Na condição de ideologia dominante no Planalto, política traz o fechamento da economia quando desvinculada de ações para expandir a competitividade
Ana Clara Costa e Beatriz Ferrari

Em teoria, impor quotas de conteúdo local aos setores produtivos por meio de decretos ou leis pode ter um objetivo louvável, que é o de criar condições para que as cadeias consigam se desenvolver. Os analistas ouvidos por VEJA, no entanto, alertam que esse tipo de saída deve ser exceção, e não regra como parece querer a presidente. Ao replicar em diversos setores tal política “bem-intencionada” surgem inevitavelmente as distorções. Quando se coage um setor a consumir, sobretudo, produtos fabricados no Brasil, sem que haja uma indústria competitiva que os forneça, dá-se o fechamento do mercado. Quando se aumenta a carga tributária de automóveis importados para proteger a bilionária indústria de veículos nacional, reduz-se a concorrência e a segmento passa a ser dominado por produtos caros e de menor qualidade. Quando se elaboram incentivos fiscais para a vinda de multinacionais de eletrônicos ao país com dinheiro do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), reforça-se o capitalismo de estado na indústria. Esses são os três pilares que balizam a política industrial de Dilma – tendo no conteúdo nacional sua pedra filosofal.
Essa crença está tão incorporada no governo que não há o menor constrangimento em discursar a respeito. Em dezembro de 2011, o então ministro de Ciência e Tecnologia, Aloysio Mercadante, encontrou-se com empresários em um almoço na Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee). O tema do encontro era, por ironia do destino, barreiras à entrada de importados. “Começamos a fazer no setor automotivo e vamos aprofundar as exigências de conteúdo local em todas as cadeias estratégicas. Isso vale para tecnologia da informação e da comunicação. Isso vale para a indústria automotiva e para todas as outras”, disse. O curioso é que representantes do governo pouco falam de medidas concretas para combater a defasagem tecnológica, a escassez de mão-de-obra, a baixa capacidade de investimento público, a inexistência de infraestrutura logística adequada, etc.
Esquecimento político – O lúcido economista Roberto Campos já dizia que os entusiastas da política industrial têm uma qualidade em comum com os políticos e os amantes: o rápido esquecimento das experiências passadas. Entre os governantes da República, a atitude de Dilma guarda semelhança com a do general Ernesto Geisel. Durante a ditadura de 1974 a 1979, a Política Nacional de Informática elaborada por seus ministros tinha a mesma dinâmica do recente aumento de trinta pontos porcentuais no Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para veículos fabricados em outros países. Geisel determinou que se restringissem as importações para estimular o mercado eletrônico nacional. Os resultados foram um polo industrial de informática que nunca se formou, o sucateamento do que já existia no país e a ampliação do contrabando. Foi naquele momento que o Brasil perdeu a corrida para países que hoje são potências no ramo, como Taiwan, Cingapura, Coreia do Sul, Tailândia, Malásia e Filipinas.
Seria leviano atribuir somente a Dilma a culpa pela situação sofrível em que se encontra a indústria brasileira. Afinal, o ônus do dever de casa malfeito em infraestrutura, educação e impostos deve ser repartido entre todos que passaram por Brasília nas últimas décadas. Contudo, em vez de lançar mão de ferramentas eficazes para resolver o problema da competitividade no longo prazo, a presidente tem optado por caminhos paliativos e heterodoxos. Atualmente, os setores de óleo e gás, automóveis, telecomunicações, defesa, informática e até mesmo a programação de TV devem ter conteúdo nacional que varia de 5% a 85%. “O governo tem uma visão muito clara de que a indústria brasileira tem de ter tudo, tem de ser grande em tudo. E para eles é mais fácil criar medidas protecionistas de curto prazo do que elaborar planos que gerem diálogo político e soluções efetivas para a falta de competitividade”, afirma Sérgio Lazzarini, professor do Insper e autor do livro Capitalismo de Laços (Editora Campus/Elsevier).
Na contramão do mundo – Nesse sentido, o Brasil aventura-se pelo caminho inverso ao trilhado por grande parte das economias em ascensão. Enquanto os dois governos petistas estimularam a ingerência do estado em companhias privadas por meio de fundos de pensão de estatais e do BNDES, com o objetivo de criar campeões nacionais, o capitalismo busca a formação de cadeias produtivas globais. Por essa lógica, os mercados especializados ganham força e escala para competir em todo o planeta. Um exemplo de setor no país altamente especializado e competitivo é o agronegócio. Nessa dinâmica, não há espaço para que governos estimulem de maneira artificial setores em apuros e pouco eficientes.
Os especialistas argumentam que uma política de conteúdo local, em vez de panaceia para todos os males do país, deve ser implantada em situações extraordinárias – como, por exemplo, quando uma indústria é considerada estratégica. Mesmo assim, só dará certo quando aplicada em conjunto com medidas de redução da carga tributária, melhoria da infraestrutura e investimentos em tecnologia. “Essa medida tem de estar dentro de um programa maior de estímulo à competitividade. Mas está em curso espaçadamente e falta coordenação”, afirma o superintendente da Organização Nacional da Indústria do Petróleo na Bacia de Campos (ONIP), Alfredo Renault, referindo-se à exigência para o setor de óleo e gás. Vale lembrar que a possibilidade de fiscalizar o cumprimento das exigências em cabos localizados no fundo do mar não será tarefa fácil para a ANP.
No caso do setor de Defesa, que é estratégico para o Brasil e tem na Embraer seu principal motor, há algum sentido em priorizar compras de empresas nacionais que tenham tecnologia para suprir a demanda. O polo de São José dos Campos, em São Paulo, tem não só a sede da empresa, mas também uma série de fornecedores de ponta e universidades do porte do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). “Tem de ter incentivo por uma questão de segurança, sigilo e dados confidenciais. E as pessoas precisam saber que estão pagando impostos para isso. O setor de defesa possui outra lógica”, explica o economista Welber Barral, da consultoria BarralMJorge Associados.
Contudo, Dilma não dá sinais de que queira uma economia liberalizada. Prefere o caminho protecionista inspirado nos ministros do regime militar. A política de conteúdo nacional, que deveria ser a exceção, virou regra. E o desenvolvimentismo, que se tornou a ideologia dominante no Palácio do Planalto, embasa o pensamento econômico petista. “Nunca o governo teve um núcleo com formação desenvolvimentista tão forte, com Fernando Pimentel, Guido Mantega, Luciano Coutinho e Aloísio Mercadante”, lembra Lazzarini.
Diante deste quadro, o Brasil pode agir para mudar ou aguentar as consequências – que podem ir do aumento da inflação (impulsionada pelos preços pouco competitivos de uma indústria protegida) até a redução do papel do país no mercado internacional.
(com reportagem de Carolina Almeida)