosas. A essa altura, a menos que haja tremenda reação pública ou intervenção do governo, é provável que elas serão incluídas no manual.
O sr. ainda tem ligação com a Associação Americana de Psiquiatria?
Nós estamos em contato, mas eles basicamente discordam de mim. Todos parecem entender esse problema, exceto aqueles que trabalham no manual. As pessoas na força-tarefa do DSM-5 são especialistas que trabalham em ambientes de pesquisa ultrarrestritos. Nesses ambientes, e nas mãos dessas pessoas, talvez essas sugestões novas façam sentido. Mas eles não têm a menor ideia de como essas sugestões podem ser deturpadas na vida real. Eles imaginam que todo mundo faz clínica da maneira como eles fazem, com uma formação longa e alto grau de especialização.
Outro problema é que os pacientes nos testes são altamente selecionados e formam uma amostragem diferente da real. Eles não sabem se colocar no lugar de um clínico geral que precisa atender um paciente a cada sete minutos e não tem muito treinamento. Muitos pacientes são dispensados porque são casos mais complexos. Eles são gente comum, em vez de casos selecionados para pesquisa que em geral se enquadram nas classificações com mais clareza. Pacientes que aparecem espontaneamente tendem a ser mais atípicos e mais difíceis de diagnosticar.
Além disso, clínicos gerais são muito influenciáveis pelo marketing da indústria farmacêutica. A maior parte das drogas psiquiátricas nos EUA são receitadas por clínicos gerais, e não por psiquiatras. Além disso, nos EUA, os pacientes são alvo direto de propaganda.
O DSM-5 é um manual que está sendo desenvolvido por psiquiatras ultraespecializados, mas cujos principais usuários serão os clínicos gerais. Os pesquisadores na força-tarefa não entendem a dificuldades de tradução do mundo deles para o mundo real.
As empresas de plano de saúde exercem alguma influência? Não existe um lobby no sentido inverso, para reduzir a quantidade de diagnósticos?
Tanto o governo quanto os planos de saúde deveriam estar tremendamente preocupados com isso. Mas a tendência dessas empresas, nos EUA, tem sido a de apenas repassar os custos. Não estão fazendo a oposição que se esperava delas. Dentro do governo, existem pessoas interessadas em submeter as decisões do DSM-5 às agências oficiais, mas ainda não é uma iniciativa muito clara.
Novo manual de diagnóstico causa 'guerra' na psiquiatria
CLÁUDIA COLLUCCI
DE SÃO PAULO
RAFAEL GARCIA
DE WASHNGTON
O processo de revisão do mais influente manual de psiquiatria do mundo ganhou contornos de guerra nos últimos meses.
DE SÃO PAULO
RAFAEL GARCIA
DE WASHNGTON
Abrindo a possibilidade de que pessoas consideradas saudáveis passem a ser classificadas como portadores de transtornos mentais, a obra despertou a ira de psicólogos, que já recolheram 11 mil assinaturas em uma petição contra as mudanças.
Psicólogos brasileiros devem aderir ao movimento, que começa a ganhar apoio de psiquiatras proeminentes.
O DSM (Manual de Diagnósticos e Estatísticas) da Associação Americana de Psiquiatria é referência para tratamento e cobertura das doenças pelos planos de saúde.
Entre as principais preocupações está o relaxamento dos critérios para que pessoas se encaixem como portadores de problemas como depressão, esquizofrenia e ansiedade.
Isso abre a possibilidade para que mais gente seja medicada e exposta a efeitos colaterais. Antidepressivos, por exemplo, podem causar redução do desejo sexual e problemas de sono.
"Há um retrocesso. Eles estão aumentando a patologização de situações comuns na vida das pessoas, como o luto", afirma Humberto Verona, presidente do Conselho Federal de Psicologia.
A atual versão do manual exclui do diagnóstico de depressão quem está em luto por até dois meses, considerando que a tristeza é uma reação normal. A proposta é abandonar a exclusão.
"O luto é uma condição da vida, não uma doença. Não precisa ser 'medicalizado'", afirma Theodor Lowenkron, professor de psiquiatria da UFRJ e membro do departamento de diagnóstico e classificação da Associação Brasileira de Psiquiatria.
Para ele, o avanço da neurociência e a pressão da indústria farmacêutica têm levado à priorização do tratamento com remédios em vez das terapias psicossociais.
Ele considera importante, porém, a inclusão no novo manual de alguns transtornos que não tinham uma categoria própria, como a compulsão alimentar. "Encontramos esses casos com frequência na prática clínica."
Os psiquiatras americanos responsáveis pelo novo manual afirmam que os novos diagnósticos não vão mudar a incidência das doenças que já existem.
Quanto aos novos transtornos incluídos no manual, dizem eles, muitos seriam só diagnósticos mais adequados para casos hoje enquadrados em outras categorias.
O psiquiatra Cláudio Banzato, professor da Unicamp, diz que há uma expectativa exagerada em relação ao DSM. "Tomá-lo como 'livro de receita' que pode ser empregado de forma ingênua e irrefletida é um erro grave."
Segundo ele, nesse embate, há bons argumentos dos dois lados. "Deve haver preocupação tanto com a medicalização excessiva e o tratamento desnecessário como com a falta de diagnósticos."
A versão final do novo manual deve estar pronta em maio do ano que vem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário